Epistemologias do Sul
Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações:
aprender que existe o Sul;
aprender a ir para o Sul;
aprender a partir do Sul e com o Sul.
A procura especulativa do conhecimento é uma componente central da cultura humana. Mas o vasto campo das interrogações abrangidas pela reflexão filosófica excede em muito a racionalidade moderna, com as suas zonas de luz e sombra, as suas forças e fraquezas. Foi a partir desta constatação que, em 1995, Boaventura de Sousa Santos propôs o conceito de “epistemologia do Sul”, o qual veio a suscitar vários debates.1 Este número da Revista Crítica de Ciências Sociais ambiciona alargar a discussão sobre a diversidade epistemológica do mundo, apresentando algumas das controvérsias que o tema tem gerado.
A constituição mútua do Norte e do Sul e a natureza hierárquica das relações Norte‑Sul permanecem cativas da persistência das relações capitalistas e imperiais. No Norte global, os ‘outros’ saberes, para além da ciência e da técnica, têm sido produzidos como não existentes e, por isso, radicalmente excluídos da racionalidade moderna. A relação colonial de exploração e dominação persiste nos dias de hoje, sendo talvez o eixo da colonização epistémica o mais difícil de criticar abertamente. A relação global etno-racial do projecto imperial do Norte Global vis à vis o Sul Global – metáfora da exploração e exclusão social – é parte da relação global capitalista. Esta hierarquização de saberes, juntamente com a hierarquia de sistemas económicos e políticos, assim como com a predominância de culturas de raiz eurocêntrica, tem sido apelidada por vários investigadores de ‘colonialidade do poder’. Uma das expressões mais claras da colonialidade das relações de poder acontece com a persistência da colonização epistémica, da reprodução de estereótipos e formas de discriminação.
A entrada no século XXI, porém, exige uma etnografia mais complexa, que torne visíveis alternativas epistémicas emergentes. Um dos elementos mais críticos desta etnografia é a estrutura disciplinar do conhecimento moderno.
As disciplinas académicas representam uma divisão de saberes, uma estrutura organizativa que procura tornar gerível, compreensível e ordenado o campo do saber, ao mesmo tempo que o disciplina, endossando e justificando desigualdades entre saberes e criando outras formas de opressão, que perpetuam a divisão abissal da realidade social; o que não está conforme o definido pela racionalidade moderna volatiliza-se e desaparece.
Este desaparecimento ou subalternização de outros saberes e interpretações do mundo significa, de facto, que estes saberes e experiências não são considerados formas compreensíveis ou relevantes de ser e estar no mundo; sendo estas epistemologias “outras” declaradas não existentes, ou descritas como reminiscências do passado, condenadas a um esquecimento inevitável. Como Boaventura de Sousa Santos tem vindo a argumentar, no campo do conhecimento esta divisão radical entre saberes atribuiu à ciência moderna o monopólio universal de distinção entre o verdadeiro e o falso, gerando as profundas contradições que hoje persistem no centro dos debates epistemológicos.
As críticas pós-coloniais revelam questões fulcrais de conhecimento/poder, especialmente a persistência da dominação epistémica de matriz colonial para além do processo das independências políticas. Neste sentido, o pós-colonial deve ser visto como o encontro de várias perspectivas e concepções sobre o conhecimento e o poder, um idioma que procura reflectir sobre os processos de ‘descolonização’, que nos espaços da metrópole, quer nos espaços colonizados.
Deste modo, a problemática da pós-colonialidade passa por uma revisão crítica de conceitos hegemonicamente definidos pela racionalidade moderna, como sejam história, cultura ou conhecimento, a partir de uma perspectiva e condição de subalternidade. Como os ensaios que integram esta edição revelam, revisitar estes conceitos integra várias exigências: a histórica, ou seja, a necessidade de repensar todos os passados e perspectivas futuras à luz de outras perspectivas, que não as do Norte global; a ontológica, que passa pela renegociação das definições do ser e dos seus sentidos; e, finalmente, a epistémica, que contesta a compreensão exclusiva e imperial do conhecimento, desafiando o privilégio epistémico do Norte global.
Esta proposta é alvo de análise por João Arriscado Nunes, que, no seu artigo “O resgate da epistemologia”, procura avaliar, a partir de uma análise ontológica, as transformações e crises que ocorreram no seio do projecto da epistemologia moderna. Revisitando de forma crítica o pragmatismo filosófico como a forma mais radical de crítica da epistemologia convencional, o texto explora as possibilidades de criação de um espaço de diálogo entre a crítica como projecto filosófico e a proposta de uma epistemologia do Sul global. Para o autor, este projecto epistémico passa a abranger explicitamente todos os saberes, o que leva à necessidade de estabelecer as condições da sua produção e validação, conforme o ensaio analisa.
O artigo de Nelson Maldonado-Torres, “A topologia do ser e a geopolítica do conhecimento: modernidade, império e colonialidade”, dá conta do profundo questionamento que a crítica filosófica pós-colonial tem vindo a dirigir às diferenças coloniais e imperiais através da forma como produziram e mantêm as narrativas imperiais. Através de uma crítica detalhada das raízes das concepções modernas do Ocidente, o autor revela as implicações resultantes de uma utilização persistente e acrítica de muitas noções e conceitos repletos de pressupostos coloniais e racistas. Partindo de uma leitura crítica de Fanon, Nelson Maldonado‑Torres avança com uma proposta de diversidade radical e de geopolítica descolonial.
O ensaio “Para decolonizar os estudos de economia política e os estudos pós—coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global” apresenta a proposta de Ramón Grosfoguel para ampliar o debate epistémico, centrando-se numa análise crítica e detalhada da descolonização do capitalismo global. A busca de “outros” projectos utópicos como horizonte de emancipação ganha sentido através do desenhar de cartografias outras das relações de poder do sistema mundo, que este autor conceptualiza como Europeu/Euro—Norte-americano moderno, colonial capitalista e patriarcal.
A abertura à diversidade da produção académica ancorada nos espaços de enunciação é analisada por Paulin Hountondji, cujo ensaio “Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos” é revelador da problemática associada ao local de referência da produção de conhecimento. Os silêncios paradigmáticos sobre a complexidade do passado e do presente africano resultam na exclusão epistémica da realidade social, política e económica do cânone das ciências sociais e humanas, a qual se realiza através da particularização e periferização do “fenómeno africano”. Este imaginário, produto das fantasias epistémicas ocidentais, é posto em causa por Paulin Hountondji, que advoga a apropriação, pelos próprios africanos, do saber acumulado sobre si.
É fundamental que as diferentes culturas possuam imagens concretas sobre si próprias e sobre as outras, assim como das relações de poder e de saber que as unem. Todavia, estas representações reflectem sempre as relações históricas de dominação e de diálogo que as constituíram. A partir desta tese, Maria Paula Meneses, debruçando-se sobre a análise de um suposto caso de tráfico humano em Moçambique, discute a importância das traduções etnográficas como forma de alargar as epistemologias do Sul. Neste ensaio, intitulado “Corpos de violência, linguagens de resistência: as complexas teias de conhecimentos no Moçambique contemporâneo” a autora problematiza os mal-entendidos resultantes da incompreensão das diferenças culturais, sugerindo que a tradução requer um persistente envolvimento com a aprendizagem da diferença como forma de a compreender e ultrapassar, exigindo envolvimento directo (incluindo lutas entre experiências e saberes) e produzindo transtornos profundos nas expectativas pessoais e culturais.
Vários dos artigos que integram este número temático alertam para o risco do relapso das reificações funcionalistas da “tradição”; a insistência na tradição como forma de contrapor a racionalidade moderna a outros saberes e experiências, considerados tradicionais porque anteriores à modernidade, limita a possibilidade crítica e analítica da estrutura conceptual sobre a qual assentam as concepções ideológicas da modernidade.No fecho destas reflexões, um texto de Liazzate Bonate questiona a aparente estagnação e falta de criatividade na jurisprudência muçulmana, desafiando o postulado da jurisprudência islâmica clássica sobre o “encerramento dos portões da ijtihad”. A tradição da descentralização da autoridade religiosa e a ausência de uma tensão importante entre as várias escolas de jurisprudência islâmica ajudaram os ulama a manter uma considerável autonomia em relação ao Estado. Simultaneamente, a inexistência de uma autoridade centralizada ou hierarquia entre os estudiosos da religião tornou difícil qualquer tentativa de controlo por parte das autoridades seculares. Numa situação que se distingue do ambiente judaico-cristão, as esferas religiosa e secular existiram de forma separada, o que suscitou, como Liazzate Bonate sugere, que em lugar de um direito divino, o Islão reconhecesse a necessidade do direito sancionado de forma divina.
Finalmente, a encerrar este número temático da Revista Crítica de Ciências Sociais, Margarida Gomes e Túlio Moniz apresentam-nos, em Espaço Virtual, a avaliação de três páginas electrónicas, espaços abertos à discussão da pluralidade epistémica, testemunhas da vitalidade da discussão e da pesquisa em torno da problematização do conhecimento.
Os desafios e o debate sobre o que constitui conhecimento válido, de quem, para quem e sobre quem, continuam. Tal como outros números temáticos desta Revista, o presente procura contribuir para a descolonização do saber, articulando, de forma consistente, perspectivas críticas à epistemologia moderna, em estreita associação com abordagens contra-disciplinares; em conjunto, procuram alterar os sentidos e explicações dominantes, desafiando as fundações das relações epistémicas imperiais. As epistemologias do Sul procuram incluir o máximo das experiências de conhecimentos do mundo, incluindo, depois de reconfiguradas, as experiências de conhecimento do Norte. Abrem-se pontes insuspeitadas de intercomunicação, algumas das quais são objecto de questionamento neste número temático. A complexidade dos debates em torno do conhecimento – para além da ciência e da técnica – fica aqui esboçada, como proposta de alargamento a uma reflexão mais ampla sobre este mundo tão complexo e diverso.
Referência do documento impresso
Maria Paula Meneses, « Epistemologias do Sul », Revista Crítica de Ciências Sociais, 80 | 2008, 5-10.
Referência eletrónica
Maria Paula Meneses, « Epistemologias do Sul », Revista Crítica de Ciências Sociais[Online], 80 | 2008, colocado online no dia 01 Outubro 2012, criado o 02 Setembro 2013. URL : http://rccs.revues.org/689
- 1. Vejam-se vários dos artigos que integram os livros organizados por Boaventura de Sousa Santos, nomeadamente Conhecimento prudente para um futuro decente: ‘Um discurso sobre as ciências’ revisitado (Porto: Afrontamento, 2003) e Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais (Porto: Afrontamento, 2004). E ainda, a título de exemplo, Walter Mignolo “Citizenship, Knowledge, and the Limits of Humanity”, American Literary History, 18(2), 2006, 312‑331; Huish, Robert, “Logos a Thing of the Past? Not So Fast, World Social Forum!”, Antípode, 38(1), 2006, 1-6. Topo da página