Mali: análise de Samir Amin

A intervenção francesa no Mali suscitou entre progressistas e anti-imperialistas posições, por vezes, contraditórias. Este texto, vindo de um militante anti-imperialista e terceiro-mundista incontestável, constitui um contributo importante para o debate. Coloca a intervenção francesa no quadro da geopolítica mundial.

Eu sou daqueles que, por princípio, condenam qualquer intervenção militar das potências ocidentais nos países do Sul, dado que estas intervenções estão, por natureza, submetidas às exigências da alargamento do controlo do Planeta pelo capital dos monopólios que dominam o sistema.

A intervenção francesa no Mali é uma exceção à regra?

Sim e não.

É por essa razão que eu apelo a que seja apoiada, sem  minimamente pensar, todavia, que ela irá trazer a resposta necessária à contínua degradação das condições políticas, sociais e económicas não apenas do Mali, mas do conjunto dos países da região, que é ela própria o produto das políticas de extensão do capitalismo dos monopólios da tríade imperialista (Estados Unidos, Europa, Japão), sempre em ação, tal como é ela que está na origem da implantação do Islão político na região.

O Islão político reacionário, inimigo dos povos concernentes e aliado maior das estratégias da tríade imperialista

O Islão político - para lá da variedade aparente das suas expressões - não é um «movimento de renascimento da fé religiosa» (quer esta agrade ou não), mas uma força política arqui-reacionária que condena os povos que são vítimas eventuais do exercício do seu poder, à regressão em todos os planos, tornando-os por essa via incapazes de responder positivamente aos desafios com que são confrontados.  Este poder não constitui um travão à prossecução do processo de degradação e de empobrecimento em curso há três décadas. Pelo contrário, acentua-lhe o movimento de que ele próprio se alimenta.

Essa é a razão fundamental pela qual as potências da tríade - tal como são e permanecem - veem nele um aliado estratégico. O apoio sistemático dado por essas potências ao Islão político reacionário foi e continua a ser uma das principais razões dos «sucessos» que ele registou: os Talibãs do Afeganistão, o FIS (Frente Islâmica de Salvação) na Argélia, os «Islamitas» na Somália e no Sudão, os da Turquia, do Egito, da Tunísia e, além disso, beneficiaram todos deste apoio num momento decisivo da sua tomada do poder local. Nenhuma das componentes ditas moderadas do Islão político se demarcou nunca verdadeiramente dos autores de atos terroristas das suas componentes ditas «salafistas». Todas beneficiaram e continuam a beneficiar do «exílio» nos países do Golfo, quando é necessário. Ontem na Líbia, na Síria ainda hoje, elas continuam a ser apoiados por estas mesmas potências da tríade.  Ao mesmo tempo, as extorsões e os crimes que cometem estão perfeitamente integrados no discurso de acompanhamento da estratégia fundada no seu apoio: permitem dar credibilidade à tese de «uma guerra de civilizações» que facilita  a união «consensual» dos povos da tríade ao projeto global do capitalismo dos monopólios. Os dois discursos - a democracia e a guerra terrorista - completam-se mutuamente nesta estratégia.

É preciso uma boa dose de ingenuidade para acreditar que o Islão político de alguns - qualificado de «moderado» - poderia ser dissolvido na democracia. É verdade que há partilha de tarefas entre estes e os «salafistas» que os ultrapassariam, diz-se, com uma falsa ingenuidade pelos seus excessos fanáticos, criminosos, até mesmo terroristas. Mas o seu projeto é comum - uma teocracia arcaica por definição nos antípodas da democracia mesmo minimal.

O Sahelistão, um projeto ao serviço de que interesses ?

De Gaulle tinha acariciado o projeto de um «Grande Sahara francês». Mas a tenacidade da “Frente de libertação nacional” (FLN) argelina e a radicalização do Mali e da União Sudanesa de Modibo Keita fez falhar definitivamente o projeto a partir de 1962-1963. Se porventura existem ainda em Paris alguns nostálgicos do projeto, creio que não estão em condições de convencer os políticos dotados de uma inteligência normal da possibilidade de o ressuscitar.

De facto, o projeto do Sahelistão não é o da França - apesar de Sarkozy se lhe ter juntado. É eventualmente o da nebulosa constituída pelo Islão político em questão e beneficia do olhar eventualmente favorável dos Estados Unidos e, na sua senda, dos seus apoiantes na União europeia (que não existe) - a Grã-Bretanha e a Alemanha.

O Sahelistão « islâmico » permitiria a criação de um grande  Estado que cobriria uma boa parte do Sahara maliano, mauritano nigeriano e argelino dotado de grandes recursos minerais: urânio, petróleo e gás. Este recursos não seriam abertos principalmente à França, mas em primeiro lugar às potências dominantes da tríade. Este «reino» à imagem do que é a Arábia saudita e os Emirados do Golfo, poderia facilmente «comprar» o apoio da sua escassa população e os seus emires podiam transformar em fabulosas fortunas pessoais, a fração da renda que lhes seria deixada.  O Golfo, continua a ser, para as potências da tríade, o modelo de melhor aliado/servidor útil, apesar do caráter ferozmente arcaico e esclavagista da sua gestão social - eu diria, graças a esse caráter. Os poderes estabelecidos no Sahelistão abster-se-iam de prosseguir ações terroristas no seu território sem, no entanto, se coibirem de as apoiar eventualmente noutros lugares.

A França, que tinha conseguido salvaguardar do projeto do « Grande Sahara » o controlo do Níger e do seu  urânio, passaria a ocupar apenas um lugar secundária no Sahelistão.

E acontece que F. Hollande – honra lhe seja feita – o compreendeu  e recusou. Não devíamos admirar-nos de ver que a intervenção que ele decidiu foi imediatamente apoiada por Argel e alguns outros países não classificados, no entanto, por Paris como «amigos». O poder argelino demonstrou a sua perfeita lucidez: ele sabe que o objetivo do Sahelistão visa também o Sul da Argélia e não apenas o Norte do Mali. Aliás, não nos deveríamos espantar que «os aliados da França» - os Estados Unidos, a Inglaterra, a Alemanha, para já não falar da Arábia Saudita e do Qatar - que são, na verdade, hostis a esta intervenção - tenham aparentemente aceitado a decisão de F. Hollande, só porque foram postos perante o facto consumado.  Mas não ficariam nada descontentes se vissem a operação estagnar e falhar. Isso dar-lhes-ia força para retomar o projeto do Sahelistão.

Ganhar a guerra do Sahara

Por isso, eu sou daqueles que desejam e esperam que a guerra do Sahara seja ganha, que estes Islamitas sejam erradicados da região (do Mali e da Argélia em particular) e que as fronteiras do Mali sejam restabelecidas. Esta vitória é a condição necessária incontornável, mas está longe de ser a condição suficiente, para uma posterior reconstrução  do Estado e da sociedade do Mali.

Esta guerra será longa, dispendiosa e penosa e o seu fim continua incerto. A vitória exige que se reúnam certas condições. Seria, efetivamente, necessário que as forças armadas francesas não abandonassem o terreno antes da vitória, mas também que um exército maliano digno deste nome seja rapidamente reconstituído. Porque é preciso garantir que não é a intervenção militar dos outros países africanos a garantir a vitória.

A reconstrução do exército maliano é, no entanto, possível. O Mali de Modibo tinha conseguido formar um exército competente e dedicado à nação, suficiente para dissuadir os agressores como são hoje os Islamitas de AQMI (Al Qaeda no Magrebe Islâmico). Este exército foi sistematicamente destruído pela ditadura de Moussa Traoré e não foi reconstruído pelos seus sucessores. Mas como o povo maliano tem plena consciência de que o seu país tem o dever de estar armado, a reconstrução do exército beneficia de um terreno favorável. O obstáculo é financeiro: recrutar milhares de soldados e equipá-los não está ao alcance dos atuais meios do país e nem os Estados africanos nem a ONU consentirão em ultrapassar esta miséria.  A França tem que entender que o único meio que permitirá a vitória obriga-a a fazer isso. A estagnação o e a derrota não seriam apenas uma catástrofe para os povos africanos, mas sê-lo-iam também para a França. A vitória constituiria um meio importante para restaurar o lugar da França no concerto das nações, até para além da Europa.

Não há muito a esperar dos países da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental). Os guardas pretorianos da maior parte destes países têm um exército apenas de nome. É verdade que a Nigéria dispõe de forças numerosas e equipadas, mas infelizmente pouco disciplinadas, é o mínimo que se pode dizer; e muitos dos seus oficiais superiores perseguem como único objectivo a pilhagem das regiões em que intervêm. O Senegal também dispõe de uma força militar competente e além disso disciplinada, mas pequena, à escala do país. Mais longe, em África, Angola e a África do Sul podiam dar alguns apoios eficazes; mas o seu afastamento geográfico, e talvez outras considerações, fazem correr o risco de não verem interesse nisso. Um empenhamento da França, firme, determinado e com a duração necessária, implica que a diplomacia de Paris entenda que é necessário tomar as devidas distâncias dos seus parceiros da NATO e da Europa. Esta partida está longe de estar ganha e nada indica, de momento, que  o governo de F. Hollande seja capaz de o ousar.

Ganhar a batalha diplomática

O conflito visível entre os honrosos objetivos da intervenção francesa no Mali e a prossecução da atual linha diplomática de Paris acabará rapidamente por ser intolerável. A França não pode combater os «Islamitas» em Tomboctu e apoiá-los em Alep!

A diplomacia francesa, ligada à NATO e à União europeia, partilha a responsabilidade dos seus aliados nos sucessos do Islão político reacionário. Ela provou-o de forma evidente na aventura líbia cujo resultado foi (e isso era previsível e certamente desejado, pelo menos por Washington) não para libertar o povo líbio de Kadhafi (um palhaço mais que um ditador), mas destruir a Líbia, que se tornou terra de operação dos senhores da guerra, diretamente na origem do reforço de AQMI no Mali.

Esta hidra do Islão político reacionário tanto recruta nos meios do grande banditismo como nos fanáticos de Deus. Para lá da «Jihad», os seus emires - que se autoproclamam defensores intransigentes da fé - enriquecem com o tráfico de droga (os Talibãs, o AQMI), de armas (os senhores da guerra líbios), da prostituição (os Kosovars).

Ora a diplomacia até hoje tem apoiado os mesmos, na Síria, por exemplo. Os media franceses dão crédito aos comunicados do pretenso Observatório Sírio dos Direitos do Homem, um laboratório conhecido por ser o da Irmandade  Muçulmana, fundado por Ryad El Maleh, apoiado pela CIA e pelos serviços britânicos. O mesmo é dar crédito aos comunicados de Ansar Eddine!  A França tolera que a designada «Coligação Nacional das Forças da Oposição e da Revolução» seja presidida pelo Cheikh Ahmad El Khatib escolhido por Washington, Irmão Muçulmano e autor do incêndio do bairro Douma em Damasco.

Eu ficaria surpreendido (mas a surpresa seria agradável) se F. Hollande ousasse dar um murro na mesa, como De Gaulle o tinha feito (sair da NATO, praticar na Europa a política da cadeira vazia). Não se lhe pede para fazer tanto, mas apenas para infletir as suas relações diplomáticas no sentido exigido para prosseguir a ação no Mali, para compreender que a França conta com mais adversários no campo dos seus «aliados» que no dos seus «inimigos»! Não seria a primeira vez que isso acontecia quando dois campos se confrontam no terreno diplomático.

Reconstruir o Mali

A reconstrução do Mali não pode ser obra apenas dos Malianos. Mais uma vez seria desejável ajudá-los em vez de erguer barreiras que tornam impossível essa reconstrução.

As ambições «coloniais» francesas - fazer do Mali um Estado cliente à imagem de alguns outros na região - talvez não estejam ausentes de certos responsáveis pela política maliana de Paris. A Françáfrica encontra sempre os seus porta-vozes, mas não constituem um perigo real, ainda menos maior. Um Mali reconstruído saberá também afirmar - ou reafirmar - rapidamente a sua independência. Em contrapartida, um Mali saqueado pelo Islão político reacionário seria incapaz, antes que passasse muito tempo, de conseguir um lugar honroso no tabuleiro regional e mundial. Como a Somália, arriscar-se-ia a ser riscado da lista dos estados soberanos dignos desse nome. 

O Mali tinha feito, na época de Modibo, avanços no sentido do progresso económico e social bem como da sua afirmação independente e da unidade das suas componentes étnicas.

A União Sudanesa tinha conseguido unificar numa mesma nação os Bambara do Sul, os pescadores Bozo, os camponeses Songhai e os Bella do vale do Níger, desde Mopti até Ansongo (esquece-se hoje que a maioria dos habitantes do Mali não é constituída pelos Tuaregues), e até fazer aceitar aos Tuaregues a libertação dos seus servos Bella. Acontece que por falta de meios - e de vontade após a queda de Modibo - os governos de Bamako, a seguir, sacrificaram  os projetos de desenvolvimento do Norte. Algumas reivindicações dos Tuaregues são, por este facto, perfeitamente legítimas.  Argel, que preconiza distinguir na rebelião dos Tuaregues (doravante marginalizados), com os quais é preciso discutir, Jihadistas vindos de outros lados - muitas vezes perfeitamente racistas relativamente aos «Negros» - dá prova de lucidez neste aspeto.

Os limites das realizações do Mali de Modibo, mas também a hostilidade das potências ocidentais (e da França em particular), estão na origem da deriva do projeto e finalmente do sucesso do odioso  golpe de estado de Moussa Traoré (apoiado até ao fim por Paris) cuja ditadura é responsável pela decomposição da sociedade maliana, do seu empobrecimento e da sua impotência. O poderoso movimento de revolta do povo maliano que surgiu, à custa de dezenas de milhar de vítimas, para derrubar a ditadura, tinha alimentado grandes esperanças de renascimento do país. estas esperanças foram defraudadas. Porquê?

O povo do Mali beneficia, desde a queda de Moussa Traoré, de liberdades democráticas sem paralelo. Contudo isso parece não ter servido para nada: centenas de partidos fantasma sem programa, parlamentares impotentes, corrupção generalizada. Analistas de espírito nem sempre livre de preconceitos racistas apressam-se a concluir que este povo (como os Africanos em geral) não está maduro para a democracia! Finge-se ignorar que a vitória das lutas do povo do Mali coincidiu com a ofensiva «neoliberal» que impôs a este país extremamente fragilizado um modelo de lumpen-desenvolvimento preconizado pelo Banco mundial e apoiado pela Europa e a França, gerador da regressão social e económica e do empobrecimento sem limites. São estas políticas as responsáveis máximas da falência da democracia, descredibilizada. Esta involução criou aqui, como noutros lugares, um terreno favorável ao crescimento da influência do Islão político reacionário (financiado pelo Golfo) não apenas no Norte capturado a seguir pelo AQMI, mas também em Bamako

A decrepitude do Estado maliano que daí resultou está na origem da crise que conduziu à destituição do presidente Amani Toumni Touré (refugiado depois no Senegal), ao golpe de Estado irrefletido de Sanogho e depois à tutela do Mali pela «nomeação» de um Presidente «provisório» - dito de transição- pela CEDEAO, cuja presidência é exercida pelo presidente da Costa de Marfim A. Ouattara que nunca foi senão um funcionário do FMI e do Ministério francês da cooperação.

É este Presidente cuja legitimidade aparece aos olhos dos malianos como nula, que faz apelo à intervenção francesa. Este facto enfraquece consideravelmente a força do argumento de Paris embora seja diplomaticamente impecável: que Paris respondeu ao apelo do Chefe de Estado «legítimo» de um país amigo. Mas então em que é que o apelo do chefe de Estado Sírio - incontestavelmente não menos legítimo - ao apoio do Irão e da Rússia é «inaceitável»? Cabe a Paris corrigir esta tirada e rever a sua linguagem.

Mas sobretudo a reconstrução do Mali passa doravante pela rejeição pura e simples das «soluções « liberais que estão na origem de todos os seus problemas. Ora, neste ponto, é fundamental que os conceitos de Paris permaneçam os mesmos que correm em Washington, Londres e Berlim. Os conceitos de «ajuda ao desenvolvimento» de Paris não saem das litanias liberais dominantes  [4].  Nada mais. A França, mesmo que ganhe a batalha do Sahara - o que eu desejo - fica mal colocada para contribuir para a reconstrução do Mali. O fracasso, certamente, permitiria então que os falsos amigos da França se vingassem.

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NOTAS

Com a preocupação de conservar, neste artigo, a sua brevidade e a sua centralidade apenas sobre a questão do Mali, afastei desenvolvimentos  das questões maiores adjacentes, reduzidas a indicações em nota de rodapé, evitando assim longas digressões.

O artigo não trata da agressão d’In Amenas.

Os Argelinos sabiam que, se ganharam a guerra maior contra o projeto do Estado Islamita do FIS (na altura, apoiado pelas potências ocidentais em nome da «democracia»!), o combate contra a hidra continua permanente, a travar em duas frentes: a segurança, a prossecução do progresso social que é o único meio de estancar o terreno de recrutamento dos movimentos ditos islamitas. Evidentemente que o assassinato de reféns americanos e britânicos obriga Washington e Londres a compreender melhor  que Argel agiu como precisava: nenhuma negociação é possível com matadores.  Infelizmente não creio que, a longo prazo,  este «erro» dos terrorista faça infletir o apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra para o que eles continuam a chamar o Islão político «moderado».

Translation:  Maria José Cartaxo

por Samir Amin
A ler | 15 Fevereiro 2013 | frança, intervenção militar, islamismo, Mali