Manual de L&CCV do 10.º ano: estamos a fugir dos caminhos
Nem escrita pandialetal, nem contra-ataque à sociedade civil nos fazem avançar
Coautor do programa de 10.º ano de Língua e Cultura Cabo-verdiana
Tomo a liberdade de me pronunciar sobre a nota de esclarecimento da equipa produtora do manual de L&CCV do 10.º ano de escolaridade, publicada online no Buala. Não sendo uma resposta específica aos meus artigos de opinião e à entrevista ao Expresso das Ilhas, a reação, ainda assim, traz a público posicionamentos que, a meu ver, desviam-se da questão essencial — pelo que me permito reagir.
A publicação do Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana (L&CCV) para o 10.º ano, em fevereiro de 2021, reabriu uma discussão central para o futuro da nossa língua na escola. O foco, infelizmente, tem-se desviado. Em vez de um debate técnico e pedagógico sério, assistimos a uma resposta emocional e defensiva por parte da equipa autora do manual, que classificou as críticas como ataques misóginos e xenófobos — um exagero injusto e contraproducente.
Toda a proposta pedagógica deve ser construída com base em critérios científicos, políticos e sociais bem definidos. A padronização linguística — enquanto ato de afirmação simbólica e política — pertence ao Ministério da Cultura e à sociedade em suas diversas forças, e não unicamente ao Ministério da Educação. Tal operação, caso venha a ocorrer, deve decorrer de um processo amplo, participado e transparente — o que não sucedeu neste caso. Ao avançar com uma proposta alternativa de grafia, o Ministério da Educação assumiu, de forma unilateral, um papel de legalidade duvidosa, ao intervir num campo que exige concertação nacional e tutela ministerial apropriada.
Com esse desaire, o Ministério da Educação dividiu especialistas, a sociedade civil, escritores, e entortou a discussão — desviando-a do foco principal e a reação da sociedade foi, em parte, emocional porque se trata de algo visceral: a defesa da variedade materna é uma reação afetiva e legítima, especialmente entre aqueles que escrevem, pensam e sonham numa variedade concreta da língua. Quando algo tão íntimo é substituído por um modelo artificial, sem aviso ou diálogo, é natural que a resposta surja com força.
O que não é aceitável, contudo, é que as autoras do manual — enquanto cientistas — tenham respondido com igual carga emocional e tom ameaçador, como se se tratasse de um ataque pessoal ou político. Refiro-me, concretamente, ao tom usado na sua nota de esclarecimento no Buala, ação que afasta o debate do campo dos factos e das ideias, e bloqueia pontes de diálogo que são essenciais. Ao lidarmos com dimensões tão sensíveis como identidade, língua e escola, é preciso mais escuta e menos rótulos.
Das tentativas de esclarecimento da equipa, temos de dizer, com o devido respeito, que não atingiram a medida desejável, deixando inúmeras pontas soltas. Vejamos:
i) Afirmar que a escrita pandialetal não será ensinada aos alunos, mas apenas utilizada nos comandos pedagógicos (segundo as autoras), é uma falácia pedagógica. Tudo o que se inclui num manual — sobretudo como instrução — produz efeito didático, explícito ou implícito. O currículo oculto é real e pode ser mais influente que o explícito. Se a nova escrita está nos comandos, ela está, sim, a ser ensinada — ainda que sem nome próprio. Isso desvaloriza as variedades, limita a autenticidade da aprendizagem, contradiz os valores de inclusão e torna desnecessária a aparição das variedades todas.
imagem criada em IA
ii) Como linguista e educador, com 30 anos de experiência docente e tendo elaborado manuais, programas e guias, defendo que os comandos e instruções pedagógicas devem ser redigidos nas variedades em estudo ou de acordo com a região, como forma de empoderar o aluno e reforçar a autoestima linguística. Se o manual apresenta conteúdos em variedades de Sotavento, que os comandos venham nessas variedades; se aborda São Vicente, por exemplo, que as orientações sigam esse registo.
iii) Afirmar que essa escrita comum representa todas as variedades é um engano teórico. Toda norma, por definição, exclui algo. Não se pode invocar inclusão para justificar uma padronização encoberta.
iv) Insistir que não se trata de uma norma, mas sim de um sistema de escrita (ortografia), agrava ainda mais os argumentos. Um sistema de escrita não “representa” variedades linguísticas no sentido de “conter”. Ou será que a equipa pretende dizer que a ortografia pandialetal permite grafar qualquer variedade? Se for esse o caso, como explicar o facto de, no uso dessa escrita, não se verem todas as especificidades de cada variedade?
Além disso, citar Manuel Veiga — “Apenas a língua oficial utilizada no ensino e na administração oficial, particularmente através da escrita, será a variedade unificada” — entra em contradição com o argumento de que não se pretende criar uma variedade padrão. Afinal, a escrita pandialetal é ou não é uma variedade unificada? De onde partiu a orientação para experimentar “variedades unificadas” nesta fase de implementação, e ainda por cima, sem a participação do Ministério da Cultura e das demais forças da sociedade?
A questão central é que um sistema de escrita é apenas uma ferramenta para grafar a língua — e não pode, por si só, “conter” as variedades linguísticas. Escrita não é língua. Se o objetivo é permitir grafar qualquer variedade, então essas variedades devem aparecer com as suas especificidades. Como as palavras apresentam formas distintas em cada variedade, não se pode adotar uma escrita uniforme — como a proposta pelas autoras — sem perdas significativas. Ao incluir apenas traços “parciais” de diferentes variedades, a proposta torna-se uma forma de padronização disfarçada. E é precisamente por isso que se torna problemático apresentá-la como inclusiva ou neutra.
Reconheço que as autoras afirmam estar abertas a correções. Valorizo essa abertura — desde que não seja apenas retórica. O que se espera de cientistas é que reconheçam, com serenidade, que avançaram sobre um terreno emocional e político, que exige outro tipo de mediação. Entrar num casulo defensivo, ignorando colegas, silenciando poetas e desqualificando a sociedade civil — a quem se atribuiu “discursos pseudocientíficos / negacionistas que desprezam a ciência em favor do senso comum desinformado” — definitivamente, não é o caminho.
Apelo a que se retome o foco nos factos e nos princípios científicos e pedagógicos, como forma de restaurar a confiança e construir pontes.
Apesar da tensão gerada, fico satisfeito em ver que o ensino da língua e cultura cabo-verdiana está a gerar debate público. Isso é sinal de vitalidade democrática. O Ministério da Educação errou ao dividir os atores — investigadores, poetas, professores, artistas — mas é possível corrigir a rota. A construção da política linguística cabo-verdiana exige diálogo, escuta mútua e compromisso real com os professores e alunos.
Acredito que o futuro da língua cabo-verdiana na escola depende menos de confrontos e mais de investigação partilhada, sensibilidade cultural e maturidade institucional. Por isso, reafirmo: a proposta de escrita pandialetal deve ser retirada do manual, pois constitui uma tentativa de padronização. Já existe um instrumento oficial — o Alfabeto Cabo-verdiano, flexível e representativo. Que o aperfeiçoemos juntos — sem atalhos, sem imposições, sem máscaras — se, de fato, a proposta das autoras visava ser apenas uma nova forma de escrita. Não sei como, mas a experimentação — que já se encontra no fim — trará insumos valiosos para a revisão da lei que institui o Alfabeto Cabo-verdiano.