Memórias Aparições Arritmias, de Yara Nakahanda Monteiro (Companhia das Letras, 2021)
Memórias. Este é sem dúvida um poemário tatuado de memórias. As memórias de Yara Nakahanda Monteiro, as memórias de um ou vários eus enunciadores, em que a autora tece e enlaça memórias suas, memórias da família, memórias de outrem, por ela moldadas. Ouvimos muitas vezes a voz de uma criança que cresce no Portugal dos anos 80, mas também outras memórias que, não sendo dessa criança, são pertença da família e delas é-lhe impossível não se apropriar. São as memórias de outrora, as memórias de Angola, os objetos, os hábitos e até as ausências desse outrora trazidos para o presente, trazidos para a periferia lisboeta. Memórias que estão sempre ali, que fazem parte da infância, memórias mais recentes, e memórias que se vão forjando a partir dessas memórias alheias dispersas que se reúnem, se digerem, para formar uma memória (ou uma pós-memória) própria.
Aparições. Se as memórias, próprias ou apropriadas, são uma constante, elas serão também interrompidas (ou enriquecidas?) por uma série de aparições. A aparição de uma consciência em relação ao passado, fruto da reflexão a partir dessas memórias que estavam lá, que faziam parte, que eram a vida e o dia-a-dia e que só o distanciamento, a reflexão e a emoção ajudariam a compreender, mais tarde. Os trânsitos, as violências, as viagens, as perdas, África, Angola, Portugal, a Margem Sul. Aparições, manifestações, visões que trazem uma busca de si, uma compreensão do presente, uma reconquista desse espaço longe, que só por memória alheia lhe pertencia e do qual o eu se apropria agora, com o qual se encontra para nele se reencontrar, qual aparição de si e de um espaço e um tempo estagnados que por fim retomam o seu lugar na história, ou na estória. São as aparições, “os espectros” que agudizam o desassossego, mas também permitem a reparação, os tais “esquecimentos que vêm por bem”, mas que só depois de descarnadas as memórias poderiam vir por bem (do poema “Descarnar memórias”, pp. 21-22).
Arritmias. As pertenças divergentes que convergem nas vozes que compõem estes poemas. O conflito entre lugares feito ritmo próprio, feito outra ordem, feito ritmo descompassado, mas ritmo. O ritmo do eu ou dos eus que dão voz aos vários poemas do livro, marcados pela dupla pertença, marcados ora pelas pazes ora pelas tensões com os espaços que habitaram ou habitam. Eu “sou de onde estou”, é dito no poema “Previsão do tempo” (p. 24), apesar dos silêncios, das lutas, das violências, do sexismo, do racismo. Eu “sou de onde estou”, configura-se como grito arrítmico que marca um compasso de pertenças. A arritmia transformada em dia-a-dia novamente, em quotidiano. O próprio compasso que vai pautando a vida e marcando a pele, tatuada com memórias e aparições. A vida e os corpos que resistem, que avançam, que saram, que seguem ao seu ritmo. Arritmicamente.
É difícil ler Memórias Aparições Arritmias sem pensar nos estudos da memória. A memória é uma presença constante neste livro de Yara Nakahanda Monteiro. As suas memórias e as memórias da sua família que lhe foram chegando, ao longo da vida. A poeta faz uso daquilo a que Jan e Aleida Assmann chamaram de “memória comunicativa” (kommunikatives Gedächtnis), que se constitui na interação informal do quotidiano: pelas histórias, imagens e emoções que se transmitem nas famílias e entre pessoas com contacto direto e que abarca as vivências das três a quatro gerações vivas. Essa familiaridade e esse mundo pessoal, que é tanto afetivo como doloroso, pautam grande parte das memórias que pululam de poema em poema, recordando muitas vezes um tempo e um espaço a que a poeta, ou os seus eus líricos, só de forma indireta poderiam ter acesso. E no entanto, são memórias suas, apropriadas, que fazem parte da sua narrativa, da sua história, do seu percurso e sem as quais a sua história nunca estaria completa.
Esta memória comunicativa, mais pessoal, compõe, a par da memória cultural (mais formal e institucional) diferentes camadas da memória coletiva. Ao publicar, e numa editora reconhecida como a Companhia das Letras (com chancela da Penguin), Yara Nakahanda Monteiro traz para um registo formal - o sistema literário e editorial - uma parte significativa da memória comunicativa que tem marcado a sua família (e tantas outras) nas últimas gerações: os traumas, as perdas, os afetos, o amor, os recomeços. Ao contar essa sua história, já começada com o seu primeiro romance, Essa dama bate bué (Guerra e Paz, 2018), a autora conta também o percurso de um vasto número de pessoas africanas ou afrodescendentes que cresceram em Portugal e que aqui têm lutado por um espaço seu, contra políticas e práticas sociais muitas vezes discriminatórias. Se a memória cultural, essa mais formal, tem a função de unir os indivíduos de uma comunidade através da constante presentificação de uma escolha de elementos de um passado comum, a verdade é que em Portugal, desde o sistema de ensino, às leis da nacionalidade, passando pelas artes, tanto o passado colonial como a presença africana no país têm sido bastante silenciados. Felizmente, assistimos recentemente a alguma abertura no mundo das artes, da literatura à música, passando pelo teatro e pelas artes plásticas que, a par dos movimentos antirracismo, têm vindo a provocar as necessárias arritmias num discurso único e apaziguador de um passado e presente de violências. A de Yara Nakahanda Monteiro é, sem dúvida, uma voz pujante que questiona essa memória única e que contribui para o reconhecimento e a formalização de outras memórias, muitas vezes duras, traumáticas, que são parte integrante da história de Portugal, bem como da África. É necessário quebrar as naus – feitas “Penico” no poema do mesmo nome (p. 26) –, chorar, como a menina velha, ou com a menina velha, lamber as feridas e erguer a voz, gritando dos destroços que ficaram pelo caminho, mas também das resistências, das reinvenções, da vida.
Yara Nakahanda Monteiro cresce rodeadas de estórias, imagens, hábitos, comportamentos da família e da comunidade mais alargada que muitas vezes remetem para a perda de um lugar, para a dificuldade de adaptação, a falta de aceitação, a reinvenção desse outro lugar na nova geografia. São as flores que desaparecem das roupas, para dar lugar “ao vestido parco e castanho” (no poema “Manequim 36”, pp. 16-17); são os papagaios, sem autorização de residência (e o que é uma autorização de residência?), o esmagar dos grãos de milho, o “sisal das plantações” para cerzir a roupa, as “violetas africanas” a ornamentar as janelas voltadas para o rio Judeu, no Seixal (no poema “Violetas-africanas” pp. 13-15). Esses traumas inscritos nos corpos e nos quotidianos invadem as obras artísticas de uma geração mais jovem que procura representar-se a si e aos seus, reproduzindo muitas vezes essas vivências íntimas que passam, desse modo, a exigir uma mudança da história de glórias, viagens, descobrimentos e fraternidades que até aqui tem sido contada e que é necessário subverter e reformular, cuspindo, para bem longe, essa “bola de funge entalada na garganta” (p. 23) – para terminarmos com as palavras da autora.