Ekwikwi V, Reino do Mbalundu… Porquê destituição do “Rei”?
O debate sobre a retradicionalização do poder das autoridades tradicionais endógenas angolanas torna-se cada vez mais estimulante a partir do caso da “realeza do Bailundo”, cujo apogeu anedótico da destituição do rei marca o início de 2021. Os acontecimentos de Ekwikwi V (cfr. SANJUKILA, 1997) são uma oportunidade para aprofundar as reflexões já iniciadas, quer em fóruns oficiais, quer em ambientes académicos. Há vários aspectos; i) projecções das autarquias, ii) interpretação das relações entre os poderes locais pré-existentes, iii) relação partidária entre as autoridades tradicionais, v) elaborações de monografias académicas que expliquem o funcionamento do sistema de direito consuetudinário em diferentes fases históricas e a sua eficácia à luz da CRA - Constituição da República de Angola, de 2010. Torna-se uma amostra da realidade sócio-histórica de Angola.
Entre 2002 e 2019 houve três encontros nacionais sobre as autoridades tradicionais angolanas. Quanto ao contexto prático, pouco ou nada se sabe sobre os consequentes resultados. Os problemas elencados no I encontro, de 20 a 22 de março de 2002, agendaram-se no III, de 2019, como se o II, de 19 a 20 de julho de 2008, não tivesse acontecido. E mais, a estatística das autoridades tradicionais ascendeu para 41.6661, em 2019, cerca de 2.315 por província, aproximadamente a 255 por município:
a) detestando o epíteto, que lhes foi atribuído, de “Autoridades Tradicionais”, b) rejeitando a vestimenta oficial, c) rogando pelo aumento salarial, d) questionando os critérios de nomeação, e) disputando as áreas de actuação e os respectivos limites funcionais entre eles e os coordenadores de bairros, ALE - Administradores Locais do Estado e, assim, como entre os sobas, olosekulu e “reis”, f) solicitando aumentos das mensalidades2 e esclarecimentos da diferença entre os assalariados e voluntários, sem perder de vista g) a relação entre os nomeados pela ALE - Administração Local de Estado e os comunitários.
Do III encontro, o Estado angolano embaraçou-se em lidar com a matéria relativa ao poder das autoridades tradicionais, desde 1975. Provam os dois primeiros auspiciados pelo MAT - Ministério da Administração Territorial. As autoridades tradicionais eram, ou pareciam ser, e ainda são, membros-“auxiliares” da ALE - Administração Local do Estado, dependendo da boa-fé dos Administradores municipais e comunais. Já o III encontro, de 18 e 19 de Junho de 2019, que formalizou o conceito de autoridades tradicionais “falsas” diferente de autoridades tradicionais “verdadeiras”, sem explicação oficial, aconteceu sob responsabilidade do Ministério da Cultura.
Com base no aforismo umbundu em que “na mentira do sábio, o ignorante ajoelha”, as autoridades tradicionais terão deixado de ser da ALE - Administração Local do Estado para acervo patrimonial, embutido no conceito de autoridade “tradicional” induzido, mas continuaram membros-“auxiliares” da ALE - Administração Local do Estado.
Perante o dilema, em 2014, o CERTO (Centro de Estudos e Recolha das Tradições Orais) deslocou-se ao encontro da realidade socio-tradicional mbalundu, no Bailundo, por causa da polémica figura de Ekwikwi (cfr. NETO, 2001) que, por inúmeras razões, se pretende perpetuar da tradicionalidade à modernidade. Sete anos depois desenreda-se o caso da destituição de Ekwikwi V partindo dos seguintes pontos:
I. Expectativas legislativo-jurisdicionais
Não obstante ao impacto e a sua incontornável influência nas famílias, do ponto de vista legislativo, a República de Angola omite, substancialmente, a pertinência da actividade do poder das autoridades tradicionais endógenas, pelo menos, até 2019, altura em que foi apresentado, no II encontro nacional sobre as autoridades tradicionais, o esboço do anteprojecto de lei. Fora deste contexto, é do artigo 213º, nº 2, da CRA - Constituição da República de Angola, que se pode falar das “instituições do poder tradicional como órgãos autónomos do poder local, paralelos às autarquias locais e outras modalidades”. Entretanto, o capítulo III, com os, 223º, 224º e 225º artigos, foi dedicado, superficialmente, à matéria em epígrafe. Ocorre que, do artigo 7º, desta Magna Carta, o Estado reconhece o costume desde que este não o contrarie. Sublinhemos: - reconhece!
Por lapso ou omissão, a CRA faz referências genéricas às autoridades tradicionais nos espaços e nas dinâmicas de que sempre foram actores e não, necessariamente, das figuras com títulos de “reis”, enclausuradas em mordomias e cerimónias decorativas, mas escolhidas a dedo. Um pouco mais de duas dezenas seria o total de reis angolanos (cfr. ARJAGO, 2002), mas indicaram-se, para condecorações, os do Khongo, Ndongo, Mbalundu e, quando recordados, os do Kasanji, Wambu, Mbunda, Kwanyama, Lwimbi.
Ao prestar contas à ALE - Administração Local do Estado, no qual são membros soldos, em todos os grupos etnolinguísticos de Angola (cfr. REDINHA, 1970), mesmo com algumas atribuições (cfr. PACHECO, 2002) de baixa intensidade legíveis na legislação angolana (cfr. FEIJÓ, 2000), o soba tem povo e território, apesar do simbolismo (cfr. GONÇALVES, 1984) que se lhe reveste.
II. Expetativas sociológicas
No universo geral das autoridades tradicionais (cfr. DAVID, 1997), Ekwikwi V revelou-se um caso suis generis. Estudante de Direito, pela Universidade José Eduardo dos Santos, Armindo Francisco Kalupeteka, foi docente de profissão, comerciante e secretário da Igreja da Nova Fé Apostólica no Bailundo. Enquanto membro em pleno direito do MPLA, à luz da lei nº 22/10, de 3 de dezembro, dos partidos políticos com assento no Comité Central, a 13 de abril de 2012, aos 38 anos de idade, assistia-se entronizado a rei do reino de Bailundo, sucedendo a Ekwikwi IV. Mais ocidentalizado, ao seu reinado escolhia o epíteto de Ekwikwi V. Ocorria-lhe administrar-se no seu impacto histórico ou pelo mero significado. Por inércia, inseria-se assim na ASSAT - Associação Angolana das Autoridades Tradicionais, fundada a 10 de maio de 2003, à luz da lei nº 14/91, de 11 de maio das Associações.
Fazendo parte invulgar da onomástica umbundu, com este cognome, Ekwikwi aparecia elencando entre reis na História de Angola pela quinta vez. Da tradição, a sua origem tem a ver com um adágio que interpreta o sentido de bravura; - èkwîkwí, èkângàlá ly’ôndòmbé, cìpûká kâlìwá l’ônjìlá! “por mais simples que seja, sou invencível” (ekwikwi, simples sardanisca, é bicho que o pássaro não come). Noutra versão, èkwîkwí resulta do mimologismo de uma ave de bosques que ergue o seu ninho com as penas de pássaros vivos. Na versão umbundu conhece-se por hômbó-îkòká, «cabra arrastadora». Do seu gorjear «kwí… kwí… kwí!» as aves das proximidades aplacam-se com o medo de verem-se despenadas.
O entronamento de Ekwikwi V foi notícia lúgubre ao Bailundo, por expectativas defraudadas, tal como aconteceu com os seus antecessores. A opinião determinante nas famílias nem os sistemas de parentesco mais influentes foram tidos nem achados. O Bailundo assistia ao entronamento de um descomunal, indesejado, refratário do escrutínio comunitário. Até aí, respondeu à ansiedade do Estado angolano que, por um lado, tem o Bailundo como município etno-multinacional, impondo-lhe um rei etno-nacional mbalundu obedecendo à CRA.
Vocacionado para o tráfico precário, de relacionamento delicado, apesar do sorriso simpático sempre presente, não escondeu o seu caráter oportunista e arrogante, desde a primeira hora que foi indicado desprezando os poderes de referência, influência, relações, persuasão, recompensa (cfr. ARJAGO, 2002) e solidariedade. O beneficiário convencia-se ser “rei dos ovimbundu” (cfr. GOMES, 2016) e tentou impôr-se declarando inimizade aos reis do Wambu e da Ciyaka. Embaciou o Ekovongo, Ndulu e Ngalangi (cfr. CHILDS, 1949). Visitou Benguela, Kwanza-Sul e Huila para impôr vassalagem aos regedores provinciais.
A sua fama de charlatão estendeu-se, perdendo confiança e respeito entre algumas instituições do poder público. Provaram as desavenças protagonizadas contra os herdeiros de Ekwikwi IV que, escapando do Elombe da Ombala, passaram à haste pública do Huambo, exigindo a intercessão do Governador Kundi Paihama que, sobre o assunto, dizia:
“São tristes as informações que temos recebido sobre o actual funcionamento do reino do Bailundo, pois descaracterizam a boa imagem conquistada pelos soberanos que passaram por esta Ombala, como o rei Ekwikwi IV. E eu, nas vestes de Governador, quero ordem, paz, respeito e trabalho para o desenvolvimento desta região” (in, Jornal de Angola, 14.03.2015).
Em contenda estava a disputa pelo património material de Ekwikwi IV que, três anos depois, Ekwikwi V, insistia em contrariar a CRA atropelando o artigo 2133º, da sucessão legítima, do Código civil vigente, mesmo sabendo que, como deputado da bancada do MPLA, o antecessor, deixou algum capital privado. Desde 2012 que Armindo Francisco Kalupeteka, o rei Ekwikwi V, foi alvo de más referências contrárias ao perfil do seu trono.
III. Expectativas antropológicas
Ao contrário das realidades sócio-históricas não-bantu, o poder da autoridade tradicional de direito consuetudinário bantu (cfr. NIANE, 2010), emerge dos sistemas de parentesco multifuncionais (cfr. ARJAGO, 1999), essencialmente, matrilineares. Antes da colonização tuga, funções dos títulos perpétuos do âmbito etno-histórico angolano, foram uterinos, sob delegação dos patriarcas em disputa política. Para tal precisavam impôr a sua ordem monopolizando a propriedade, consubstanciada na produção e produtividade (cfr. op. cit). Melhor, compreendem-se as estruturas e o funcionamento dos sistema políticos, de parentesco e da propriedade pois, basta um desequilíbrio para o derrube dos demais. Exemplifiquemo-nos com o uso das três pedras no fogo inabalável do njango. A construção da nação angolana, à luz da CRA, implica estabilizar os 3 sistemas no mesmo grau.
O processo de sucessão uterino contorna-se pelo conjunto de atributos qualitativos acumulados sobre uma figura com direito de herança por eleger, com base na confiança demonstrada, a partir da adolescência aos cargos de gestão dos patrimónios moral e material consanguíneos, sem exemplos de ascensão de menores e solteiros, mas sim, sobas com educação de ekwenje (cfr. ALTUNA, 1993) e cargos monitorados desde à adolescência vivenciada junto do potencial antecessor. Do ekwenje (cfr. SOROMENHO, 1944), a primeira escola, o cidadão ingressa no ocisoko (cfr. GOMES, 2016)de onde são-lhe atribuídos cargos públicos que lhe permitem ascensão. Trata-se de candidatos a chefes de famílias alargadas, futuros patres famílias. Para cargos políticos elegem-se cidadãos de sexo masculino, entre os vários irmãos (cfr. ARJAGO, 1999), filhos da mãe progenitora do antecessor e das irmãs da progenitora do antecessor. Ainda elencam-se os filhos das irmãs uterinas do antecessor e das irmãs (cfr. RADCLIFFE-BROW, 1950), filhas das filhas da mãe progenitora do antecessor, seus legítimos herdeiros na perspectiva do código de família consuetudinária bantu.
No caso em concreto, Ekwikwi V foi contestado por não ter passado a adolescência e a juventude no Elembe de Ekwikwi IV, quem seria o seu tutor ingressando no ekwenje, através da evamba, no conjunto dos seus coetâneos que, regressando, participariam da vida real através de ovisoko (cfr. GOMES, 2016), como auxiliares de menor escalão. Aqui manifestam a vocação de usoma, demostrada através de inúmeras competências de gestão política, económica, social, religiosa, que escrutinadas pela comunidade candidatam-lhe às mais próximas sucessões e a hierarquia endógena comporta três auxiliares do rei com categorias de Olosoma Vinene; Epalanga, Kalufele e Kapitango.
Sômá, enquanto título da autoridade suprema, vem do verbo òkûsòmá, sem tradução direta para a língua portuguesa, aplica-se para descrever um preenchimento, carregamento, alinho, por excesso. Carregando milho numa carroça à tracção, até à exaustão, acresce-lhe a altura com troncos para aumentar o volume. É okusoma. Sômá de òkûsòmá, potenciar, aumentar, acrescer a capacidade das famílias. O título de rei em umbundu é Soma y’Olosoma, soba dos sobas e subordina três sobas auxiliares (GOMES, 2016:41), Olosoma vinene, que os tugas chamaram de regedores. Dentre estes, um é sucessor imediato e, antes, todos são coordenadores de conselhos palacianos.
Na escolha de alguém para estas e as funções subordinadas, o debate sobre eleição, nomeação, sucessão, herança, fica ultrapassado obedecendo à trajectória de educação de cidadania e o exercício político escrutinável desde o ocisoko do Elombe. Submeter o adolescente ao escrutínio popular até atingir o mais alto cargo político, o que muitas vezes onera dezenas de anos, bastando a maior idade. É mais que um genuíno processo eleitoral regido pelos princípios da democracia indirecta de tipo bantu (cfr. ARJAGO, 2002), cujo sufrágio consiste na monitorização permanente do comportamento dos consanguíneos, candidatos naturais a rei, representando o maior sistema de parentesco, condicionante à ascensão, preexistente partindo do princípio das maiorias referenciáveis, detentoras do poder socio-económico e cultural, porque o soba é o titular da burguesia sustentável. Como se pode ter em conta, o processo é moroso, eficaz e pode abranger um sistema de parentesco matrilinear multifuncional umbundu (cfr. ARJAGO, 1999) com 1500 fogos congregadores de 7500 membros de ambos sexos.
A extensão dos sistemas de parentesco umbundu, devido à sua origem história (cfr. GOMES, 2016), é demasiada flexível, mais congregadora, menos hermética, menos tribal. Permite a adopção indiscriminada sob condição única de ingressar no ekwenje ou por alianças matrimoniais. Exemplos como de László Magyar, no Ekovongo de Kayaya Kayangula e, António Salupasa3 da Cikuma são bem conhecidos.
Pelos assessores, Ekwikwi V, sabia que o rei umbundu decidia, ao mais alto nível, pelas áreas políticas, económicas, sociais, religiosas, defesa, segurança, diplomacia. Astuto que foi, aglomerou para o seu proveito privado as influências das figuras do Estado angolano com identidade umbundu, cujo acesso comunicacional permitiu-lhe abordares-lhes livres, por vezes, com algum sentido de chantagem de subordinação. Na realidade, além do conselho nuclear de 4 componentes, onde ele teria feito parte, o rei umbundu seria beneficiário de uma estrutura burocrática complexa que o impediria atingir as famílias. Estaria impedido de comunicar-se com pessoas singulares. Cerca de 30 sobas, distribuídos entre 5 conselhos-auxiliares distintos (cfr. DAVID, 1997), seria o mínimo de altos funcionários exigidos para os serviços palacianos, os vakwelombe.
Não obstante à caracterização monárquica do poder das autoridades tradicionais bantu, razão da qualificação autocrática (GOMES, 2016:41-47), a centralização de poderes entre os ovimbundu, ao nível do Estado consuetudinário, limita-se entre os assuntos religiosos (cfr. MARINEZ, 2007), tratando-se da ancestralidade, de defesa, segurança e economia, no sentido de tributos da relação de vassalagem com os Estados satélites (cfr. GOMES, 2016). A gestão dos sobas não palacianos, com territórios e povos obedece ao princípio de autonomia relativa, por causa do fogo perpetuo (Íd.:ibid.) aceso pelo rei e distribuído às famílias através dos sobas e olosekulu.
Nesta ordem, o funcionamento do tribunal, a ekanga (GOMES, 2016:322-336), obedece ao escalão das 3 instâncias. A 1ª, composta por olosekulu, delibera os delitos de pequena gravidade ocorridos entre famílias com sentenças limitadas entre censuras públicas e multas à espécie, ao que se designa por etevo. A 2ª, é da responsabilidade dos sobas, com o direito do uso de força, através dos vakatumwa. A sentença “otchimbu” e as custas “oviyekelo”, são pesadas. É na 3ª instância onde aparece o rei, munido de pareceres filosóficos ditados através de máximas. Em ambas, a privação de liberdades e sentenças de morte não são conhecidas, mas possibilidade de condenar à escravidão (Íd:175) e de comprar a liberdade, eram frequentes. A vocação dos 3 tribunais consiste na gestão de conflitos, diferente de resolução de conflitos, razão porque os magistrados olham mais nas consequências familiares pós-sentenças que nos actos criminais. O princípio de que as pessoas eram mais necessárias para a produção que consumo impediu a manutenção prolongada de prisões e mortes. No geral, as penas de mortes convertem-se em desterro.
Do seu feitio arrogante, Ekwikwi V, não conseguiu estabelecer a diferença do poder autocrático do rei umbundu em relação aos demais bantu. Enclausurou-se no absolutismo e, mesmo sendo estudante do Direito, atropelou os limites estabelecidos pela CRA que, pelo artigo 59º, proíbe a pena de morte e a tortura, segundo o artigo 60º. Com o 64º artigo, exige que a privação de liberdade seja feita segundo a lei específica e o artigo 72º, obriga que o julgamento se faça segundo a lei específica. Foi condenado, a 2 de Fevereiro de 2021, pelo TPH - Tribunal Provincial do Huambo, a seis anos de pena maior, por autoria moral do crime de homicídio voluntario preterintencional, ocorrida a 14 de Março de 2017, na sequência de um julgamento do qual foi magistrado, segundo o acórdão do processo nº 195/19, da Juíza Maria Imaculada Lussinga. Descontrolado, aguardando pelo recurso, primou pela profanação dos akokoto, praguejou o povo do Bailundo escalou contra a Juíza embatendo-se contra as políticas de género.
IV. Expectativas históricas
A dimensão histórica do Bailundo desajusta-se da sua repercussão pois, além de Mutu ya Kevela ter terminado as suas façanhas com derrota, de 1903, perante a envergadura tuga (cfr. PÉLISSIER, 1997), o impacto da sua reacção colocou o Estado Mbalundu em posição privilegiada, quer no contexto etnolinguístico, quer na realidade afro-bantu. Aliás, Ekwikwi II jogou um papel, quer na diplomacia e relações internacionais de destaque, quer na organização interna e desenvolvimento socioeconómico deste seu país.
O impacto das acções de Mutu ya Kevela, só veio reforçar pois, ao nível local permitiu perpetuar o poder das autoridades tradicionais endógenas perante o colonialismo tuga, implementado posteriormente, mesmo sem território com fronteiras de modelo ocidental, nem povo devidamente limitado, expressos na ordem consuetudinária, à semelhança dos demais Estados, ficaram reduzidos na íntegra à Administração colonial até à proclamação da independência política (cfr. FERNANDES, 2012), de 1975.
Ainda, sim, no decurso da colonização, foi fundada a cidade de Bailundo, criado o distrito com o mesmo topónimo (cfr. MILHEIRO, 1972) e, hoje, a província do Huambo, no planalto central de Angola, monopoliza os resíduos históricos do poder das autoridades tradicionais endógenas Mbalundu, da era pós Mutu ya Kevela, permitindo que a realeza Wambu, também reduzida pelo colonialismo (cfr PACHECO, 1997), permaneça à sombra da regedoria colonial entre Nganda la Kawe e Samisasa (cfr. ZAU, 2010).
Os tugas que constrangeram a hegemonia política endógena (cfr. MALUMBU, 2005) com a criação da figura de regedor (cfr. CUEHELA, 1996) sem que se apercebessem que a existência de Olombala (cfr. GONÇALVES, 1984), que o Huambo, particularmente, tem conservado, pressupunha a presença da autoridade tradicional endógena de corpo e alma de forma perpétua se não fossem os problemas, de 1975 a 2002 e anos seguintes.
Nitidamente, sobreviveram fora do anonimato vários soberanos da perspectiva política bantu (cfr. ISAACMAN, & VANSINA, 1987) seguidos depois de Mutu ya Kevela, mas é a aparente linha recta da provável dinastia de Ekwikwi que chama atenção com os títulos dos seguintes soberanos:
Ekwikwi I; - sem referências, ficou na tradição sem lições susceptíveis de lembrá-lo se não fossem os longínquos sucessores que o imortalizaram.
Ekwikwi II (1876-1893); - do que se fala, dá vitalidade à história dos demais e da política estadual mbalundu.
Academicamente foi reputado como progressista, revolucionário, herói da resistência à ocupação tuga. O seu reinado coincidiu com o apogeu do mercado internacional à longa distância, dos séc. XIX e XX (cfr. HEINTZE, 2004), em que mercadorias perecíveis substituíram o escravo traficado exportando o nome de Mbalundu ao interior de África. Além da i) agricultura incentivando o cultivo de cereais, o milho, ii) investiu contra a invasão tuga, iii) apostou na diplomacia, mas foi Numa II seu sucessor que enfrentou a artilharia de grande calibragem da época (cfr. PELISSIER, s/d).
Ekwikwi III; - conhecido por Kapiñala Ekwikwi (“kàpîñalá” do verbo “òkùpîñalá”, substituir, sub-rogar, em língua portuguesa de Angola, o mesmo que «substituto do Ekwikwi».
Foi Manuel da Costa, sem afinidades certificáveis com Ekwikwi II, nem com o poder da autoridade tradicional endógena. Por esta razão apelidou-se-lhe de Kapiñala Ekwikwi, mais foi guardião do trono, de 1977 a 1998, período caracterizado pela desordem sócio-política, vivida no município do Bailundo, em que a UNITA e o MPLA - PT4 foram fiéis protagonistas, culminando na década 1980 com a sua captura, de 1979, forçado a seguir para a Jamba, até 1992.
Reassentado ao abrigo dos acordos de Bicesse, de 1991, com o Bailundo sob mando da UNITA, Ekwikwi III retomou o controlo da Ombala Mbalundu, o desamparo de Augusto Katchitiopololo, que o havia substituído por ordens de Arão Chitekulu, então Secretário do MPLA - PT e Comissário5 Provincial do Huambo, que o entronizara a rei desaparecido que Manuel da Costa foi.
Entretanto, foi David Sapata, Secretário do MPLA - PT e Comissário6 Municipal do Bailundo que, em 1977, instabilizou o poder da autoridade tradicional endógena Mbalundu, até 1979, quando caiu mortal numa emboscada atribuída à UNITA. Manuel da Costa, ausente do Bailundo, pela UNITA. Na altura, o título de Ekwikwi III, outorgou-se a Augusto Katchitiopololo, ao serviço MPLA - PT, até 1998. Com a queda de Andulo e Bailundo, a favor da UNITA, Manuel da Costa retomou o Mbalundu e Augusto Katchitiopololo refugiou-se, de volta ao Huambo, junto do MPLA.
Ocorre que, Ekwikwi III, Manuel da Costa, faleceu pouco depois, na condição de kapiñala, sem honras de Soma y’Olosoma, sem direito ao funeral de akokoto. Para o seu lugar, a UNITA percorreu a miúdo nas matrilinhagens de Etunda e Lunge, perseguindo a consanguinidade de Utondosi, rei do Mbalundu, de 1820 a 1842. Nesta perspectiva, as candidaturas ao reinado de Mbalundu, tinham recaído a Alice Ngeve Simões, mas a opção recaiu a Jeremias Lusati, Capitão desmobilizado das FALA, ao abrigo dos Acordos de Bicesse. Foi entronado com o título herdado de Utondosi II e faleceu em 2008 em Lunge, em circunstâncias não esclarecidas, mas atribuídas ao MPLA, deixando livre a vacatura a Augusto Katchitiopololo, já nas vestes de Ekwikwi III.
Ekwikwi IV; - oficialmente foi Augusto Katchitiopololo, administrativamente, investido de Ekwikwi III, em 1996, por inerência militante do MPLA, 2 anos antes da morte de Ekwikwi III, Manuel da Costa, como resultado da disputa deste lugar entre os 2 partidos (cfr. PEREIRA, 2015). Inicialmente, ascendera a soba, elevado a regedor junto das comunidades de Luvemba, Ombala de Cikunda, sem relação de consanguinidade ao poder tradicional endógeno Mbalundu, à semelhança de Manuel da Costa. Membro do Comité Central do MPLA, foi deputado desta bancada, entre 2008 e 2012.
Ekwikwi V; - Armindo Francisco Kalupeteka, sabe-se ter sido consanguíneo dos seus antecessores, enquanto bisneto de Ekwikwi III e neto de Ekwikwi IV. Dito assim, os 2 títulos recaem a Augusto Katchitiopololo. Assim sendo, Armindo Francisco Kalupeteka, entronizado, a 12 de Abril de 2012, depois do óbito de Ekwikwi IV e destituído, a 26 Março de 2021, foi bisneto e neto de Augusto Katchitiopololo. Entre os ovimbundu, tal relação é possível (cfr. ARJAGO, 1999), mas incredível, atendendo a personalidade em dissertação.
Como se pode perceber, a tentativa da reabilitação do poder da autoridade tradicional mbalundu foi recheada de episódios político-partidários, resultantes da luta pelo poder entre o MPLA e a UNITA, desde 1976. O reino Mbalundu, como toda a realidade política bantu, caiu em decadência com a implementação do colonialismo, a partir de 1903. Até 1975, esta realidade sócio-política não conheceu dinâmicas independentes relevantes, tendo restado na tradição o protagonismo de Ekwikwi II, assim como o destaque militar de Mutu ya Kevela, de 1902 a 16 de Julho de 1903.
Entre 1903 e 1976, o reino Mbalundu não se conheceu, pois da Administração tuga restara-lhe o Posto Administrativo de Bimbe-Katapi (cfr. MILHEIRO, 1972), sem perder o topónimo de Bailundo com o qual se criou a circunscrição, de 1911. Até 1912, foi capital política do distrito do Huambo e, em 1928 (cfr. op. cit.), chamou-se Teixeira da Silva. A partir de 1975, passou a vigorar, novamente, o topónimo de Bailundo e a UNITA tornou-o de seu Quartel-general transferido da Jamba, mas foi desde 1977 que a localidade tornou-se espaço opcional de disputas entre o MPLA e a UNITA.
V. À guisa de análise
São imperceptíveis as reais causas que levaram os movimentos políticos a disputas sangrentas sobre autoridade tradicional Mbalundu, mas se tivermos em consideração aos aspectos que tornaram a realidade planáltica, no geral e o Bailundo, particularmente, mesmo sendo referência no conjunto das dinâmicas pré-coloniais. Depois do Khongo, torna-se razoável vaticinar as viáveis razões: a) os protagonistas da luta pelo poder de Angola, convenciam-se que a localidade exercia sobre o planalto uma influência eleitoral favorável, recordando 2 aspectos, pois i) no cômputo geral, em 1983, os ovimbundu oneraram 37% (cfr. PEREIRA, 2015), da população angolana, dados que não se encontravam aquém dos 34,5% (cfr. CARDOSO, 1964 & 1966), desde meados do séc. XIX, reconfirmados em meados do séc. XX (cfr. COELHO, 1966); ii) tal como Ekwikwi V, líderes políticos dos 2 partidos acreditaram na percentagem aludida, como eleitoral constituinte da unidade socio-política sob guarda do rei Mbalundu.
A realidade sócio-histórica Mbalundu difundiu a incerta ideia ser o centro de gravidade sociocultural umbundu (cfr. SOUINDOULA, 2013), quando a história política dos ovimbundu distribuía-os entre os reinos primários de Ekovongo, o mesmo que Viyé, Wambu, Ndulu, Ciyaka, Ngalangi, com 2 centenas de Estados satélites (cfr. GOMES, 2016), sem aparentes relações fora do DICB - Direito Internacional Consuetudinário Bantu como outras realidades do fórum sócio-histórico angolano.
Na tentativa de se encontrar fiéis depositários de confiança política, mobilizaram-se personagens alheias, ao ponto de títulos de Ekwikwi III, IV e V, por haver necessidade de se controlar o poder da autoridade tradicional endógena Mbalundu. Assim, confeiçoaram-se fábulas, por ter havido Ekwikwi II com referências inabaláveis no contexto da história, particularmente, da resistência à ocupação de Angola e no que respeita ao desenvolvimento do Estado endógeno e referência planáltica, sobretudo um pouco depois da conferência internacional sobre a bacia do Khongo, de 1884/1885, ocorrida em Berlim.
Personagens alheias, por não haver afinidades nem intimidades esclarecidas, relativamente, ao parentesco indutivo aos cargos em disputa. Deliberadamente, violaram-se os preceituados etno-históricos. Com os sujeitos rompeu-se a tradição de akokoto à semelhança dos feitos coloniais e os sobas passaram a meros agentes político-partidários, conduzindo a autoridade real tradicional endógena ao descrédito. É isto que no Bailundo se chama de “crise da realeza Mbalundu”. É por isso que Ekwikwi V foi destituído pela ASSAT, ilegível no Direito Consuetudinário Bantu, também alheia à realidade em crise.
Caso tivesse acesso ao fogo perpétuo, Manuel da Costa, teria o levado consigo, seja onde quisesse e dar-lhe vitalidade do vínculo com a Ombala Mbalundu pois, a localização do agente portador do poder e do cidadão, não abala a identidade. Uma coisa é ser mbalundu, outra é estar no Bailundo. Não é por mero acaso que encontramos em Luanda bairros xarás de localidades planálticas. Por causa da tradição veicular do fogo. A comunidade de lodze, no Mungu, quem viaja para Zâmbia por Mavinga, ainda é mbalundu por ter lá chegado com as mulemba durante as caravanas de comércio à longa distância. O fogo perpétuo é aceso na entronização (cfr. GOMES, 2016), distribuído às famílias para se apagar no funeral dos akokoto por ter vigência legislativa que finda no acto de transferência de poderes do antecessor não-vivo ao sucessor vivo (cfr. ARJAGO, 2002), o bastante para explicar a impraticabilidade de destituição do rei umbundu.
A entronização fazia-se em cerimónia da mais alta confidencialidade em que se escoava os restos cranianos do antecessor que se davam em consumo jubiloso do sucessor, cujo acto se integrava nos akokoto. Não tendo acontecido por direito, o fogo virtual ficou resgatado por Augusto Katchitiopololo7 que, pela mesma razão, não podia tê-lo sob seu controlo tendo-o abandonado para o Huambo. O pior, neste enredo é que o último apagão do fogo perpétuo aconteceu em 1903 e de 1976 a 2021, os reis angolanos flutuaram entre agendas partidárias com todo paternalismo de Estado associado (cfr. CRA, 2010).
Com esta crise, Ekwikwi V, mais ocidentalizado que os antecessores, o que o tem permitido ser mais ambicioso, foi incapaz de burilar, com mestria, a luta pelos interesses promocionais privados8. Colocou de parte a possibilidade de salvaguardar as relações de parentesco, que a lenda político-partidária o outorgou, com os quais também não teve afinidades consanguíneas. Foi inábil de assegurar a coroa de pater família.
Ekwikwi’s III, IV e V constituem o universo de reis do Bailundo, no caso, com todos os pressupostos desvinculativos do poder da autoridade do reino Mbalundu, sem território nem ancestralidade, carecendo de autoridade para atear e distribuir o fogo perpétuo às famílias que não lhes reconhecem, porque o poder da autoridade tradicional endógeno umbundu começa e termina com o fogo. A título correccional, a 14 de Abril de 2012, o Vice-Presidente da República de Angola, Fernando Dias dos Santos, testemunhou o atear do fogo por quem chamaram de Soma Ndalu, “Soba Fogo”, para legitimar o fogo de Ekwikwi V, desautorizado pelas famílias em se comunicar com os ancestrais de que ele não era parte por ser alheio aos sistemas de parentesco dominantes.
‘Ndalu’ em língua umbundu designa “fogo” e aparece no contexto político da autoridade umbundu por se tratar de um instrumento político inclusivo e de controlo. A lógica da criação de um soma Ndalu residiria no facto da entronização de um rei umbundu passar pelo tear do fogo perpétuo, o novo fogo, o mesmo que nova legislatura, apagado o anterior em função da morte do antecessor cujo cerimonial terminaria com a transferência dos poderes através dos akokoto. Ainda que o afinco político-jurídico tenham extinguido, a falta da caixinha de fósforos em alembamentos ovimbundu (cfr GOMES, 2016), aparentemente insignificante, ainda aos nossos dias, pode ser motivo de conflitos incontornáveis, para muita gente, sem explicação. Por outro, onjango, ocoto, ociwo, são instituições havendo fogo.
Ainda que entronizado, no âmbito do direito consuetudinário, sob patrocínio indiscreto do Comité Central do MPLA, no final da cerimónia, Ekwikwi V e os seus mais próximos antecessores não se muniram do poder teocrático, instrumento imprescindível na intercessão com os akokoto. A chuva não cai quando necessário nem descobrem os “feiticeiros”. E mais, omitiram o porte das vestimentas cerimoniais que dar-lhes-iam a imagem de agentes da autoridade tradicional endógena substituindo-as por uniformes exóticos.
Não passaram despercebidas as 5 luxosas mudas ocidentais exibidas pelo rei Ekwikwi V, em 5 dias ao III Encontro Nacional sobre Autoridades Tradicionais Angolanas, tendo-se colocado em posição distintiva no cômputo do ambiente geral da conferência. Pelas ilustrações visualizadas nos portes foi possível entender que elas foram, da sua encomenda e seu mando, quando, com total ironia colocava-se na liderança da lide sobre o melhoramento de subsídios e regresso aos uniformes costumeiros.
Pelo indumento, Ekwikwi V, caracterizou-se órfão do Direito Consuetudinário por não saber que entre os bantu não há espaço para túnicas à semelhança das tradições médio-orientais. Tanto os olosekulu, quanto às autoridades do direito positivo de que foi servente, não se indignaram em emprestar-lhe rudimentos que, se adquirem durante o ekwenje, como pressuposto primário para se tornar verdadeiro ukwacisoko, ukwelombe.
Da pior hipótese, acreditar-se-ia na modernidade, partindo da arquitectura chinesa que o Governo angolano ofereceu em obra da Elombe do reino do Bailundo. O paradoxo consiste no princípio de como a modernidade seja consequência da tradição. A túnica em causa é secular reflectindo a modernidade de uma realidade costumada, não das adopções de Ekwikwi V, sem prever que o porte externo de alguém reflecte a sua mentalidade.
Não têm configurado as estruturas físicas no âmbito da realeza Mbalundu (cfr. FEIJÓ, 2000), além da floresta de ovilemba que mantêm conservadas por se tratar de plantas com reconhecida longevidade e indicativas do poder umbundu. Graças a esta envergadura têm sobrevivido. Ambos reis foram objectos reverentes à Administração Local do Estado que os assalariou na relação de dono do território e do povo.
Em suma, os reis do Bailundo, desde 1975, prestaram preito aos Administradores municipais desde André Ulamba, sendo primeiro Comissário do Bailundo, representando os interesses do MPLA, em 1976, ao Irineu C. Sakala, na mesma perspectiva, em 2016, altura da recolha destes dados.
A reverência e o preito que devem aos titulares do poder da Administração Local do Estado, justificam-se pelo facto de se tratar de uma entidade gestora das dinâmicas territoriais distribuídas entre comunas, regedorias, sobados (COELHO, 2010ª:347), embalas, espaços socio-geográficos que no período pré-colonial pertenceram aos Olosoma y’Olosoma, Olosoma Vinene, Olosoma, Olosekulu, “apata ‘famílias’”.
Relativamente à figura de ‘sobado’ introduzida no ordenamento administrativo do planalto de Angola, corresponde com a Ombala e Coelho (Íd.:ibid.) considera-a em nota de rodapé como
“termo híbrido que na língua portuguesa tem sido utilizado para designar a terra ou lugar e localidade, que geralmente é dirigida por um chefe político cuja designação é sóbà (plural: jísòbà) e a territorialidade. Correctamente, a noção de territorialidade é dada em kímbùndú pelo termo úsòbà”.
Desde 1975, que os reis, regedores, sobas e sekulus reduzem-se a símbolos e objectos veículos de propaganda partidária sobre as famílias com as Olombala nas áreas de jurisdição de um Administrador comunal, por isso, seus subordinados, mas sem relação de hierarquia estando assim introduzidos de forma solta, por uma questão de tentativa de manutenção de respeito aos valores culturais como reza o artigo 7º da CRA (2010).
A autoridade de Ekwikwi V, como todos os portadores de títulos relativos ao poder tradicional endógeno, 1) não possuiu povo (cfr. ISAACMAN, & VANSINA, 1987) havendo na região gente que 2) não alinha com o MPLA (cfr. NETO, 2001), 3) de outras origens etnolinguísticas que 4) nem consertam aos preceituados ovimbundu. E mais, o território designado, actualmente, por Bailundo é parte do ordenamento territorial de Angola, diferente de Mbalundu dos reis (cfr. SANJUKILA, 1997), diluído na República de Angola, em consequência do processo da colonização (cfr. NASCIMENTO, 1910 & 1912) e por inércia da herança das fronteiras de 1975.
Ekwikwi IV confortou-se no seu papel simbólico limitando-se às orientações superiores, ao contrário de Ekwikwi V, que sendo interventivo (cfr. PEREIRA, s/d), introvertido, desesperou-se como portador de um título de que muito acreditava, sem ponderar a análise sócio-histórica (cfr. NETO, 2001), face ao contexto (cfr. FEIJÓ, 2000) actual. Rei com todas mordomias da conjuntura marxista-leninista, beneficiário de viaturas características aos membros do poder angolano com motoristas e guardas da UPIP - Unidade de Protecção de Individualidades Protocolares, com os meios de comunicação ao seu dispor, ordenados em dias, cabazes de natal de primeira classe, Palácio edificado de arquitectura oriental, mobilado, a custo zero, escritórios fora da localidade, não teria como pensar o contrário de não ser “rei dos ovimbundu”, geograficamente, por si delimitados.
Engrandecia-se, com tudo isto adicionado a cerca de 35 súbditos, portadores de uniformes dos sobas, dando a entender que havia uma Ombala com Elombe funcionais, mas, destes, apenas 8 cadastrados pela Administração Local do Estado sob hierarquia directa do Administrador Comunal. Sobre o assunto, lamentara Ekwikwi V por precisar “de mais sobas para trabalhar comigo mas têm que ir às lavras porque não têm salários”. Dos 35 necessários aos serviços auxiliares do rei, 27 súbditos eram voluntários, apartidários, incógnitos, desprovidos de mensalidades e uniformes.
Ekwikwi V, procurou impor-se a todo preço com discursos e visitas no seio de um vasto e heterogéneo povo incompetente em dar-lhe vénia, depreciado que soba zonal. Era, aparentemente, respeitado pelas autoridades de direito positivo, visitado por turistas, estudantes e estudiosos, convidado à bancada de cerimónias de aberturas e encerramentos de eventos sociais e políticos, enquanto os vakwelombe, desamparados desinteressaram-se, afastaram-se por necessidade da luta pela sobrevivência.
Na prática, o reinado de Ekwikwi V desandou por carecer-lhe o essencial que, entre os atributos característicos à autoridade tradicional endógena, tal como Ekwikwi III e Ekwikwi IV, os poderes militar, teocrático e diplomacia, o estabelecimento do sistema de vassalagem, o controlo de impostos, a gestão de terras e fronteiras (cfr. BRANCO, s/d), pelo que, por mais que haja vontade de reabilitar as estruturas reais pré-coloniais, por lhes desproverem os meios imprescindíveis não elevando a tradição à modernidade endógena.
Simbólica que é (cfr. ISAACMAN & VANSINA, 2010), a figura do rei hodierno está desprovida dos poderes do fogo perpétuo. O ateado na cerimónia ritualística da tomada de posse de Ekwikwi V, foi impartilhável, desprovido de fôlego da força da energia vital, sem relação transcendental com a alma Mbalundu.
Existem algumas práticas tradicionais endógenas, com alguma responsabilidade legível no ordenamento jurídico oficial para os sobas e regedores9, exceptuando os reis, mas sem força para se imporem à realidade quotidiana, nomeadamente, a arbitragem da justiça-negociante, com base nos códigos da família, das obrigações, coisas, sucessões e gestão comunitária.
As autoridades tradicionais reconhecidas auferem subsídios, em vez de salários mínimos, através do Ministério da Cultura, mas Ekwikwi V detinha o bastante para a sua coabitação à custa da inteligência alheia que o subsidiou, em jeito de um poder sombra. Apesar dos benefícios, esta dependência, tornou pesada a relação por estar sujeito de chantagens perante a) a Administração Local do Estado, necessitando dos seu favores para sobreviver e 2) os sobas e olosekulu, necessitando de apoios que os permitiram iludir às famílias sobre as competências da autoridade de jure.
Nesta conjuntura, a autoridade do rei do Bailundo, situou-se sobre a linha de instabilidade de que qualquer uma das partes, isto é, a Administração Local do Estado ou os conselhos dos olosekulu, não reconhecidos, retira-lhe o tapete dos pés sempre que quiser deixando-o sem chão para se manter. Para tal demostração a ASSAT confirmou em 2021.
O poder de Ekwikwi V revelou-se anómalo, sobrevivo dos favores, independentemente das suas peculiares características. Tratando-se de uma realidade, aparentemente, monárquica, como todas reveladas entre os planálticos, na perspectiva do direito germânico-romano, Mbalundu subentenderia um conjunto de dinastias destacando-se, pelo menos, 6: os Katyavala (vakatyavala), os Cingi (vatchingi), Ekwikwi (vekwikwi), Numa (vanuma), Cisende (vatctisende) e a dos Tchivukuvuku (vatchivukuvuku).
Decorre que, o enquadramento do conceito dinastia (cfr. SOUINDOULA, 2013), como os demais relativos ao ordenamento jurídico consuetudinários não se encastoa na realidade de princípios bantu, à semelhança de todos adstritos aos sistemas de parentesco multifuncional.
Mesmo sem referências de realce histórico, a dinastia dos “vacisende” foi a mais presente na liderança do Estado Mbalundu. Porém, foi Mutu ya Kevela que, em menos de um ano no poder, maior proeza militar desencadeou (cfr. PELISSIER, s/d), sem adopções de valores exóticos, nem sucessores ou herdeiros. Por seu turno, a dos “vekwikwi” terá servido de inspiração político-partidária por razões atrás elencadas. Enquanto dinastia, o título de Ekwikwi II distanciou-se ao de Ekwikwi I por 22 lugares de linhagens diferentes e os 3 últimos não foram sustentáveis.
Ekwikwi I que adviera de linhagens anónimas, foi também sucedido por um anónimo. Ekwikwi II terá ascendido de Ekongo Ly’Ohombo. Ekwikwi III, Manuel da Costa, foi titular do trono, sem histórico desde 1977.
Ekwikwi IV, Augusto Katchitiopololo, antes Ekwikwi III, apareceu no contexto em consequência do sumiço do Ekwikwi III, Manuel da Costa, tendo sido ao mesmo tempo seu sucessor, ainda em vida e no âmbito das suas funções. O paradoxo reside no facto de ter havido 2 reis Ekwikwi III na mesma legislatura. Falecido, em 1998, o primeiro Ekwikwi III, sucedeu-lhe o rei Utondosi II partilhando o tempo e o espaço com o segundo Ekwikwi III. Bailundo continuou com 2 reis divididos pela fidelidade partidária, sendo o primeiro da UNITA e o segundo do MPLA.
Ekwikwi IV do MPLA ascendeu ao título, em 1996, 2 anos antes do óbito de Ekwikwi III da UNITA, substituído por Utondosi II, em 2008, ano que Ekwikwi III do MPLA passou a Ekwikwi IV pressupondo que, neste ano 2008, o Bailundo conheceu a ascensão de 2 reis para a mesma realidade sócio-histórica.
Em síntese:
1977, Ekwikwi III, Manuel da Costa, de aparição ignota, sem grande expressão do título, é reclamado pelo MPLA;
1980, Ekwikwi III, Manuel da Costa, escapa da prisão do MPLA, para uns e para outros, é rapto da UNITA e assentado na Jamba;
1980, Ekwikwi III, António Katchitiopololo, reclamado pelo MPLA, substitui Manuel da Costa fugitivo do MPLA ou raptado pela UNITA;
1992, Ekwikwi III, Manuel da Costa, reassentado no Bailundo, continua servindo a UNITA, paralelamente a Ekwikwi III, António Katchitiopololo ao serviço do MPLA, a partir do Huambo enquanto refugiado;
1996, Ekwikwi IV, António Katchitiopololo, de reinado formalizado pelo MPLA para o qual serve;
1998, Ekwikwi III, Manuel da Costa, falece como rei do Bailundo ao serviço da UNITA;
1998, Utondosi II, Jeremias Lusati, formaliza a substituição do rei falecido ao serviço da UNITA;
1998, Ekwikwi IV, António Katchitiopololo, elencado na lista de deputados pela bancada do MPLA;
2010, Ekwikwi II, nome oficial ignoto, homenageado pelo Governo angolano com a exposição da estátua no centro da cidade do Bailundo;
2012, Ekwikwi IV, António Katchitiopololo, fale o rei e deputado pela bancada do MPLA;
2012, Ekwikwi V, Armindo Francisco Kalupeteka, entronado em cerimónia de Estado, o rei do Bailundo, membro do Comité Central do MPLA.
2021, Ekwikwi V, Armindo Francisco Kalupeteka, destronado o rei do Bailundo, em reunião surpreendente da ASSAT.
Apesar de tratar-se de disputas antigas, desde ao tempo da luta contra o colonialismo que os sobas eram presas fáceis do sistema colonial e dos movimentos de libertação, a partir de 1991, desencadearam-se tentativas de encaixe. O perfil de escolha dos sujeitos ao simbolismo real endógeno, não era muito exigente, bastando a fidelidade e total serventia para ser beneficiário da relativa confiança da Administração Local do Estado. Tem se procurado explorar a relação entre estas autoridades e o eleitorado sendo, intrinsecamente, substantiva como também legitimadora.
Certo é que, o problema entre quem sucede e quem herda a legitimidade não encontrou solução. Entre os ovimbundu a sucessão era de responsabilidade do conselho do onjango y’Elombe e a transmissão era património de linhagens uterinas. Sendo ambas a mesma coisa; - “legitimidade do onjango y’Elombe”, a diferença consistiu na existência de filhos uterinos, os considerados «nossos “omalã vetu”» e filhos de casa sendo «os meus “omalã vange”».
Segundo os mais-velhos, «o que esquece na lavra, perseguir-te-á até à casa”. Na perspectiva eleitoral o MPLA e a UNITA terão escolhido «os nossos» ficando «os meus» filhos em desamparo. Só que existem 2 realidades atreladas no poder da autoridade tradicional: i) a reconhecida (cfr. CRA, 2010), nomeada, assalariada; ii) a hibernada entre as famílias embargando a hegemonia do poder real. Das consequências resultaram 3 encontros nacionais em que discutiram a viabilidade do poder das autoridades tradicionais endógenas, sem sucessos visíveis pois, “o que esquece na lavra, perseguir-te-á até à casa”.
A retradicionalização do poder das autoridades tradicionais endógenas data desde ao início da colonização de Angola, a partir de 1921, com as mais variadas reformas, ao surgimento da figura de regedores, tendo aumentado de intensidade, de 1976. Que fossem elas a inventar o Estado angolano sendo autoridades do poder originário (CRA, 2010:15), o passivo-activo da República de Angola.
O que aconteceu, no caso do Bailundo vs Mbalundu, foi a celebração de um conjunto de actos de sucessão de cargos políticos e não de herança de incumbências do poder da autoridade tradicional endógena. Em sua própria defesa, os sobas, não poucos, decidiram formar-se em Direito, querendo serem juristas, mas resvalam porque tal curso ministrado, por desenquadra-se da realidade bantu, centrado em teorias catequéticas germânico-romanas com todas as fraquezas características à universidade angolana.
Há problemas de interpretação do poder das autoridades tradicionais endógenas, desde 1975, por se considerar remanescente do pouco civilizado do sistema colonial tuga de tradição germânico-romana. A gestão do conceito “tradição”, autoridade “tradicional”, no contexto em que se aborda, permite a emersão das mais variadas ambiguidades. O esforço de reconhecimento deste poder torna-se desacerto por esperar pela boa-fé da CRA para se reconhecer mesmo sendo prévio. Entre os bantu, o reconhecimento da maternidade pelo filho é impraticável, bastando a gestação da irmã para se confiar na cidadania do nascituro. A destituição de um rei umbundu por perda de confiança implica derrame de sangue, por envenenamento ou golpe de estado implicando a espoliação do crânio.
É inquestionável a modernização do poder político endógeno, sem atropelar a transversalidade de alguns pressupostos: o ekwenje, sendo a escola de cidadania que garante a sucessão diferenciando-a da herança política. Quase desapareceu e o seu retorno faz-se através de cursos de Direito Consuetudinários enquadrados na educação formal.
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- 1. Comunicação de Ana Maria de Oliveira apresentada no III Encontro Nacional sobre Autoridades Tradicionais Angolanas, Luanda.
- 2. Regedor e rei auferem 25000,00 Kz. Soba e sekulu auferem 15000,00kz por mês. Cerca de USD 25,00 a 15,00, no primeiro trimestre de 2021.
- 3. Foi dos maiores informadores-chave que o CERTO conheceu de 1997 a 1999.
- 4. Representando o Governo de Angola independente
- 5. Designação de Governadores provinciais, dada pelo regime administrativo marxista-leninista, então vigente
- 6. Designação de Administradores municipais, dada pelo regime administrativo marxista-leninista, então vigente
- 7. Grande parte dos nomes reais dos líderes políticos perdeu-se nos pseudónimos e adopções de nomes dos anteriores ou no contexto em que se governou.
- 8. Até ao momento que actualizamos as presentes reflexões, não se conhece, líder “tribal” algum, de Angola, que tanto viaja pelo estrangeiro que Ekwikwi V. Aquando do III Encontro Nacional sobre Autoridades Tradicionais Angolanas, garantiu, ao CERTO, que acabava de chegar da África do Sul.
- 9. Designados genericamente por autoridades tradicionais