Mizulas, chineses e mortos: reconfigurações religiosas no Baixo Congo
Andando pela floresta Mayombe, em busca de conversas com “2ngangas”, cheguei a Lukula, na República Democrática do Congo. Ali, no meio da zona rural dos Bayombe não havia praticamente comércio, apenas algumas quitandas, ou pessoas vendendo frutas, legumes e pão nas ruas. Mas havia uma loja, conhecida na Europa como “1,99” cujo vendedor, um chinês, arrumava pacientemente os produtos mais variados: havia desde bacias plásticas até cornetas. Parecia distante da população local, mas meu amigo yombe, que me acompanhava, disse qualquer coisa ao senhor, e ouviu a resposta em lingala (uma das cinco línguas nacionais da R.D.C.)
Perguntei pelos chineses, mas disseram que estes não eram brancos, eram “chineses”. E então comecei a pensar nas formas possíveis de se ver o outro, e do outro nos ver, naquele contexto. Como os Bakongo viam os chineses? E como os chineses viam os Bakongo? Neste texto só teremos apontamentos parciais à primeira pergunta, e de forma muito direccionada, pois buscamos compreender o modo como os Bakongo desta área se relacionam com os “chineses” em termos de ontologias que chamaremos de “religiosas” (Cannell, 2006, Robbins, 2004, Vilaça, 2008). Portanto este texto trata de bruxarias, mortos, tráficos de órgãos, práticas de encantamento e sobretudo de contactos numa zona específica do Congo (RDC). Interessa-nos, mais que tudo, pensar no modo como a hegemonia secular dos europeus em África vem sendo transformada com a presença cada vez mais intensa dos chineses no continente. Nesta zona em particular, onde o catolicismo têm sido já devidamente “ameaçado” pela presença de igrejas independentes, invariavelmente pentecostais, (De Boeck, 1999, Sarró, 2009, Van Dijk, 2000), de que forma as ontologias locais têm se ajustado e se reconfigurado às práticas religiosas chinesas e vice-versa?.
Catolicismo português, mínzulas, chineses
A presença asiática em África tem sido um dos sintomas de um processo económico amplo chamado de “o século da Ásia” (Aicarde de Saint Paul, 2004, Ajakaye, 2006, Alden, 2005, 2006, Alden & Davies, 2006). Países asiáticos emergentes têm sido focados em termos de sua influência política e económica e expressões como “A China em África” têm sido tema recorrente de pesquisas e revistas acadêmicas relacionadas às atividades económicas e diplomáticas entre os dois continentes.
É então cada vez mais claro o número de pesquisa cuja temática é “China na África” bem como sobre a diáspora africana na China. No entanto, enquanto a temática política e económica têm merecido certa atenção, as implicações das relações culturais e identitárias sino-africanas (especialmente no que diz respeito às práticas religiosas) têm merecido pouca ou nenhuma atenção de pesquisadores. Este trabalho situa-se neste contexto, de melhor compreender adaptações e reformulações relacionadas às bruxarias, encantamentos e actualmente, o suposto tráfico de órgãos humanos decorrente destes encontros, em uma zona específica do Congo (RDC), situando-se numa perspectiva de investigação que busca contribuir com a compreensão das diferenças ontológicas quando em situações de encontro.
Ainda que migrações chinesas para África ocorram desde pelo menos há 500 anos (Pieke, 2007) foi a partir do século XIX que estas se intensificaram, estando de facto ainda mais evidentes a partir da década de 90 do século passado (Ma Mung, 2008, Brautigan, 1998) sendo também importante subraiar, tal como aponta Carayannis e Nathaniel (2011: 18) (tradução minha), “que as diásporas chinesas mais recentes em África têm sido marcadas basicamente por uma história de “solidariedade” com o `Terceiro Mundo` durante os anos 50 e 60 bem como por relações econômicas com países do continente”.
O Congo, e o Baixo Congo em especial, não têm sido um dos destinos preferidos dos imigrantes chineses ao longo das décadas (cf Chang, 1968, Sautman, 2006), no entanto, a presença de japoneses nesta Província é relativamente marcante. Atuaram em diversas áreas, mas basicamente na engenharia e na construção naval, no porto de Matadi. Nesta zona, inúmeras “histórias” envolvendo japoneses dotados de alta tecnologia que acabaram por “roubar” energia solar e mineral do Congo são frequentes e diversas, muitas vezes relacionadas com a cosmologia local. Em relação aos chineses, entretanto, não conseguimos levantar números oficiais a respeito deles nesta zona, mas os dados de Sautman (2006) nem sequer apontam o Congo (RDC) como um dos 10 destinos preferidos pelos chineses, em África. De qualquer modo, a mim, como estrangeira, me impressionou não somente a quantidade de chineses nesta área, mas o quanto estavam “embrenhados” em locais extremamente inacessíveis, e a forma com que se “instalaram” nestas sociedades. Portanto, interessa-nos menos uma análise quantitativa que uma reflexão qualitativa sobre o material que coletamos.
Centramos nossa etnografia nas migrações recentes de municípios como Matadi, Lukula e Boma, situados no Baixo Congo, complementando nosso quadro qualitativo de coleta de impressões acerca das relações entre congoleses e chineses com os imigrantes congoleses/angolanos (Baixo Congo) residentes em Lisboa. Esta última etnografia nos deu uma base importante para traçarmos uma “trajectória das percepções” dos congoleses face aos chineses, dos últimos 50 anos até hoje. Ouvimos inúmeros relatos, casos, histórias envolvendo a presença de chineses no Congo, portanto parte de nossa etnografia foi construída a partir de apontamentos da história oral dos imigrantes e suas memórias.
A minha primeira investigação de terreno no Congo tinha como interesse principal conhecer melhor a presença católica neste contexto e suas relações com os “ngangas”, mas a presença asiática naquela porção do Baixo Congo foi tão marcante que, chegando a Lisboa, comecei a investigar, através da memória dos imigrantes, a relação religiosa entre ambos. Acabei então escutando sobre os minzulas, com versões distintas e variáveis sobre quem seriam estas pessoas. Quando perguntávamos sobre os chineses, estes eram invariavelmente relacionados aos minzulas, e indirectamente, a negócios ilícitos e a encantamentos e práticas que, por falta de uma palavra apropriada, chamaremos de “mágicas”.
Damos seguimento, assim, aos argumentos de Thornton (1998) acerca das “compatibilidades” existentes entre as ontologias do mundo “africano” (especialmente banto) e o cristianismo europeu no que diz respeito ao modo de praticar a religião:
“O resultado (dos contactos) foi a emergência de uma nova religião “afro-atlântica” que é via de regra, identificada com o catolicismo, especialmente aquele praticado no “Novo Mundo”, um tipo de cristianismo que podia os entendimentos religiosos tantode africanos quanto de europeus.” (Thornton: 1998, pp 235).
No entanto, vamos além e afirmamos que tais “confluências ontológicas” só foram possíveis por uma manobra adaptativa constante da igreja católica a uma realidade distinta, e por outro lado, a manipulação destas manobras a favor de seus interesses políticos locais, por parte das distintas etnias, agregando assim à discussão fatores políticos além dos já arrolados por outros autores – especialmente os próprios missionários em seus relatos de viagens – como Cavazzi (1687) e Luca da Caltanisetta (1701), por exemplo.
Minzula é uma palavra do kikongo, língua que, na classificação de Guthrie (1956) pertence à classe H16. Falada pelos Bakongo, um dos povos do Baixo Congo, é o plural do verbo kuzula, que significa “cavar”. Minzula significa, então, “escavadores”. O termo tem hoje um sentido bastante pejorativo e dizem ter seu uso restrito entre os Manianga (uma etnia e uma cidade do Baixo Congo) e que posteriormente teria se “espalhado” pela zona. Minzula são, assim, os homens que por encantamentos e técnicas mágicas dominam a prática de “reviver” cadáveres, fazendo-os sair de suas sepulturas sem dispositivos como a pá ou marreta.
Esta parece ser ainda uma prática que só existe na República Democrática do Congo e majoritariamente entre os Manianga. Como dissemos antes, a história oral local relata ser esta uma prática de origem portuguesa, tendo sido os Portugueses a iniciar os Bakongo nesta “técnica”. Diferentemente dos “ladrões de sepultura”, pessoas que abrem covas e desenterram mortos apenas com o intuito de se apoderar de algum bem material enterrado com o defunto (dentes de ouro, cordões de ouro ou prata), os minzulas são pessoas dotadas de poderes mágicos adquiridos por aprendizado (iniciação, ao contrário de dom, tal como aponta Boyer, 1996) capazes de fazer com que mortos revivam e o fazem não aleatoriamente ou por busca de bens materiais (diretos), mas com fins religiosos. Carregam o estigma de feiticeiros, no entanto, não são jamais confundidos com os “ngangas”. De fato a feitiçaria, tal como é vista através dos minzula, é uma atividade anti-social por excelência, com uma forte hierarquia da figura do iniciador.
Se em 1491 missionários portugueses converteram o Nzinga Kuwu (João I) ao Cristianismo (Jadin, 1965, Thornton, 2002), no século XXI são os Bakongo que, aliados aos chineses, utilizam-se de práticas de encantaria, supostamente trazidas pelos portugueses, para reelaborações religiosas com fins que perpassam todo um imaginário local e que vão desde as práticas de bruxarias até o tráfico de órgãos. Assim, uma nova rede social tem sido estabelecida, através de alianças elaboradas entre os Bakongo e os chineses, criando novas dinâmicas territoriais e espaciais. Vamos discutir, aqui, não somente a presença chinesa na região do Baixo Congo e os novos desenvolvimento no imaginário religioso bakongo e suas reelaborações.
Tal como aponta Amselle (2001) desenvolveremos aqui a imagem metafórica das ramificações (branchement) para além da possibilidade única e previsível, ou seja, interconexões constantes de uma rede significativa de trocas. Esta idéia (de “objectos culturais” repatriados e reinterpretados) dá a real dimensão das reapropriações. Assim, ao observarmos o modo como as alianças entre estes grupos se manifesta o que buscaremos evidenciar são apoderamentos que ultrapassam as marcas materiais e assumem, como mostra Appadurai (1996) uma caracterização não material, mas que se configura em modos de fazer e operar. Observaremos estes modos no que concerne à religisiodade.
Ndokis e minzulas: bruxarias, sonhos e chineses
Na região da África Central a “bruxaria” (e referimo-nos aqui às bruxarias dos ndokis, não dos minzula) é uma prática que se dá simbolicamente através da ingestão (sobretudo de carne supostamente humana), o que leva a vítima a mudar seu status quo a partir daí. Esta relação entre o ato da ingestão como algo transformador é tão latente nesta zona que ninguém diz que vai “matar” outra pessoa na/com bruxaria, mas que vai “comer” a alguém (Bukuasa, 1973) “Balekisi ye” (comido pelo nkisi).
Deste modo a feitiçaria é quase que uma “contaminação”: alguém que come algo inofensivo (peixe ou carne) descobre posteriormente que o que ingeriu era carne humana, em outra dimensão. Ele se tornou portanto um “feiticeiro” (ndoki) sem o seu conhecimento e, agora, tendo que “pagar” a carne consumida, vê-se obrigado a “matar” (comer) pessoas, quase sempre de seu círculo familiar.
Impulsionados por vingança, ciúme, ou ambição, deixam o grupo familiar para participar de um grupo anti-social (o grupo dos ndokis). Levam uma vida dupla: são pessoas aparentemente inofensivas no “primeiro mundo” (pequenos comerciantes, meninas, velhos, etc), que durante a noite viajam ao que chamam de “segundo mundo”, um universo paralelo constituído quase sempre de construções suntuosas, carros de luxo e muita fartura. Uma “bruxa” pode ter a aparência de uma menina de 10 anos em sua comunidade, mas no “segundo mundo” pode ser casada, já idosa, ou pode se transformar em uma sereia, como Mama Wata, vivendo nas profundezas dos rios. O percurso entre as distintas dimensões do mundo (o mundo de “cá” e o “segundo mundo”) explicita uma ontologia singular de se apropriar da “realidade”. Assim, sonhos e percepções (sobretudo gustativas e olfactivas) acabam por serem interacções simétricas e complementares, pois são partes de uma mesma unidade que interage e redimensiona o que é tido como realidade.
Como sugere Carrithers (apud Vitebsky,1992:8) para uma melhor compreensão desta interação, daremos atenção ao que ele chama de “narratividade”, ou “a compreensão de complexas redes de novas conexões e mudanças de atitudes pelas quais as pessoas percebem (dão-se conta) as ações não apenas como respostas para circunstâncias imediatas ou estados mentais impostos por um interlocutor, ou si próprio, mas como parte de uma história” (Carrithers, 1990:269) (tradução minha). Tratamos de dar ouvidos a estas outras narratividades, para melhor compreendermos situações em que acusações de bruxaria, igrejas pentecostais, catolicismo e tráficos de órgãos faziam parte da mesma história.
Os sonhos têm também um papel importante para a compreensão destas outras “narratividades”, que nos darão pistas acerca do imaginário local sobre os chineses, no que concerne à religiosidade.
Para os ndokis, e também para os minzulas, os sonhos muitas vezes são símbolos passíveis de uma interpretação cujo significado é oculto ou maior. Podem também ser experiências quase individuais (Stewart, 1992, Csordas, 1994) e não sempre necessitam de um “aval” ou reconstrução dos mesmos pela coletividade.
Chamamos a atenção para pensarmos nos sonhos como um tipo de experiência, que categorizamos como cultural, mas que não completamente coletiva, já que prescinde de ressignificações e reconstruções sociais para sua legitimidade. Neste contexto, os sonhos são uma experiência do “eu”, que transforma e remodela a “pessoa” (self). Como aponta Ewing:
“Através deste processo reflexivo, as representações do “eu” tornam-se sinais, como unidades da linguagem ou outras representações culturais como os mitos e as imagens. Sonhos, os quais exepeienciamos através davlinguagem e das imagens, são igualmente feitos de signos.” (Ewing, 1990, 57)
Assim, os sonhos neste contexto de bruxaria funcionam como uma possibilidade de ingresso num universo restrito, o do “segundo mundo”. Ali, a pessoa que ingeriu algo e portanto ficou “aberta” à bruxaria, submerge num mundo dado, onde todas as redes sociais estão já formadas. Há reinos, cidades e famílias, possuindo inclusive comércio e muitos bens materiais. E são estes muitas vezes que motivam a bruxaria.
Para os bakongo, a intenção de transformar alguém em ndoki vem na maioria das vezes de dentro da família. Na verdade, é quase impossível atacar alguém com quem não se tenha proximidade ou laços familiares e/ou sociais, já que a eficácia da feitiçaria depende em partes do acesso a vestígios materiais do enfeitiçado, como restos de unha, rastros ou cabelos. Esta relação de proximidade contribui, por outro lado, para o horror da feitiçaria: como uma mãe, um tio, podem desejar a morte de seu filho/sobrinho? Sendo os Bakongo matrilineares, as bruxarias são maiormente transmitidas por mulheres (mãe, avó). Ao romper com parte do mundo dos humanos (pois o ndoki vive neste duplo universo) os feiticeiros se caracterizam pela falta de afetividade e de forma mais ampla, a culpa. Assim, confissões e relatos detalhados de feiticeiros geralmente causam muita repulsa em quem os escuta, ajudando a alimentar o sentimento de horror contra a “bruxaria”. Crianças muito pequenas, acusadas de bruxaria, contam seus crimes (assassinato dos pais, por exemplo) com detalhes mórbidos e distanciamento emocional dramático (De Boeck, 2000).
Num caminho diametralmente oposto, os minzulas elegem a bruxaria, ou seja, decidem por este aprendizado (ou então está na sua linhagem (kanda)). Assim, a parceria que irá se estabelecer com os chineses, por exemplo, será completamente voluntária e baseada em interesses mútuos. É nesta relação que focaremos nossa atenção, ainda que os caminhos entre ambos (minzulas e “ngangas”) algumas vezes se cruzem.
Corpos, bebidas e chineses
A relação dos chineses com os minzulas acabou por se tornar um tanto quanto metonímica, pois ao relacionarmos os Bakongo ou os Manianga com os chineses, estamos de imediato relacionando-os com o universo da morte e manipulação de cadáveres.
O imaginário local tem muito clara a definição de espaços: enquanto os minzulas praticam rituais de magia que envolvem corpos com a finalidade da aquisição de forças espirituais, os chineses, por sua vez, trabalham basicamente com a manipulação de cadáveres com a finalidade de comércio, ainda que muitos relatos tenham deixado evidente que esta conjuntura só foi possível graças à força “mágica” dos chineses. Assim, a conjunção entre interesses aparentemente tão distintos acaba por ter um elo de contiguidade, qual seja, o domínio de forças mágicas.
No Congo (aliás, nos dois Congos) até há pouco tempo atrás o negócio ilícito envolvendo cadáveres estava levando grande parte da população ao pânico e famílias passaram a abrir mão de seus rituais funerários tradicionais e a usar ácido nítrico nos corpos de seus parentes para acelerar a decomposição da carne e dos ossos, evitando que estes fossem roubados, vendidos ou transformados pelas mãos dos minzulas e chineses, pois para além do suposto tráfico de órgãos, também poderiam produzir, a partir dos ossos dos mortos, uma bebida “mágica”, com ingredientes especiais que garantiriam uma vida bem-sucedida a quem a ingerisse.
As estreitas relações entre minzulas e chineses e os relatos locais (Cunha & Ndungi, 2012, mimeo) apontam que desde os comerciantes de províncias até grandes políticos e militares fazem uso destas bebidas, um fenômeno que a Justiça e as Forças de Segurança locais encontram dificuldades em combater, pela própria falta de instrumentos adequados (sistema judiciário baseado nos preceitos ocidentais, que não se ajusta às ontologias locais). Não há legislação que respalde acusações de bruxaria. Por outro lado, somente perícias laboratoriais permitiriam averiguar se houve de fato o uso de ossos humanos na confecção das tais bebidas. Como não há recursos para tal, as acusações seguem no caminho da informalidade. De certo modo a ingestão desta bebida “mágica” acaba por ser o antagonismo da reacção provocada pelos “ndokis”: aqui, ao se ingerir algo (involuntariamente), seu estatuto muda negativamente, enquanto ali, ao se beber algo (voluntariamente), seu estatuto muda positivamente (em termos materiais, pois o que se consegue é dinheiro, fama, etc).
Na região de Lukula até o ano de 2010 nunca se havia ouvido falar sobre os minzulas. A partir da chegada mais intensa dos chineses nesta área rumores a respeito de roubos em cemitérios, uso indevido de ossos para elaboração de bebidas e bruxarias passam a ser recorrentes, até que os chefes locais (nganga nfumu) passaram a proibir a entrada de pessoas estranhas nos cemitérios. Quando estivemos em 2011 em Lukula fomos proibidos de entrar no cemitério principal da cidade. Tivemos que recorrer a uma aldeia vizinha, onde minha irmã, yombe, estava de fato enterrada. A desconfiança de que iríamos desenterrar os ossos para venda e bruxaria era grande, sobretudo pela presença de uma “branca”.
O cemitério de Kikanda, em Matadi, havia sido desapropriado anos antes e inúmeras casas foram construídas no local. Neste período, por volta de 2007, os chineses já estavam de forma mais arraigada na cidade e casos de tráficos de ossos foram relatados. Muitas pessoas que construíram suas casas naquele local aproveitaram para vender os ossos encontrados. Ainda hoje ouvimos histórias sobre os “ossos de Kikanda” e invariavelmente os chineses estão entre os protagonistas destas histórias.
Esta tríplice relação (entre ndokis, minzulas e chineses) parece então estar configurada não apenas por interesses comerciais/económicos, mas também mágico-religiosos.
Ndokis e minzulas são seres com poderes especiais, capazes de se deslocar no tempo e no espaço, utilizando distintos meios para isso. Enquanto os ndokis viajam para o “segundo mundo” – local em que as distâncias são cruzados em um instante, pois um ndoki que vive em Matadi pode voar para Bruxelas ou Paris, buscar um familiar seu que vive ali e levá-lo a participar, num cemitério congolês, de um banquete cuja vítima vive na Suíça – em apenas alguns segundos, utilizando cascas de frutas ou pedaços de pau que se transforma em limusine ou avião, os minzulas, por outro lado, não parecem ter este mesmo poder de deslocamento e de fato, não o necessitam, uma vez que seus “sujeitos” (alvo de bruxaria e manipulação) são outros: enquanto os ndokis buscam humanos para transformá-los em “mortos-vivos” (ndokis), os minzulas procuram mortos para os reavivarem, dar-lhes vida. A presença chinesa tanto entre ndokis quanto entre minzulas parece reforçar seus poderes. Ainda que de formas distintas, trabalhar com um chinês, magicamente, ou estar perto dele, potencializa poderes. Nesta relação, evidentemente que há interesses comerciais por parte dos bakongo/manianga, mas há também o interesse mágico.
Não tivemos acesso a nenhum ritual religioso, de necromancia, feito pelos minzulas. Ao mesmo tempo, sendo a bruxaria um status de acusação e não de autodefinição (Boyer, 1996) só conversamos com algumas pessoas que, segundo relatos de terceiros, eram “ndokis”, mas evidentemente que nenhum de nossos informantes se definiu como tal. Portanto, todas as nossas “histórias” dizem respeito a relatos de pessoas que “ouviram falar” sobre determinado assunto. A mesma situação em relação aos chineses: nenhum de nossos entrevistados disse ter relações próximas com algum chinês. Parece que esta proximidade gera uma desconfiança forte por parte da comunidade, em termos de bruxaria. Portanto estar próximo a um chinês é, no mundo oculto, religioso, bastante benéfico, positivo, mas para a vida social é uma relação envolta em preconceito e que pode levar a fortes indícios para acusações.
Em nossa pesquisa de terreno em Lukula, em 2011, sofremos grande pressão da comunidade, de forma muito velada e sem a necessidade de grandes falas, mas fomos advertidos de que, se entrássemos no cemitério da cidade, juntos, eu (um yombe, nascido naquela comunidade) seria proibido de voltar para a minha terra, pois passaria a figurar como um “minzula” em potencial, por estar acompanhado de uma “branca”, que possivelmente poderia ter relações com um chinês (portanto, gente “de fora”).
Mas, e por parte dos chineses, seria mesmo somente um interesse puramente comercial que estaria por trás desta suposta “parceria”?
Pois para além da elaboração da bebida há ainda o tráfico de órgãos, este atribuído aos chineses. Falta-nos dados etnográficos mais consistentes (especialmente no que diz respeito aos chineses) para elaborarmos um quadro detalhado desta relação, mas o que temos delineado até este momento é que, segundo o imaginário local, os chineses tiveram de aliar-se a um grupo de religiosos/manipuladores de corpos desta zona (e se aliaram então aos minzula, em princípio, mas actualmente as parcerias tomaram configurações muito maiores) para que pudessem ter acesso aos corpos que supostamente iriam manipular e cuja finalidade é o tráfico de órgãos. Não é nossa intenção buscar a veracidade ou não destas histórias e destas relações. Interessa-nos tão somente compreender de que modo as alianças entre os distintos grupos são feitas e como o imaginário local, dos Bakongo, se apropria de práticas externas para reelaborar sua religiosidade. Tem sido assim há séculos, desde a entrada do Cristianismo nesta zona (cf Jadin, 1968, Thornton, 2002, Saavedra, M & Straus, J, 2010).
Os minzulas em especial parecem ter como benefício desta relação não apenas o aporte financeiro (fundamental neste contexto de África, evidentemente) mas sobretudo a aquisição de certos “poderes mágicos” que viriam de duas formas: por aprendizado (e então os chineses estariam trocando informações “mágicas” e instruindo, formando um grupo de religiosos bakongo), ou pelo que chamaremos de “simbiose” (na ausência de um nome que dê conta desta realidade usaremos este termo), que seria a aquisição de “poderes mágicos”, ou “aumento de força mágica” pelo simples fato de estarem próximos dos chineses, já que estes são considerados, como dito acima e segundo alguns de nossos informantes, como “um povo superior”, “um povo mágico”, “feiticeiros”, “donos do verdadeiro conhecimento das bruxarias”.
Cremos que nosso trabalho se diferencia de alguns outros que tratam destas relações culturais entre sino-africanos sobretudo por não se restringir somente ao aspecto económico, alargando nossa perspectiva sobre os encontros e o conhecido “sincretismo” and its previously pejorative meaning.
Buscamos basicamente compreender novos fenômenos que surgem através de contextos diversos, das diferenças, e que questionam e reativam conceitos como pureza, autenticidade e inovação.
Pluralizando o entendimento banal de sincretismo e contacto - definidos quase sempre como fusão, combinação, associação de diferentes sistemas de pensamentos e práticas - desejamos explorar os múltiplos caminhos pelos quais as relações e associações são forjadas entre diferentes aspectos de experiências culturais. O desafio passa a ser também metodológico e teorético, na medida em que nos impõe a tarefa árdua de produzirmos nós mesmos “sincreticamente”. Ouvir múltiplas vozes parece ser um dos caminhos necessários a se percorrer para esta melhor compreensão, repensando fronteiras e ontologias.
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