Do fogo que nos une: notas sobre antropofagia e micropolítica

Juntando os gravetos (e os guetos)

A vida é devoração pura, disse Oswald de Andrade. Só a antropofagia nos une. Contra as catequeses e a mentalidade enlatada há o luto, mas também a prova dos nove na alegria canibal contra a tristeza brasileira, que afirmava Paulo Prado. A deglutição antropofágica não produz um eu bancário, identitário, estatal. É desejo de eu outro, contra-colonial, outrem como possibilidade cosmopolítica, diria Viveiros de Castro.

O canibal não é fetiche de artista ou curador etnógrafo, primitivismo racista. A moral do canibal é, portanto, anti-capitalista. É da experiência da partilha do sensível como transformação e contaminação sem síntese, é totemizar o diferente e o desigual sem hierarquizá-lo, é troca-troca lúdico e perspectivo, repatriação contra-exogâmica do inimigo cunhado ancestral.

É preciso, portanto, evitar o fogo fátuo da devoração entre “iguais” e cozinhar as relações. Se o cru é canibal, é jaguar egoísta e predador visceral; o cozido é preparação uterina da pessoa, é a festa dos porcos selvagens, é o restabelecimento dos laços precários de afins hostis. Como evitar que a subversão contra-estatal se torne “baixa antropofagia”, predação /apropriação /expropriação neoliberal?

Frame de 'Repentistas na feira de São Cristóvão' (2012), de Nukajames.Frame de 'Repentistas na feira de São Cristóvão' (2012), de Nukajames.

 

Acender o fogo

Só há antropofagia se houver inimigo. Não há possibilidade de totemização se não houver devoração do tabu. Não se trata aqui, portanto, de apropriação/expropriação, capitalização, hierarquia e exclusão. Se trata de tensão constitutiva, de contraste que faz ver a si próprio espelhado em outrem, de descobrir-se outro ao ser devorado por outro ponto de vista. É jogo de figura e fundo, pandemônio da multiplicidade e saliência perspectiva, estar dentro e estar fora como uma fita de Moebius.

A predação exige orientação, prescrição e cuidado. Não é possível comer junto sem etiqueta. Se te devoro é porque fui devorado. Se te como quero ser você ou como você. Se como contigo estamos juntos predando essa comida partilhada. Nos nós que enlaçamos através da antropofagia há nós como vocês, e nós-vocês.

A fronteira ela mesma entre eu e outro fica burlada na burla que é a antropofagia como jogo e possibilidade de afecção. A antropofagia é da ordem da aliança e do devir através da guerra. A guerra que empodera o inimigo ao predá-lo, porque mais que empoderar o eu, afirma simultaneamente o outro. A guerra antropofágica torna o estranho algo nomeável, produz corpos e pessoas, gente como a gente, permuta de perspectivas, afinidades.

 

Fogo fátuo

As alianças são precárias e é possível que um xamã devorador de diferentes pontos de vista, um guerreiro líder que serve ao grupo em direção ao sucesso na guerra, se torne um jaguar egoísta que acha que os porcos selvagens estão à sua serventia. Os índios riem de tal pretensão ou senão vão embora noutra direção que é contra-soberania, contra a mais-valia, e contra o mais-de-gozar do índio Narciso. É preciso lembrar que todos estão procurando a terra sem mal. A utopia canibal de uma terra sem trabalho e prazeres eternos, um paraíso de partilha e não-escravização alimenta a imaginação e encarna no real como uma metafísica imanente. É ela, apenas ela, que permite a comensalidade entre os diferentes e os desiguais.

Se o empoderamento é necessário para não ser capturado pelo outro, desempoderar-se é preciso para criar alianças contra os deuses capitais e contra as forças repressoras estatais que cerceiam as reais possibilidades antropofágicas. Entre os pequenos animais é necessário, portanto, não comer o outro humano de pele diferente – esse fogo fátuo, mas comer junto, dar, receber e retribuir, conforme sugerira Marcel Mauss. Beber o caium para fortalecer os deuses canibais e controlar a possibilidade de uma guerra como jogo e partilha, pulsão de vida, e não como desorientação e pura destruição, pulsão de morte, a ser devorada pelas forças repressoras dos deuses capitais e estatais.

Frame de 'El Amor Brujo' (1986), de Carlos Saura.Frame de 'El Amor Brujo' (1986), de Carlos Saura.

 

Línguas de fogo

Cá na terrinha houve uma trombada pesada que produziu milhares de mortes, mas também vidas. Enquanto os índios tupi-guaranis buscavam a terra sem mal em suas peregrinações por Pindorama, os inventores da Terra Brasilis que aqui chegaram, por ocasião do “mau encontro”, buscavam a salvação cristã de uma Europa assolada pela peste em um paraíso perdido nas terras Além Mar.

Os índios tupi-guaranis, dentre milhares de povos exterminados, não foram apenas vítimas, mas produziram suas ações e contraposições aos ataques que sofreram. Canibalizaram o inimigo e inventaram catolicismos indígenas, se misturaram com os negros escravizados e produziram um barroco canibal afro-indígena. Não se tratou, no entanto, de mestiçagem propriamente porque a antropofagia supõe a abertura, a incompletude e a desidentidade. Os portugueses por aqui tampouco eram identidade. Eram uma multiplicidade pandemonial, e os piratas d’outras Europas cá errantes eram os índios de lá. Degredados, ciganos, judeus, cristãos-novos criptojudaizantes, homossexuais e toda a sorte de monstruosos e abjetos no aprendizado da colonização.

Entre vítimas e algozes, colonização e contra-colonização, mestres e escravos, sadistas e masoquistas, houve entropia na estrutura, canibalizações recíprocas e comensalidades que desafiaram (e ainda desafiam) reducionismos, maniqueísmos e purismos presentes nas fábulas primitivistas modernistas. São Tomé tornou-se Sumé, as santidades religiosas indígenas tinham índios e índias como papas e virgens Marias administrando cultos que incluíam escravos, portugueses colonizadores, indígenas de povos rivais. Os escravizados africanos e crioulos circulavam entre calundus e as irmandades negras. A arte da antropofagia afro e indígena, portanto, não se deixou assimilar, ela consumiu o consumo e devorou o devorador evangélico.

À esquerda vernissage na galeria Gentil Carioca. Foto de Marcelo Mirrela. À direita culto neopentecostal. Foto de Masao Goto Filho.À esquerda vernissage na galeria Gentil Carioca. Foto de Marcelo Mirrela. À direita culto neopentecostal. Foto de Masao Goto Filho.

 

Fogo no museu

A antropofagia como elogio da devoração e da transformação tem sido canibalizada não como possibilidade de abertura e devires, mas como fotografia, registro, documento e arquivo. Tem sido empalhada e emoldurada como forma, como diferença estereotipada e enquadrada aos moldes dos antigos museus etnográficos, mas agora como arte, beleza indígena, alteridade artística.

A retórica da perda dos museus, sua pulsão inventariante e classificatória, seu gosto pela metafísica ocidental da história, tem restringido as multiplicidades que constituem as coletividades indígenas e africanas através do reducionismo do mito das três raças, ou seja, como identidade étnica, como “arte do outro”.

Por mais bem intencionada que seja essa política algo “messiânica” inscrita em um certo pessimismo sentimental, em poucos casos se inclui os próprios antropófagos na produção e confecção de tais “fotografias expositivas”, mas podem produzir fóruns políticos para pensar a urgência de um comer junto e deglutir os problemas do extermínio indígena e afro-descendente na direção de pensar resoluções comuns, à “terra sem mal”. No entanto, em muitos dos casos – como confirma a história das exposições que deglutiram povos extra-modernos – o que há é a manutenção de uma certa aura de exotismo racista, um discurso estigmatizador que responde as perguntas de museólogos, artistas e curadores, e em poucos casos os problemas e temas cotidianos dos indígenas e africanos.

Talvez falte fogo ao museu como possibilidade de renascer das cinzas, de transmutar o templo nacional originário em fórum das multiplicidades, de aquecer o tempo e entender que índios e afro-descendentes possuem já suas próprias versões e devorações globais e decoloniais da história e dos museus, para além da sua fetichização como instrumento de tropicalização do Norte. A antropofagia é a guerra, é movimento, e o tropical se tornou a mentalidade enlatada que a cultura letrada oswaldiana já tensionava como indigestão.

'Banana in ice' (2015), de Saskia Boelsums.'Banana in ice' (2015), de Saskia Boelsums.

 

O mundo em chamas

Extermínio dos guarani kaiowá, desastre ambiental em Mariana, mineração na Amazônia, golpe, desmonte dos direitos trabalhistas, censura e difamação, ondas de refugiados, recrudescimento do conservadorismo, do neofascismo e da xenofobia alhures, aquecimento global, dentre inúmeros outros acontecimentos possíveis de serem evocados… O mundo está em chamas.

E o que podem os antropófagos diante das erupções contemporâneas? Virar a mesa da santa ceia dos apóstolos escolhidos e transformá-la em barricada? Podem fazer alianças tribais e criar rituais canibalísticos microfísicos como já acontecem nos tecnoxamanismos virtuais das redes sociais em conexões com as ruas das grandes capitais? Para além dessas microrevoluções talvez fosse o caso agora de totemizar o tabu da morte como forma de visibilizar os silenciados, os excluídos e os exterminados ao contrário do que preconizava a antropofagia oswaldiana em favor da alegria. A alegria como contra-colonização do medo e da sensação de impotência é válida, a alegria como histeria compulsória, felicidade e qualidade de vida é antropofagia zumbi de pró-atividade, produtivismo e rentabilidade do gozo e dos afetos, já foi devorada pelos deuses capitais.

O mundo em chamas pode se tornar ainda enxame de finalidades rentáveis de um dado mundo que transmuta crise em lucro, tanatologia e ruína em erótica consumista, feitiçaria capitalista. A perigosa queda de Lúcifer, a fumaça Xawara Yanomami, a caixa de Pandora, a fúria de Gaia, a morte de Dom Sebastião, dentre outros exemplos escatológicos à venda no mercado já são vivenciados e devorados pelos antropófagos iletrados, subalternos e abjetos das periferias do mundo e que estão longe das versões antropofágicas gourmet de shopping das artes, encruzilhadas de vernissages e cultura food truck.

Uma antropofagia infinitesimal das multiplicidades que pense em pluriversos, multiversos ao invés de um universo, um “nós”, no Um como marca do Estado. Uma antropofagia em comum que canibalize a canibalização do outro como identidade estereotipada, multiculturalismo neoliberal. Que considere a multidão queer e afro-indígena em suas subversões e inversões do poder em prazer, do racismo e da transhomolesbofobia em ética da euforia resistente contra a persistência de mercados de estéticas e cosméticas da fome, da miséria, da exclusão e da morte que entretém como deleite diletante, espanto e alteridade determinados grupos dirigentes.

 

Fogo nas entranhas

Diante do recente drama social da censura banal, o homem nu da antropofagia oswaldiana parece estar sendo re-devorado pela histeria de alegria dos letrados da igreja das artes e de seu mercado. Antropófagos zumbis em sua fome performática de um eu empoderado e bem longe das decisões da alta cosmologia, devoram outros que não entendem, instrumentalizados por chefes poderosos e perigosos. Enquanto isso o homem pelado, esse ser abjeto mulher, negro, pobre e travesti ainda bem longe do templo do museu, agoniza por migalhas de visibilidade e dignidade cidadã, abençoado e acolhido pela palavra antropofágica de pastores que assombram a classe média artística.

A “vanguarda evangélica” e sua “arte contemporânea de Jesus” tem desafiado os antropófagos de boutique e os descolados multi-cult contra os cultos que não entendem. Acusações mútuas de censura, guerra de imagens, de classe, de religiões, baixa antropofagia. Ao lado dessa má devoração sem direção e sem permuta, essa pulsão de morte em acusações de bruxaria recíprocas, surgem perigosos líderes carismáticos com seus rostos mais indecentes que corpos nus, e que atingem os afetos negligenciados da ralé dos esquecidos, ou ainda, dos ex-indignos agora indignados que não chegaram ao paraíso tão sonhado.

Como chegar à terra sem Mal? É preciso superar o bem e o mal e devorar o “inimigo”, esse oponente afim potencial. Se infiltrar e predá-lo, criar alianças, mas administrar a direção da predação para não ser capturado. É preciso olhar com cuidado para o abismo, esse fantasma do incompreensível e inominável, e atravessá-lo, estourar a bolha que nos constitui e o muro que obstrui a passagem. É precisar desenfezar e se deixar entrar na merda para superá-la, diria o herói demiurgo solar da arte brasileira Oiticica. Mas reencontrando as sombras em Farnese de Andrade, os mortos e os recalcados, assumindo os limites da impossibilidade da comunicação plena, da falta e do inconsciente que nos atravessa e constitui.

Não há saída, nem chegada, nem Sul redentor, tampouco Norte algoz. É preciso superar grandes divisores, reinventar direções e imaginações conceituais tais quais a antropofágica, e desrecalcar os menores, as diferenças intensivas, as variações infinitas e perspectivas que possam permitir gambiarras criativas e contra-interpretações diante dos extrativismos dos deuses capitais e estatais. É achar nas entranhas simbólicas, no outro do outro no corpo, mais que em determinismos evolucionistas, historicistas e geográficos, novos possíveis e outros começos para permitir uniões temporárias, estratégicas, com tensões produtivas (sem inimigo não há antropofagia), dissidências e desobediências, paradoxos e permutas que superem ultra-empoderados eus individuais e coletivos, e os rostos fascistas.

O homem pelado, Hélvio RomeroO homem pelado, Hélvio Romero

por Leonardo Bertolossi
A ler | 8 Novembro 2017 | antropofagia, Brasil, censura, fogo, museu, subalterno