Ler Noémia de Sousa hoje

Noémia de Sousa, poeta moçambicana nascida em Catembe em 1926, foi publicando poesia em diversas revistas, como “O Brado Africano”, “Itinerário”, “Notícias do Bloqueio” e “Mensagem” (seria ainda de destacar a Revista “Sul”, de Florianópolis, a qual contribuiu para desenvolver um importante diálogo sul-sul, nomeadamente entre o Brasil e Angola, e o Brasil e Moçambique, e na qual vários autores publicaram pela primeira vez, dando voz, com maior ou menor discrição, às suas ideias políticas e sociais), tendo esta ficado dispersa até 2001, altura em que foi reunida e publicada sob o título “Sangue Negro”, editado pela Associação dos Escritores Moçambicanos.

O que é excecional na poesia de Noémia de Sousa é, por um lado, esta constituir um dos primeiros testemunhos de resistência feminina contra a opressão colonial portuguesa e, por outro lado, dar voz aos que a não tinham, nomeadamente aos negros, às mulheres, às profissionais do sexo, aos operários, estivadores, mineiros, e demais trabalhadores oprimidos. A sua é uma voz límpida, clara e inaugural. É uma voz que, plena de uma perpétua lucidez que a eleva, não deixa, todavia, de deixar um rasto de luminosa esperança que ainda hoje nos chega.

Depois de ter passado por Lisboa, onde viveu entre 1951 e 1964 (chegando a ser uma das habitantes da “Casa dos Estudantes do Império”), Noémia de Sousa exilou-se em Paris, cidade onde trabalhou como tradutora. Viria a morrer em 2002 em Portugal, país onde a sua obra quantas vezes passa despercebida e no qual, atualmente, nem se consegue encontrar com facilidade uma edição do seu livro de poemas.

'Rape' quadro de Malangatana.'Rape' quadro de Malangatana.

Convido-vos a (re)ler o poema “Moças das Docas”, no qual este breve texto se foca.

Moças das Docas”

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,

Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados, 

nossas almas trancadas,

nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,

de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,

Viemos…
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,

do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança.

Viemos…
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos….
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,

saciaram generosamente fomes e sedes violentas…
Nossos corpos pão e água para toda a gente.

Viemos…
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre

substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta…

E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade…

E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,

rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool, voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável…

Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios! Piedade não trará de volta nossas ilusões

de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.

Piedade não é para nós.

Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,

quando nossas cabeças se puderem levantar novamente

com dignidade

e formos novamente mulheres!

 

No seu poema “Moças das Docas”, Noémia de Sousa lança o seu olhar sobre as mulheres moçambicanas, em particular as que trabalham nas docas nos negócios do prazer, i.e., as prostitutas. Todavia, essa centragem é também uma centragem sobre a sua própria condição de mulher, dado que a poeta se inclui na categoria das fugitivas do poema. Com efeito, Noémia abre o poema da seguinte maneira “Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço/Fugitivas das Munuanas e dos Xipamanines”, o que nos oferece duas pistas de leitura. A primeira é que Noémia se inclui nas mulheres de que o poema fala e se solidariza com as mulheres nele contidas. A segunda é que estas mulheres são provenientes de bairros de lata onde a pobreza grassa. Arrastadas pelas suas próprias circunstâncias de vida (são pobres e estão desesperadas), são forçadas a prostituir-se. Ao optar por criar um eu lírico coletivo - “nós” - Noémia de Sousa oferece outra força ao poema. Não é uma mulher que está a falar, são muitas, não é um caso momentâneo e individual, são múltiplos.

Noémia passa depois a caraterizar essas “moças das docas”, fazendo uso das metáforas – “olhos espantados”, “almas trancadas”, “corpos submissos escancarados”. De dia, essas mulheres vendem tecidos que elas próprias não têm capacidade económica para comprar, estando todo o dia vergadas, de que resultam dores nos ombros; à noite, são forçadas a deitaram-se sobre esses mesmos ombros, continuando a trabalhar, e isto continuamente.

O que é de destacar neste poema são as maravilhosas e, à primeira vista, inusitadas associações propostas pela poeta. Com os seus “estômagos esfarrapados de fome”, estas mulheres oferecem os seus “corpos capulanas quentes” que “são pão e água para toda a gente” aos “homens loiros e tatuados de portos distantes” que, a cada partida as deixam mais desesperadas e despidas de esperança. A poeta, ao caraterizar os marinheiros como “loiros” está a chamar a atenção para o facto de estes serem provenientes de países colonizadores. A submissão destas mulheres é, pelo menos, tripla – ela é uma submissão à necessidade e às circunstâncias da vida; é uma submissão (física, concreta, carnal) a estes homens; e é uma submissão aos colonizadores que têm poder económico suficiente para poderem comprar prazer físico. Não seria, aliás, a este propósito, disparatado, pensar no poema “Moças das Docas” como uma grande metáfora que opõe oprimidos e opressores -  a mulher, tradicionalmente vista como fraca, é oposta ao homem, “o forte”; a “prostituta” é oposta ao seu “chulo” controlador; o homem “preto” é oposto ao homem “branco”; o “colonizado” é oposto ao “colonizador”; o “africano” é oposto ao “europeu”; o “Sul” é oposto ao “Norte”; e assim por diante.

Estas mulheres, à primeira vista, já não possuem qualquer esperança. Olham para o seu futuro e vêm-se “Sombrias”, os seus “corpos floridos de feridas incuráveis”, e os seus “dentes apodrecidos de tabaco e álcool”, o seu corpo vergado pelas dores. Todavia, estas mulheres rejeitam toda e qualquer forma de piedade. Não pedem piedade à vida, nem aos que delas se aproveitam para benefício próprio. Pelo contrário, pedem à vida que lhes devolva a esperança que perderam.

As trocas mercantis de prazer físico não envolvem amor nem ternura, e são completamente diferentes dos tímidos sonhos que estes mulheres ainda acalentam de amar e ser amadas – “quando mãos molhadas de ternura vierem/erguer nossos corpos doridos submersos no pântano”. Essa esperança é fundamental para que possam continuar a esperar o dia em que recuperem a sua condição de mulheres. Está, portanto, patente no poema a ideia de que anos de abuso, exploração e violência física e psicológica contra estas mulheres lhes retirou parte da sua identidade, que não perderam, todavia, a vontade de recuperar.

E hoje? Que pistas nos oferece este poema? A situação nele expressa, ainda que sob outros contornos, continua a existir. Em todos os países do mundo persiste a dicotomia opressor-oprimido, rico-pobre, forte-fraco, branco-preto, mundo desenvolvido-mundo em vias de desenvolvimento… Continuam a haver abusos de poder, exploração do mais forte sobre o mais fraco, e a desigualdade económica, social e cultural grassa. Este poema de Noémia de Sousa, assim como todos os poemas que esta escreveu, continuam, por isso atualíssimos. Comecei por dizer que a poesia de Noémia de Sousa é um testemunho de resistência feminina. Mas esse testemunho não ficou no passado. Pelo contrário - é um testemunho imbuído de uma hodiernidade que nos reclama a todas e a todos, cidadãos do século XXI, pensamentos em combustão.

por Ana Sofia Souto
A ler | 4 Janeiro 2021 | mulheres, noémia de sousa, poesia, Trabalho Sexual