“Mundividências” judiciais - caso Cláudia Simões

Em síntese: Cláudia Simões é considerada culpada por ofensa à integridade física qualificada a Carlos Canha (com pena de oito meses, suspensa por um ano) e os ferimentos que apresentava resultariam da indevida resistência à detenção, em suma, foram autoinfligidos. Segundo a juíza, “ninguém fez mal a Cláudia Simões”. Para além de vários epítetos usados para (des)qualificá-la, seria sublinhado, com requinte, que ela era culpada pelo choro da filha, na altura com oito anos, enquanto presenciava a detenção da mãe. Carlos Canha é considerado inocente face às acusações que lhe foram dirigidas. Portanto, no que diz respeito à interação com Cláudia Simões, nada mais teria feito do que o cumprimento da sua obrigação, como defendido, na altura, por Magina da Silva, então diretor da PSP. 

Cláudia Simões, foto de Leonardo SimãoCláudia Simões, foto de Leonardo Simão

Mas vejamos com atenção alguns aspetos da decisão e da última sessão. O agente é nos apresentado como tendo tido todo o cuidado na interação com a “impetuosa”, “não colaborante”, “exaltada”, “revoltada” e “possante” Cláudia Simões e agredido por ela. Mas é também ele que, naquela mesma noite, levou indevidamente para a esquadra e agrediu dois homens negros – Quintino Gomes e Ricardo Botelho – que haviam assistido ao episódio na paragem de autocarro. Carlos Canha foi por isso condenado (três anos de pena suspensa e pagamento de indemnização por ofensa à integridade física qualificada e sequestros de ambos). Isto poderia levar-nos a pensar que seria dispensado da PSP, mas parece que não. Mantenhamo-nos atentos ao que fará o IGAI. Sobre a agressão àqueles dois homens, os agentes João Gouveia e Fernando Rodrigues nada viram, nada sabem, sendo ilibados da acusação de abuso de poder que pendia sobre si. 

Terá Carlos Canha dupla-personalidade? Terá sido anjo e carrasco na mesma noite e no mesmo caso? A sentença do Tribunal apresenta-nos outra explicação – a meu ver – desconcertante. A resistência de Cláudia Simões e a reação das pessoas que viram a ocorrência na paragem de autocarro teriam sido de tal forma desestabilizadoras que, em jeito de “descompressão”, Carlos Canha agride violentamente aqueles dois homens. Se a tese da “descompressão” não permite ilibar, ela aligeira a dimensão moral dos atos do agente. Descontrolou-se, agiu sem verdadeira intenção, sem premeditação, “descomprimiu”. Por outro lado, Cláudia Simões, as pessoas que presenciaram a ocorrência, que filmaram ou que se insurgiram acabam por ser responsabilizadas pelo descontrolo de Carlos Canha. 

No fecho da leitura do acórdão, o Tribunal considerou ainda relevante dedicar várias observações ao movimento antirracista e à opinião pública em geral, um pouco na senda do advogado dos agentes João Gouveia e Fernando Rodrigues nas suas alegações finais. A juíza assegurou que neste caso não havia motivações racistas, que “as pessoas são todas iguais” e que esperava que a decisão do Tribunal servisse para “pacificar” estas percepções. Ter-lhe-á escapado todo o debate académico sobre o racismo institucional e estrutural? Sobre a dimensão não consciente de parte do racismo interpessoal? Lembremo-nos ainda que, infelizmente, entre as múltiplas acusações dirigidas a Carlos Canha não estava explícita a acusação de racismo.

A juíza considerou ser um desserviço público o “aparato” criado em volta do caso, isto é, as denúncias de racismo feitas por movimentos sociais, a indignação das pessoas que assistiram ao sucedido e telefonaram desesperadas para os bombeiros e a consternação de (parte da) opinião pública perante o vídeo que mostra Carlos Canha a fazer uma chave de pescoço a Cláudia Simões e os vários ferimentos desta. Tratar-se-iam, como disse, de “falsas assunções” construídas num quadro de “idiossincrasias”, “mundividências” e “preconceitos”, no fundo, um misto de ignorância, oportunismo e revolta. Nada disse sobre as declarações públicas do sindicato da PSP ou sobre como a extrema-direita aproveita este caso para reforçar a já evidente penetração na polícia (veja-se, por exemplo, a convergência do Movimento Zero e André Ventura no apelo à manifestação de polícias a 4 de julho ou o caso investigado por um consórcio de jornalistas sobre discurso de ódio nas redes sociais de polícias).

Tendo esta juíza primado, ao longo das sessões, por uma atenção severa, quando não mesmo violenta, ao cumprimento da formalidade, à restrição de tudo o que não dissesse diretamente respeito ao caso, aqui preferiu não se limitar ao que formalmente estava a ser julgado. Devemos perguntar-nos “Porquê?”.

 

*Texto publicado nas redes sociais da autora a 02 de julho de 2024 e posteriormente reeditado para a presente publicação.

por Cristina Roldão
A ler | 3 Julho 2024 | Cláudia Simões, justiça, racismo, tribunal