Dossiê | O que é o feminismo decolonial?
O feminismo decolonial acadêmico surge a partir do texto “Colonialidad y género” (2008), da filósofa argentina María Lugones. Nele a autora amplia a teoria da “colonialidade do poder” do sociólogo peruano Aníbal Quijano, introduzindo a noção de “sistema moderno-colonial de gênero”. Quijano e o grupo de intelectuais latino-americanos do Grupo Modernidade/Colonialidade foram precursores na análise do colonialismo pensado a partir do eurocentrismo, do racismo e da modernidade. Mostraram como o projeto europeu de colonização das Américas estava calcado na teoria pseudocientífica da raça como desculpa para a expropriação capitalista da mão de obra escrava e para o acúmulo de capital globalizado.
O racismo que justificou a escravidão de negros e índios, na mesma época em que a Europa saía da servidão e entrava no sistema liberal de pagamento do trabalho mediante salário, deixou marcas indeléveis no continente latino-americano. Entre essas marcas, destaca-se a colonialidade do saber, do poder e do ser. Ou seja, apesar de supostamente independentes, os países latino-americanos continuam subordinados a um modelo de poder que reproduz a hierarquia racial e econômica da época da colônia, que marginaliza os saberes locais e, finalmente, que cinde a identidade nacional, uma vez que ela é marcada por um imaginário colonizado pelo racismo europeu.
Para Lugones, além de raça, o conceito “moderno-colonial” de gênero – no sentido de aquilo que qualifica e identifica a diferença sexual – também teria sido introduzido nos países latino-americanos como forma de dominar e controlar o trabalho e os corpos. Homens e mulheres não europeus, indígenas e africanos, eram considerados “diferentes” – leia-se inferiores –, porque não seguiam as mesmas regras de socialização e convivência das sociedades coloniais. Além disso, não eram cristãos. Assim, foi-se construindo a narrativa segundo a qual os povos não europeus, isto é, no caso latino-americano, os povos originários e os africanos da diáspora, viviam como selvagens, próximos à animalidade, e que por isso a cultura e a religião europeias deveriam salvá-los, humanizando-os.
O feminismo surge como um movimento europeu-americano de libertação das mulheres da opressão patriarcal. Mas de quais mulheres se está falando?
Existe uma identidade universal “mulher”? Todas as mulheres sofrem da mesma forma diante do patriarcado ou algumas também usufruem das benesses dele? O feminismo negro e o feminismo lésbico norte-americanos mostraram que a subjugação da mulher branca ao marido ou ao patrão não a impedia de participar do racismo institucional e estrutural que a favorecia por sua cor e/ou por sua sexualidade, e por isso a alçava a representante e porta-voz de todas as mulheres nos meios de comunicação de massa e nos meios acadêmicos. Nesse sentido, não podemos condenar o patriarcado como uma entidade abstrata que subordina todas as mulheres da mesma forma sem olharmos para as diversas outras formas de opressão, tais como a racial, a sexual e a de classe.
Da mesma forma que o conceito universal moderno de ser humano – ou de natureza humana, definida com base no modelo europeu de racionalidade (autonomia moral e razão instrumental) – serviu para legitimar a submissão dos povos não europeus à invasão colonial, cultural e econômica, também pode-se dizer que o conceito universal de “mulher” serviu para ocultar outras formas de opressão, como a de raça e a de classe. O conceito de interseccionalidade, forjado no bojo do feminismo negro, conseguiu dar expressão e visibilidade à opressão de raça, classe, sexualidade e gênero vividas pelas mulheres negras e pelas mulheres não brancas1. Para que a mulher negra e a mulher não branca possam ser elas mesmas representantes de suas pautas e reivindicações, é necessário que lhes seja reconhecido o lugar de sujeito, e que suas experiências façam parte também dos estudos feministas.
A contribuição das feministas negras e feministas não brancas foi fundamental para a crítica à identidade “mulher” monolítica do movimento feminista identitário. Não há uma identidade única de mulher que represente todas as mulheres. A situação fica mais clara quando comparamos as pautas do feminismo liberal “universal” pelo direito ao aborto, pela criminalização do assédio e do estupro, pela paridade de gênero na política e nos empregos – temas de interesse claramente da mulher branca universitária, e não necessariamente da mulher trabalhadora e de classe popular.
De que adianta lutar pela paridade na representação política se as representantes mulheres forem todas da classe média ou média alta e defenderem seus interesses de classe ao lado de seus pares homens?
Se para muitas mulheres brancas a maternidade e o casamento não podem ser mais o destino das mulheres, para muitas mulheres negras e indígenas a maternidade é expressão central de suas identidades como mulheres e como líderes na comunidade – e não está associada diretamente à relação de gênero e de casamento. O trabalho da nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí sobre a sociedade iorubá do sudoeste da Nigéria, The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses (1997), expôs as falhas da universalização do conceito de gênero com base no ideal de família europeia nuclear, por associar maternidade ao casamento. Mostrou que a noção ocidental de “mãe solteira” é uma formulação estranha à cultura iorubá justamente por conjugar as duas coisas, como se uma fosse dependente da outra.
Se a segurança pública racista é pautada pelo encarceramento em massa da população negra, as mulheres negras vão se solidarizar com seus companheiros não brancos, e não com as feministas de classe média e heterocentradas e suas pautas de liberação sexual e autonomia financeira.
O feminismo decolonial latino-americano se junta ao movimento das mulheres negras e não brancas na reivindicação de que a questão do racismo é central no eixo da opressão patriarcal-capitalista. Não podemos pensar em feminismo brasileiro ou latino-americano sem considerar nossa herança colonial escravista. Pensar um feminismo decolonial latino-americano e brasileiro significa elaborar formas de combater um imaginário racista que considera inferior ao europeu tudo o que é oriundo das comunidades originárias e da cultura afro-brasileira.
Importa deixar de glorificar a história colonial escravista e violenta, e criar mecanismos de conscientização coletiva sobre a responsabilidade pelo genocídio negro e indígena e sobre a importância de políticas de reparação e de justiça. Além disso, o feminismo decolonial brasileiro compartilha da preocupação de historiadores com a forma deturpada como nossos antepassados negros e indígenas são descritos na história do Brasil, sempre a partir do olhar do colonizador. Os levantes populares são ignorados pela história oficial, e as populações nativas e os negros escravizados são descritos como desprovidos de capacidade de resistência e luta. No entanto, como mostra a historiadora brasileira Beatriz Nascimento, a identidade negra no nosso país é transpassada pela experiência da luta dos quilombos contra a colonização e a escravidão.
Ao todo, na América Latina há cerca de 602 etnias indígenas diferentes. Essa diversidade cultural é fonte de enorme riqueza humana. Se não valorizarmos nossas origens e diferenças, não deixaremos para as futuras gerações uma herança cultural que nos caracterize como povos livres.
Este dossiê traz para o leitor uma gama de reflexões díspares com o objetivo comum de iluminar uma experiência feminista própria, latino-americana e brasileira. No primeiro texto a seguir, Mary Garcia Castro dialoga com a feminista Heloisa Buarque de Hollanda sobre os rumos do feminismo decolonial, seus impasses e avanços, com vistas a ajudar Heloisa na escolha dos textos que comporiam o livro que ela estava organizando: Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (Bazar do Tempo, 2020). Mary mostra que, do ponto de vista da metodologia de escrita, não há um só modelo, o científico. Quando se trata de narrar experiências, precisamos nos libertar das amarras academicistas de escrita e adotar sem prejuízo um discurso poético-epistolar. No artigo seguinte, Príscila Carvalho traça as principais linhas teóricas do feminismo decolonial de Abya Yala e mostra suas implicações para o cenário nacional. Depois, Caroline Marim discorre sobre as bases visuais ocidocêntricas da estética e seu contraponto na estética sensorial de artistas contemporâneos latino-americanos. No penúltimo texto, Suely Messeder, utilizando-se de noção central para o feminismo decolonial, a do pesquisador encarnado, traça um diálogo com Mãe Stella de Oxóssi baseado em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia – quando levantou questões como ancestralidade, alianças e compromisso, entre outras. Suely mostra que é possível um outro modo de fazer política, que respeite os diversos atores em jogo. Por fim, apresento um apanhado das contribuições teóricas do feminismo decolonial.
O feminismo decolonial não é uma teoria fechada, mas sim um movimento em construção, que vai crescendo e se modificando a partir do momento que novas experiências lhe são acrescentadas.
Nota: Hesitei ao escolher qual termo usar, “descolonial” ou “decolonial”. Contra o segundo pesava o sentimento de que se tratava de um estrangeirismo (galicismo ou anglicismo), o que entrava em conflito com a proposta. Contra o primeiro pesava o fato de o termo poder sugerir um livrar-se de uma situação – o colonialismo – e talvez retornar a uma situação sem o contágio da opressão colonial. No verbete “Pensamiento descolonial/decolonial” do Diccionario del pensamiento alternativo, organizado por Hugo Biagini e Arturo Roig, é dito que as duas grafias estão corretas, mas que na Argentina se prefere o termo “descolonial”, enquanto nos demais países se prefere “decolonial”. Optei pelo uso de “decolonial” por entender que não é possível simplesmente desfazermo-nos das marcas do colonialismo, mas sim, seguindo Catherine Walsh, “assinalar e provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua – de transgredir, intervir, in-surgir e incidir. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínua no qual podemos identificar, visibilizar e incentivar ‘lugares’ de exterioridade e construções alternativas”. Trata-se não mais de reagir, mas de agir e construir alternativas mais inclusivas e positivas sobre os saberes e as práticas do continente latino-americano.
Artigo originalmente publicado em Revista Cult a 05/10/2020
- 1. “Não branca” corresponde aqui à expressão “women of color”, adotada por teóricos norte-americanos em referência ao colorismo, que, como a pigmentocracia, designa a discriminação pela cor da pele. No texto “Colorismo: o que é, como funciona”, Aline Djokic explica que o termo quer dizer, de maneira simplificada, que quanto mais pigmentada for uma pessoa, maior será a exclusão e a discriminação que ela sofrerá.