Do nomadismo
Introdução
Os nómadas podem ser entendidos em diversos contextos, nómadas na acepção antropológica, nómadas como um novo conceito na filosofia e nómadas como um conceito real e metafórico para novas práticas artísticas, tanto no sentido real como metafórico. Na acepção real refere-se à arte existente entre os povos nómadas, ao passo que o uso metafórico diz respeito à apropriação do nomadismo em novas criações artísticas e teatrais.
O termo nómadas deriva da palavra grega nemo (pastorear) e refere-se ao estilo de vida de grupos de pessoas e tipos sociais, caracterizados pela ausência de uma residência permanente ou de um povoado. Os grupos nómadas são normalmente caçadores-recoletores, mas também há alguns nómadas classificados como pastoris, significando isto que vivem de colheitas, cultivando em diferentes locais. Encontram-se um pouco por todo o mundo, mas estão especialmente concentrados na África do Leste e no Médio Oriente.
A noção de nomadismo como estilo de vida associa-se tanto aos caçadores-recoletores como aos que dependem de animais domesticados, acompanhando-os a lugares onde podem encontrar alimento em qualquer altura do ano. Exemplos de caçadores nómadas são o povo Inuit oriundo do Árctico na Gronelândia, Canadá e Sibéria. Outro exemplo são os aborígenes da Austrália e de outras partes do mundo, como os bosquímanos da África do Sul. O povo Sami é conhecido pela sua cultura de longa história, no decurso da qual transitaram de caçadores a pastores de renas domesticadas.
No condado mais a norte da Noruega, Finmark, os Sami seguiam as renas desde o seu habitat de Inverno até à zona mais para o interior do condado, nesta vasta área da Lapónia, e acompanhavam-nas até às ilhas ao longo do Mar Árctico, nomeadamente as ilhas Mageroy onde fica situado o Cabo Norte. A sua língua e cultura específicas têm até certo ponto sobrevivido na sua forma mais autêntica, especialmente entre a população Sami, no norte da Escandinávia e em algumas partes da Rússia. De acordo com o dicionário de Antropologia são chamados transumantes, o que significa aqueles que migram sazonalmente, de acordo com as necessidades de pastoreio dos seus animais.
Hoje em dia, na sua grande maioria, o povo Sami tem-se sedentarizado, apenas alguns milhares de entre uma população de aproximadamente 70 mil levam ainda uma vida de transumância nómada. O povo Sami da Noruega tem o seu próprio parlamento e, muitos deles, mantêm intactos os seus valores tradicionais. Após muitos anos de opressão linguística, a língua Sami foi aceite como língua oficial na Noruega. Têm a sua própria estação emissora e a sua própria universidade e muitos dos jovens Sami urbanizados começaram a trabalhar na área cultural. Alguns deles têm trabalhado na Companhia de Televisão Estatal norueguesa, produzindo séries de entretenimento, como aquela que retrata um presidente Sami que viaja pelo mundo em visitas oficiais para falar sobre o povo Sami, como se este fosse um grande povo instituído. O perfil cultural do povo Sami tornou-se um modelo para iniciativas semelhantes, junto de povos aborígenas noutras partes do mundo.
O uso filosófico do termo nómada reporta ao pensamento metafórico, tal como demonstra o Tratado de nomadologia: a máquina de guerra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no qual os autores utilizam a noção de mobilidade dos nómadas como metáfora para a guerra. Esta relação faz sentido tendo em conta que os povos historicamente nómadas, dedicados à guerra, como por exemplo os mongóis, conseguiam movimentar-se rápido de cavalo e atacar de surpresa. A ideia de criar um Estado deriva do facto de as máquinas de guerra serem mantidas em permanente mobilidade. Paradoxalmente, os fundadores de Estados faziam uso destes nómadas, uma vez que estes tinham aprendido a dominar técnicas metalúrgicas. Os historiadores avançam que os nómadas e as suas máquinas de guerra foram instrumentalizados por eles, por exemplo, os mongóis pelos chineses e os tártaros pelos russos (nomadologia: A Máquina de Guerra, p. 73).
Esta explicação filosófica pode então ser aplicada à teoria da arte. Os artistas podem ser vistos como pessoas móveis, percorrendo diferentes áreas geográficas para aprender e produzir. Também está ligada à noção de arte aborígene, explicitada no conceito de canto ou de paisagens rituais. O escritor inglês Bruce Chatwin é bem conhecido pelo seu livro O Canto Nómada, que descreve o fenómeno que acontece entre os aborígenes australianos, que criam traços invisíveis nas paisagens, que apenas podem ser vistos ou entendidos por aqueles que conhecem os códigos. Este conhecimento pode salvar pessoas que, de outro modo, se perderiam no deserto.
Arte nómada no passado
Também podem ser encontradas paisagens rituais junto do povo Árctico, por exemplo, na região dos Sami no norte da Escandinávia, em zonas de tundra, onde se multiplicam locais de sepulturas e outros monumentos feitos de amontoados de pedras, que podem ser usados como pontos de referência. Quando os arqueólogos do Museu Tromso se começaram a interessar por estes locais, não foram capazes de os descrever correctamente devido às dificuldades que tiveram em localizá-los. Precisaram da ajuda de especialistas na sociedade e religião Sami, para os encontrar. Na paisagem Árctica Inuit do Canadá, estes monumentos são conhecidos pelo nome de inukshuk, “homens de pedra”, também referidos como “pedras de sonho”, como é mencionado no livro infantil Pedras de sonho, de Maxine Trottier e Stella East. Outros aspectos da arte nómada do passado relacionam-se com as pinturas rupestres, como as que que foram encontradas na África do Sul, Escandinávia e noutras partes do mundo. No Museu Africano, em Joanesburgo, existe uma colecção das pinturas rupestres que evidencia claramente a função ritualística bem como a localização das pinturas rupestres, datadas do período que vai desde a Idade da Pedra até à descoberta da Europa. Encontramos prova disto, por exemplo, nos navios de origem europeia reproduzidos nestas pinturas.
Como vestígios da actividade passada e presente, podemos referir as figuras gravadas em osso, tal como as que se encontram nas sociedades Inuit canadianas. Espantosamente, são figuras de uma natureza estilizada e abstracta. Os totens índios americanos feitos de madeira estão muito ligados aos históricos povoados índios americanos, dos quais é exemplo a Columbia britânica. As suas quase monumentais técnicas de entalhe, construções de madeira e arquitectura foram trazidas finalmente a público na extensa exposição no Museu do Homem e Civilização/Musé d’homme e de civilisation na cidade de Hull, no Quebeque, no Canadá, em 1995.
O powwow é uma ocasião festiva organizada pelos índios da América do Norte para celebrar a amizade e a partilha social, dançando e tocando tambores em determinados espaços. As autoridades brancas costumavam ficar preocupadas nestas ocasiões, já que eram oferecidas em larga escala oferendas dispendiosas, e receava-se que o povo gastasse toda a sua fortuna deste modo. Nos dias de hoje, o powwow tornou-se cada vez mais uma atracção turística.
Os bailes de máscaras na Gronelândia, tal como representados pela actriz gronelandesa Makka Kleist, que vive em Tromso, são um exemplo de como a dança ritualística e a performance expressiva constituem uma parte integrante da cultura. Os intérpretes exibem máscaras utilizadas para fins xamânicos, mas que também servem para assustar as crianças. As actividades xamânicas são muito características deste povo, mas ressalve-se aqui que estão espalhadas um pouco por toda a região árctica. Na língua Sami, o xamã chama-se noiade e, para entrar em contacto com as almas animais, serve-se de tambores, que criam um estado de transe. Este transe permite-lhe entrar em contacto sobretudo com as almas dos ursos. Era necessário manter algum contacto com os animais caçados, essenciais para alimento e se obter matérias-primas. Rituais associados aos ursos têm especial fama e divulgação na Sibéria.
Arte nómada no presente
A arte nómada no presente representa a continuação de técnicas tradicionais de artesanato das quais resultam as acima referida gravuras em osso, para venda. Também dá continuação aos rituais tradicionais, aqueles que não foram impossibilitados pela emergência de práticas externas religiosas. É o caso do povo Sami, cujas tradições xamânicas foram proibidas pela igreja cristã luterana. Os seus tambores foram quase todos destruídos pelos missionários cristãos nos séculos XVII e XVIII. Mas a redescoberta desta cultura histórica transmite nova inspiração à arte dos nossos dias.
O tema do nomadismo na literatura é vasto e merece ainda muita investigação, mas na escrita de teatro verificamos,ontem e hoje, o contributo de vários autores canadianos/americanos-índios e canadianos-inuit, e de outros escritores Sami noruegueses e escandinavos. Neste contexto, contudo, gostaria dar especial destaque ao dramaturgo canadiano Thomson Highway, cujas peças têm sido exibidas em alguns centros culturais de arte indígena, por exemplo, em Toronto. O estilo musical sami Joik é amplamente conhecido e tem alguns excelentes intérpretes, como o finlandês-norueguês Nils Aslak Valkeapaa, que é também poeta. Marit Boine é uma artista musical norueguesa, que ganhou fama mundial. A sua técnica musical é baseada na tradição joik. Consiste num canto melódico de versos, que exprime certas situações e estados de ânimo.
Arte visual e o teatro sami
No contexto sami, há alguns artistas visuais de relevo, como Iver Jàks, um nómada no sentido rigoroso da palavra, já que trabalha com materiais de madeira encontrados, que vieram dar à costa. Faz esculturas com estes materiais, numa combinação de entalhe de madeira e arte de instalação. A sua exposição na Art Society Tromso em 1999 demonstrou a excelência deste tipo de arte, que combina diferentes identidades, tanto com um pano de fundo artístico formal, como neste contexto específico do Árctico. Esta madeira à deriva pode vogar desde a Sibéria às costas da Finnmark.
Vamos agora abordar um pouco a arte performativa nómada, tendo em conta que é produzida por um povo historica e predominantemente nómada, como é o povo Sami. O grupo teatral Sami Dalvadis Teatter de Karesundo, no norte da Suécia, ofereceu-me o primeiro exemplo deste tipo de arte, no sentido de combinar meios de expressão, que vão desde o ritual à performance, com elementos de nomadismo. Deparei-me com eles em 1987, como performers convidados em Estocolmo. Nitidamente, aliavam técnicas de artes performativas e abordagens ritualísticas, numa intersecção entre diferentes tradições.
O nome da produção em Sueco era “8 minuter fran solen” (8 minutos antes do Sol) e havia um notável contraste entre a vinculação a um teatro de energias corporais, reminiscente, do grupo teatral gronelandês Tukak, e o seu carácter de peça sem representação, de arte performativa. A estrutura base da acção era dramaturgicamente fragmentada, tratando da relação entre duas raparigas Sami, vigjheamit na língua Sami, e o xamã, noiade, que simultaneamente assumia também a forma de um animal selvagem, o coiote. Por outro lado, ele representava a ameaça da cultura urbano-industrial, subvertendo a cultura nativa Sami. Esta produção era encenada por Ida-Lotta Backman, com o índio Iroquês americano Norman Charles, no papel duplo de xamã/coiote. As tradições xamânicas dos índios Iroqueses surgiam combinadas com o xamanismo Sami do Norte da Escandinávia, unindo assim diferentes tradições “migrantes” do hemisfério norte. Dalvadis, que foi provavelmente o primeiro grupo de teatro Sami, foi extinto há alguns anos por falta de apoio cultural das autoridade suecas.
Na Noruega, foi implementada uma estratégia oficial para apoiar a cultura Sami de modo mais exaustivo do que na Suécia, permitindo que existisse um grupo teatral Sami, apoiado enquanto companhia regional profissional na vila Sami de Kautokeino, no condado de Finmark. Esta teve o seu começo alguns anos após a companhia profissional norueguesa ter sido fundada na capital da região ártica, Tromso, no início dos anos 70: o Teatro Halogaland, cujo nome deriva do antigo nome histórico da região. Isto esteve ligado à descoberta duma identidade cultural regional forte, algo que também teve lugar no seio da população Sami. Mas ao passo que linguagem teatral norueguesa pôde alimentar-se a si mesma tendo em conta o facto de que o teatro profissional norueguês já existia há mais de 150 anos no sul, o novo teatro Sami teve de ir beber a fontes mais ou menos diferentes. Um dos conselheiros dramaturgos do novo teatro Sami foi o escritor e filósofo holandês Ulla Ryum. Per Brask, do departamento teatral da cidade universitária de Winnipeg, Canadá, publicou uma entrevista com ela acerca do teatro aborígene.
Ulla Ryum salienta que o povo aborígene, o chamado povo do quarto mundo, começou a recorrer ao teatro e aos media urbanos para proclamar o seu auto-respeito. Algumas vezes, como no filme de Nils Gaup “O Pioneiro” (1987), fizeram uso duma forma dramatúrgica standard, baseada na tradição aristotélica. Mas o teatro prefere outras formas dramatúrgicas, devido às suas estruturas menos convencionais, em ambos os processos de trabalho, e porque os seus próprios mitos são muitas vezes de carácter não-realista. “Arqueologia cultural” é uma expressão que Ulla Ryum emprega para abarcar a complexidade de tradições culturais étnicas, tal como é descrito em “Interculturalismo e Performance”, de B. Marranca e G. Dasgupta (pp. 160-161).
O teatro Sami Beaivvás foi estabelecido como grupo independente em 1981 e tem estado em funcionamento desde 1990, com um subsídio permanente do Estado. No verão de 1991 este teatro colaborou com parceiros, como o Teater Halogaland, criando uma versão árctica de “A Boa Mulher de Sezuan” de Bertold Breccht, usando esculturas de gelo como cenário e representando ao ar livre no Inverno, com temperaturas muito frias, com os actores movimentando-se de um lado para o outro em motos de neve. O encenador, Jos Gronier, era holandês. Outra produção de Beaivvás foi “Narukami”, baseada numa lenda japonesa, já levada à cena há 600 anos. Foram bem-sucedidos numa encenação à maneira genuína dos Sami, baseada em tradições rituais Sami, com ênfase na magia e na poesia. No que diz respeito à sua abordagem intercultural, destaca-se o facto de o seu director de cena há já vários anos, Haukur J. Gunnarson, ser da Islândia. Parecem-nos claro estes pontos de viragem no teatro árctico serem tanto de carácter nacional/regional, como de carácter internacional/intercultural. Este tipo de teatro não existe isoladamente, antes vai buscar inspiração e matérias-primas livremente a outras partes do mundo.
O nomadismo como conceito metafórico da Arte
O conceito de nomadismo tem tido grande impacto na nova criação no mundo das artes. Novas formas de entender o contexto e a biografia nas artes têm sido um principal factor de substituição de estética por contexto, algo que se exprime em actos de evidenciação mais ou menos imperfeitos, ou diferentes tipos de eventos de arte ao vivo. Estes têm sido ou biográficos ou sujeitos a exploração de cunho pessoal. Esta tendência está em parte ligada à migração artística, que se revelou nas formas de expressão contemporâneas antes da queda da cortina de ferro. Já nos anos 70 um grande número de artistas provenientes de países do bloco comunista começou a transferir-se para os centros de cultura mainstream na Europa Ocidental para adquirir instrução e prática artística. Alguns dos exemplos mais bem conhecidos são Marina Abramovicz e Ulay, que retrataram o deambular de um lado ao outro da Grande Muralha Chinesa, um projecto que foi concluído em 1988.
Na sua introdução à Diversidade Cultural nas Artes, Ria Lavrijsen e Otto Romijn escrevem: “…/…/A questão é se os anos 90 darão margem de manobra a novas e outras visões de qualidade, veiculadas por pessoas que não fazem parte dos meios artísticos estabelecidos. Estes grupos estão sequiosos por participar no mundo artístico, como juízes que se mantêm abertos a outras virtudes, a diferenças culturais, a outras estéticas e parâmetros, a uma renovação da arte moderna e pós-moderna e a um reconhecimento de pluralismo” (p.13). Nesta publicação, o cruzamento de fronteiras e nomadismo são conceitos interpretados enquanto parâmetros para descrever novas formas de expressão artística, incluindo também o que é chamado de distanciamento metafórico: “…/…/…, cujo significado são novas percepções da vida, da imaginação, dos sentimentos através dos quais podemos agrupar os nossos pensamentos de diversas formas” (ibid, p. 14).
Uma expressão autêntica do nomadismo é o movimento pós-mainstream que consiste em novas actividades artísticas. É um movimento de carácter tanto global, como local e regional e pode ser usado como conceito que permite descrever o que acontece quando se esgotam os movimentos mainstream. É também um misto de estilos e tradições que não poderiam ser unidos num único conceito mainstream por motivos de pureza estética ou de fixação de tendências. Pode ser descrito em termos como sejam os de identidade cultural e nomadismo e pode ser considerado ritual ou étnico bem como ligado aos media ou à narratividade. ”Híbrido” seria a palavra mais apropriada para o descrever, enquanto metáfora estética. Exemplos de teatro pós-mainstream são os recentes teatros locais, como os que se encontram na região italiana do Adriático, em centros urbanos de multiculturalismo e em regiões remotas com populações étnicas ou uma identidade regional forte. Um bom exemplo destes últimos corresponde à Escandinávia Árctica. Nesta área temos exemplos de produções de um carácter simultaneamente energético e de arte performativa, muito semelhante, de facto, àquilo que podemos encontrar na América do Norte ou até na Austrália.
Projectos de arte paisagística reflectem a noção nómada de movimento, bem como as paisagens rituais de locais sagrados. Projectos artístico-paisagísticos têm-se multiplicado, tal como aquele que funciona em conexão com o projecto de escultura “Artscape Nordland”, no norte da Noruega. Esse projecto, que pode ser visitado a qualquer momento, situa-se algures entre o urbano e o local, e o regional e o local. Os artistas neste projecto são predominantemente “mainstreamers”, mas o contexto em si é do tipo marginal, com o seu mosaico colorido de identidades.
A história pessoal da artista holandesa Elsebeth Rahlff é a de uma espécie de mensageira vagabunda, tendo nascido em Copenhaga, crescido na Nova Zelândia e estando presentemente a viver em Bergen. O seu trabalho artístico-paisagístico em torno de bandeiras poderia ser designado como uma experiência pós-mainstream na arte paisagística. As bandeiras de Elsebeth Rajlff são perfuradas e os padrões desenhados pelos buracos correspondem a símbolos que parafraseiam as diferentes bandeiras nacionais do mundo. A cor base destas bandeiras é o cinzento, mas, quando estão penduradas em mastros, as cores ganham nuances, para dar a impressão de serem negras em lugar de cinzentas, um efeito causado por luzes contrastantes. Pode-se imaginar este arte paisagística de bandeiras como uma colecção acerca do movimento ou da migração, onde quer que sejam exibidas, Rio de Janeiro, Berlim, Reykjavik ou Bruxelas.
Procurar identidades em vez de realização estética é também um propósito dos artistas ocidentais, como o francês Christian Boltanski, que tem trabalhado com materiais pessoais biográficos, justapostos em esculturas ou instalações. Um artista polaco que eu elejo como exemplo de nomadismo da Europa de Leste é o Robert Sot, que vive e trabalha em Bergen, na Noruega. O seu trabalho como artista pode ser descrito como a concretização da mensageira vagabunda. Alguns exemplos do seu trabalho são combinações de arte ao vivo com pintura, como o seu trabalho “Em busca de Mundos Ideais” (Bergen 1995). As palavras-chave no trabalho artístico de Robert Sot são memória, reciclagem de materiais e biografia pessoal. Como artista, Robert Sot é um vagabundo ou vagabundo nómada. A uma escala global, saliente-se o encontro de artistas de performance e instalação em torno da Embaixada da República nómada, transportando o passaporte nómada, organizado pelo centro de artes de Le Lieu na cidade do Quebeque, no Canadá.
O trabalho de Robert Sot é uma abordagem à arte religiosa católica enquanto arte kitsch, relembrando-nos assim das obras de arte híbridas globais que também podem ser encontradas nas Caraíbas, com o seu misto de vudu e de elementos cristãos. Esta foi uma expressão de arte contemporânea que pôde claramente ser vista na Exposição Contentor na Capital Europeia da Cultura em Copenhaga em 1996. Um jornal norueguês descreveu a exposição do seguinte modo: “Deve haver milhões deles: os contentores que são carregados em barcos de um lado ao outro dos oceanos” (Bergens Tidende, 13.06.1996) É deste modo que os contentores se tornam metáforas para o movimento e transporte que também existiu na arte que fora exibida em algumas bienais em meados dos anos 90 em Joanesburgo, São Paulo e Istanbul, entre outros lugares. Em São Paulo, o artista coreano Duck-Huyn Cho construíra uma caixa de metal que era suposta dar a impressão de vir do interior do globo. Em Istambul, Ayse Erkmen construiu uma espécie de elevador de contentores, como metáfora para a cidade portuária do Bósforo. O objectivo era dar a noção de que a Turquia contemporânea havia contribuído com um vasto número de trabalhadores, convidados a deslocarem-se para outros países. Trabalhadores convidados ou imigrantes também representam um elemento nómada no nosso tempo.
O trabalho com performance e instalações conduziu a norueguesa Inghild Karlsen ao design de palcos e cenografia em teatros nacionais como os de Bergen e Oslo, criando cenografia para produção de peças da autoria da inovadora dramaturga Cecilie Loveid. O que é importante no contexto do nomadismo, identidade cultural e desenvolvimentos pós-mainstream de influência árctica são os seus dois trabalhos de performance visual e novo teatro, Namadis e a Jornada Poligonal. Namadis foi um projecto em co-produção com o Festival Internacional de Teatro de Bergen em 1998, em Bergen, usando como espaço, dentro e fora, uma antiga fortificação alemã da Segunda Grande Guerra. Também havia uma instalação da Sociedade Artística de Bergen e uma produção de performance, dando a conhecer o processo de feltragem, com a própria Inghild Karlsen e as suas assistentes, em Tromso, na Noruega. Ela exibiu uma caravana na bienal de São Paulo em 1994. É claro que também houve mais tarde outras actividades no teatro, como as performances baseadas nas peças teatrais de Inghild Karlsen.
A performance visual foi inspirada por mitos aborígenes ou lendas ritualistas, estruturada em quadros, que permitiram que se passasse da transmissão meramente narrativa dos mitos à transmissão dos mesmos através de arranjos visuais com música e efeitos sonoros. Os meios de expressão deveriam estar em pé de igualdade, bem como interligados, com o conteúdo. O título refere-se à palavra latina para feltro, namadis, e que tem uma sonoridade parecida com a palavra nómada. A acção cénica dentro da fortificação foi preparada de modo a que o público ficasse encarcerado na acção enquanto espectadores sem meio de escapar, como voyeurs no sentido ritualístico. São-nos apresentadas as sete deusas com os seus diversos dons relativos a objectos. São entregues à autoridade masculina, representada pelo “homem das caixas”, que as ataca fisicamente. A nova sociedade desta forma produzida, é a “sociedade homem-tubo”, com o homem caixa a viver em regime de poligamia. Apenas uma deusa sobrevive: as restantes são levadas pelo povo tubo. Mais tarde, as deusas são devolvidas enquanto pranteadoras ou mulheres de luto.
A história parece simples, mas as implicações visuais são ainda mais importantes. A Esfera Terra é grande, branca e feita de feltro. Está a ser carregada até lá fora repousando sobre o telhado da fortificação, onde é erguida simbolicamente pelas deusas evanescentes e é deixada atrás do público, que parte seguindo o mesmo caminho através do qual entrou, um caminho iluminado por tochas. Do nosso ponto de vista, tudo isto é reflexo de um universo mítico, concretizado em expressões ritualísticas, mas também assumindo a forma de uma dramaturgia visual. Simultaneamente, mostra-nos como a performance visual e o novo teatro podem ser usados num contexto intercultural. Uma jovem actriz das Ilhas Faroé viera participar, juntamente com uma bailarina das Filipinas.
“A Jornada Poligonal”, que teve lugar em Março de 1990 no Observatório Auroral de Tromso, aconteceu numa escala ainda maior. Foi também uma instalação, para além de performance visual, incluindo parceiros holandeses e japoneses. Acerca da instalação na parte de fora e à entrada do Observatório, o crítico Lotte Sandberg escreveu: “…/…/Um caminho estreito foi cavado na neve funda. Ao longo dele, há estacas com pontas de seta, cruzes, tendas e vários objectos geométricos feitos de feltro. À frente da entrada no Observatório, há um grupo de figuras com as cabeças curvas – “mulheres de luto” feitas de luz e feltro negro”, tal como é descrito na “Jornada Poligonal” (p.41). Este facto remete-nos para o povo Namadi, no seio do qual as mulheres eram convertidas em pranteadoras durante a própria performance. Wilie Flindt, um holandês conhecido pelo seu trabalho com o antigo Billedstofteater e Hotel Pro Forma, elaborou a performance visual juntamente com Inghild Karlsen.
A música e as sequências de No-Play foram apresentadas pelo grupo japonês de performance The Dumb Types de Kyoto. De acordo com o meu artigo sobre a produção cénica, poder-se-ia fazer a seguinte análise: “…/…/o ênfase era dado ao enquadramento visual, ao qual, poder-se-ia considerar, os elementos textuais estavam subordinados” (ibid)
Nos anos 80, a dramaturgia visual de projectos de teatro independentes tendeu para uma certa paridade entre o visual e o textual. Esta tendência reflecte-se na performance de Willie Flindt e Inghild Karlsen, na qual a tensão entre o visual e o textual se produz numa justaposição com o quadro japonês No-teatro. É também evidenciada pela declamação do antigo poema “Voluspà”, com gestos especialmente retóricos, pela actriz holandesa Else Fenger. Este foi o núcleo duro da performance; o resto era suplementar (“A Jornada Poligonal”, p. 42).
Hoje em dia verifica-se uma mudança de ênfase nas perspectivas existentes, desde a análise estética formal ao ênfase dado à identidade cultural e interculturalidade. Este desenvolvimento poder-me-ia ter levado a outra conclusão, nomeadamente, a de que o núcleo duro da performance era o intercâmbio de identidades culturais. Esta conclusão implicaria ainda uma explicação do “híbrido” enquanto reciclagem consciente tanto das identidades como dos meios de expressão, bem como dos materiais ou fragmentos textuais que estão a ser usados amplamente na práxis de arte nómada, falando metaforicamente ou não.