O caçador de diamantes
Os olhos de Nuno não largam, nem por um segundo, o fundo do tabuleiro da lavaria cheio de pedrinhas baças, beges, castanhas, negras. As pontas dos dedos de Nuno varrem as pedrinhas lavadas. Não há palavras, não há vento, nem qualquer outro ruído na paisagem africana, ao fim do dia. É o momento em que tudo fica suspenso, injectado de adrenalina, à espera de um brilho que faça a diferença a quem o vir primeiro.
O octaedro mostra então o seu esplendor no meio do cascalho.”Isso é um diamante?” arrisco, na dúvida. “Isto é um diamante?! Isto é um senhor diamante! É a forma perfeita do diamante, o octaedro. Incrível!”, esclarece Nuno Silva, extasiado com o senhor octaedro. O BI da pedra preciosa traduz o espanto: tem 10,70 carats de peso (1 carat = 0,2 gramas), as oito faces que lhe dão a forma perfeita do octaedro, a cor branca, uma pureza sem incrustações, uma claridade límpida, e um valor em bruto de 40 a 50 mil dólares. O octaedro rolava entre os milhões de pedrinhas baças na máquina que ao longo de dois dias lavou 35 toneladas de cascalho.
Nuno Silva, 31 anos, engenheiro civil, deixou Cascais para se jogar na aventura de conhecer o interior de África. Nos primeiros dias em Banankoro, na Guiné Conakry, sentiu o choque de viver sem interruptor para acender a luz, sem água na torneira. Cresceram-lhe as saudades de casa mas depois habituou-se. É responsável pelo “controle de produção”, a última fase da exploração de diamantes da Odiamining, uma empresa de Vítor Catarino, português-cristão, Leonel Carvalho, luso-angolano e Alpha Condé, guineense-muçulmano.
“Vítor ! Olhe-me este diamante !…Foi mesmo agora…”. Nuno já tinha guardado o octaedro dentro de um saquinho de plástico no bolso da camisa, mas volta a mostrá-lo “está limpinho lá dentro!
Vítor, põe os óculos, “deixa lá ver quanto é que isto vale”, e volta-se para Leonel que puxa da lupa.” Deve estar aí nos 9 carats, com sorte vai aos 10. A 4 mil dólares o carat…”
Os cálculos avançam ”com a procura que tem, se for talhado, atingirá os cem mil dólares numa joalharia de Nova Iorque, por exemplo”.
Banankoro, nas palavras do cunhado de Vítor Catarino, fica a 700 quilómetros da capital, Conakry, o que na República da Guiné significa 18 horas de viagem entre algum asfalto e muita picada. As aldeias que bordam o caminho, com as suas tradicionais casas redondas africanas cobertas a colmo. 47 por cento dos 10 milhões de habitantes vive abaixo do nível de pobreza num país com um subsolo rico em diamantes, ouro, ferro, bauxite e urânio.
Vitor Catarino, 63 anos, chegou a Banankoro há 6 anos, “num domingo, vinha com o Leonel e chegamos com algum receio, porque na altura era uma zona muito agressiva devido à guerra na vizinha Costa do Marfim”. O sonho de explorar diamantes era mais forte e Vitor sempre se deu bem com o risco. Nasceu em Mação, no centro de Portugal, viveu em Carcavelos e agora tem família e residência no Fogueteiro, arredores de Lisboa. Conheceu África, na tropa, em S.Tomé e Príncipe como sargento no serviço de informações do exército. “A partir daí, voltei sempre a África, conheço estes países todos, os Camarões, o Gana, o Togo, a Costa do Marfim, a Nigéria, viajei e fiz um pouco de tudo”. De comerciante a mercenário, valeu tudo: resgates, informações e outras actividades ao serviço de agências subsidiarias da CIA. Um passado de que ainda guarda segredo. “Eu tinha essa capacidade de andar no mato, relacionar-me com toda a gente, fazer a figura que fosse preciso, mas tinha o meu emprego, só que de um momento para o outro desaparecia. Sempre me deu prazer estar num sítio onde os outros não consigam estar”. Até hoje.
A experiência, os conhecimentos e o paleio deram-lhe o acesso a concessões de minas de diamantes e ouro na Guiné-Conakry: 250 km2 para explorar ouro no norte do país, 88 km2 de diamantes em Kerouané e mais 8 hectares em Banankoro. Foi nesta cidade que conheceu um sócio decisivo: Alpha Condé, 48 anos, guineense, muçulmano de etnia mandinga.”Nasci no mundo dos diamantes. O meu pai era diamanteiro, esteve no Zaire, Angola, Zâmbia, Serra Leoa, Libéria e organizou as minas de diamantes aqui na Guiné.” O pai meteu-o numa escola cristã para falar francês.
Aprendeu inglês a negociar diamantes e é a isso que se dedica. Começou no bairro do comércio em Banankoro, uma ruela em terra batida, com 135 pequenos casebres, “escritórios”, de mesas encostadas às janelas abertas e um formigueiro de homens para baixo e para cima. Pelas janelas circulam diamantes em embrulhinhos de papel branco, que nunca deixam de estar à vista do vendedor e do comprador. Algumas das janelas têm grades de ferro.
Para cativar clientes, Élage Cissé pintou na parede amarela do seu escritório uma cabeça de leão e um diamante.” Eu sou o patrão do gabinete Lion Star!” Lá dentro, há um poster de Khadafi e outro da selecção do Gana, uma mesa, uma pequena balança e uma lupa. Élage está neste negócio desde 1990, compra diamantes em Banankoro e vai vendê-los a Conakry,”num bom dia posso fazer 10 mil dólares, 20 mil, depende da sorte e de Deus”. Aparentemente o comércio faz-se numa agitação tranquila. A fiscalização do negócio é inexistente, ou melhor, Diaburi Condé, de casaco e chapéu, apresenta-se como fiscal e explica como desempenha a sua actividade: “estou no meu gabinete, quando preciso de controlá-los, com a autorização do Estado, entro nos gabinetes. Os que têm muito dinheiro podem comprar muitos diamantes, os que não tem ficam-se por alguns carats”.
Vitor também já teve “uma casinhota destas, um comptoir, onde fizemos os primeiros negócios”. Admite que na ruela do comércio de Banankoro sejam transacionados 5 milhões de dólares por semana num negócio onde “há um segredo tal que realmente é impossível controlar. Nem as próprias autoridades com as suas leis conseguem controlar porque tinham que colocar um funcionário em cada homem e eles são milhares.”
Actualmente Vitor e os seus sócios recebem os clientes em casa. Banankoro não tem água, nem luz, nem asfalto mas a actividade principal dos 25 mil habitantes é a liberalizada exploração artesanal de pedras preciosas. Vivem nas mais rudimentares condições, mas entre as casas pobres, erguem-se muros e portões nas vivendas de quem já vingou no negócio. À casa de Vitor chegam de dia e de noite vendedores e intermediários. São recebidos num pequeno escritório decorado com bandeiras de Portugal, da Guiné-Conakry e da União Europeia. O tampo da secretária tem uma superfície forrada a papel branco, com uma pequena balança, uma grande calculadora e um candeeiro de luz intensa. Alpha e Leonel recebem os clientes. Chega um grupo de 4 homens com dois embrulhinhos. Um deles, Mouri, estica o braço para passar o seu embrulhinho a Alpha. Lá dentro estão duas pedras que Alpha deixa cair no papel branco. Por elas Mouri espera conseguir 4.400 dólares. Alpha observa pela lupa, pesa, faz contas e dispara “2.200 dólares”. Está assim lançado, o desporto preferido, a eterna discussão.
“2.200 dólares pelas duas pedras?”
“Sim”
“Não, as duas pedras valem 4.400 dólares”
“Porquê?”
“Porque são boas pedras!”
“Eu pago 2500 dólares”
“Não, está longe”
“O que é que está longe?”
“Está longe, muito longe…”
O negócio fica pelo caminho. Mouri recolhe o embrulhinho branco e vai procurar outras ofertas. A transacção faz-se sempre em dólares e em dinheiro vivo. Alpha está hoje entre os patrões dos diamantes guineenses. Vive em Conakry mas “vimos a Banankoro uma semana, duas semanas, um mês para as compras, depois levamos os diamantes para a capital ou vamos negociar ao Dubai, Bélgica, América, Londres, China, Índia , onde exista um bom mercado”. Para isso têm o certificado internacional resultante do Processo Kimberley que atesta não serem diamantes de sangue e permite a exportação legal. Ao Estado devem dar 6 por cento do valor dos diamantes.
A região de Banankoro, junto à fronteira com a Serra Leoa, é uma vasta área de terra remexida, mais de 200 Km2 repartidos em pequenos domínios de exploração artesanal entregue aos massta. Massta é aquele que se candidatou à concessão e que se submeteu ao sorteio. Tamba Millimono, Chefe da Secção Topográfica da Exploração Artesanal estende no chão, à sombra da mangueira, o plano da repartição da área de Banankoro. Cada quadradinho traduz-se num hectare de terreno atribuído aos massta. “Para que não venham dizer que alguém pagou dinheiro para ficar com uma parcela, fazemos o sorteio dos candidatos. Colocamos os papelinhos numerados num cesto e depois tiramos à sorte: por exemplo o massta X fica com o número 20 e depois a perfeitura regista, o meu gabinete copia e não podemos alterar isso”. A liberalização está feita. Por todo o lado as montanhas vermelhas são escavadas à mão, com pás e picaretas até se encontrar a terra clara, a zona do cascalho que é lavado em pequenas peneiras. Homens, mulheres e crianças lançam-se, dia sim, dia sim, ao garimpo artesanal, entregues ao esforço, à sorte e à fé em Alá que apenas os impede de trabalhar à sexta-feira. Foudé Ba Trouré, lidera um grupo de homens robustos, descalços, que escavam há 4 semanas sem terem ainda alcançado a zona do cascalho precioso. “É um trabalho duro e não temos salário. Se encontrarmos diamante então vamos repartir, mas este ano ainda não vimos nada”. Afundam uma enorme cratera junto à montanha de Fulufimba que acreditam estar cheia de diamantes e repleta de más recordações. Alpha Dobumbuya andou por lá até ao dia em que perdeu o irmão mais novo. “Um dia toda a Banankoro saiu para vir à montanha. Vieram mais de 500 pessoas, entraram e escavaram, mas a terra caiu e fechou a porta”. A terra desabou. “Contamos o número de pares de sapatos e concluímos que estavam lá dentro mais de 500 mortos. Encontrei os sapatos do meu irmão mais novo à meia-noite e meia. Voltei para casa de coração partido. “Nunca mais ninguém lá voltou. O cume verde de Fulufimba avista-se dos domínios de Vitor, onde uma escavadora substitui as picaretas e as pás. É uma exploração semi-industrial. Cerca de 20 homens, de fato macaco azul-escuro trabalham com a escavadora, a bomba de água e o camião que leva o cascalho para a lavaria. Recebem um salário de cerca de 70 euros. Tudo sob a orientação de Leonel Carvalho, técnico de minas, luso-angolano.
Nasceu no Cuito, fez a tropa durante a guerra em Angola, a seguir foi para Portugal. “Voltei a Angola em 92 para trabalhar nos diamantes, na Lunda Norte, no Cafunfo, no Lucapa. Depois a sociedade acabou e voltei a Portugal, mas como a minha paixão são os diamantes vim para aqui trabalhar”. Leonel dá-se bem no mato. Vive motivado pela procura das grandes pedras, sem nunca saber quando vão aparecer, “podemos estar 1,2 meses sem nada, mas de um momento para o outro podemos tirar uma pedra de 200, 300 quilates”. É uma questão de sorte, para uns, de fé para outros. No dia em que surgiu o octaedro, houve sacrifício pela manhã. Junto ao enorme buraco onde se escava o cascalho, reuniram-se todos os trabalhadores da Odiamining em meia lua à volta de uma vaca. Alpha Condé dirigiu as orações. De mãos voltadas para o céu recitaram o Corão e pediram a benção para o trabalho e para o sucesso. “Deus ama os sacrifícios. Os diamantes fazem parte do tesouro de Deus e é Deus que o dá ao homem”, esclarece Alpha antes de passar uma faca pelo pescoço da vaca. Sobre ramos de árvore a carne é repartida pelos trabalhadores e pelos mais pobres da cidade. E estará também na mesa de jantar de Alpha e Vitor, quando festejam o octaedro. Alpha não tem dúvidas” é directo, Deus é assim, sabe o que faz, nunca falha. Fizemos o sacrifício , deu-nos a pedra grande”.
Os minaretes das 58 mesquitas de Banankoro ficam para trás quando o Nissan Patrol metalizado de Alpha e Vitor se faz de novo à picada. Pela frente estão 500 quilómetros para fazer em14 horas de solavancos, até à terra do ouro, no norte da Guiné-Conakry junto á fronteira com o Mali.
Balandougou descobre-se entre a vegetação baixa. É uma aldeia ancestral, com raízes nos impérios africanos que se alimentavam a ouro. Uma aldeia castanha, onde vivem 1700 pessoas em casas redondas feitas de terra amassada e telhado de colmo. Nenhum habitante tem carro, não há electricidade e fazem fila para retirar água dos dois únicos poços da aldeia. Cozinha-se na rua, sobre duas pedras, a lenha. As cabras e as vacas dormem à volta das casas. Há séculos que vivem assim. Os mais recentes sinais de riqueza são as motas chinesas. Mas todos trabalham no ouro.
“Tubabu! Tubabu!”, exclamam os putos com olhos de espanto ao verem chegar brancos. Por toda a aldeia vive-se no frenesim do ouro. Djantum,15 anos e Tuma,13 anos têm os pés enterrados em poças de água barrenta onde agitam meias cabaças na esperança de coar, coar, até que surja um contorno dourado na terra molhada. Um som de pilão-de- ferro ecoa entre as casas. Homens e mulheres desfazem pedaços de quartzo no pilão, até que as pedras se tornem “farinha.” Esse pó será lavado para extrair os grãos de ouro que ficarão para quem os encontrar.
“O Estado não faz nada pelo desenvolvimento desta actividade”, desabafa Monsomba Karamá, 37 anos, geólogo.”Durante o regime de Sekou Touré, o Estado contribuía no financiamento de sociedades mineiras. Depois do regime acabar, em 84, liberalizou-se tudo e o Estado retirou-se completamente”.
A casa de Marinfim Madu, 38 anos é igual a todas as outras de Balandougou. Na única divisão redonda, há uma cama, uma mesa, uma bicicleta e um saco de milho. E há também uma foto a preto e branco do irmão militar com a cunhada, e uma espingarda. E uma corda com roupa pendurada. Todas as manhã Marinfim Madu veste um traje com traços de samurai, põe a boina amaralecida pelo sol, tira a picareta debaixo da cama, junta as cordas, e vai a pé para as minas. Caminha com porte de guerreiro. As duas esposas ficam na aldeia com os 3 filhos.
A área das minas é composta por montinhos de terra entre árvores e buracos profundos. Marinfim ata uma corda ao troco de arvore, na outra ponta está meia cabaça. Desce terra adentro, com movimentos sincopados entre as costas num dos lados do buraco e as pernas do outro. Lá em baixo desfaz com a picareta um pouco mais do quartzo que envia pela cabaça presa à corda.
É nesta área que Vitor Catarino tem uma concessão de 280 km2, que abrange 4 aldeias. Tenciona iniciar a exploração semi-industrial com a expectativa de que “ o que mil homens fazem de buraco por dia , as nossas máquinas podem fazer num único dia”. Das 300 toneladas de ouro que devem existir na zona, Vitor deverá dar ao estado 3% do que exportar, “mas também queremos fazer escolas, um hospital, reflorestar, porque eu acho que isto é tão rentável que é de considerar essas verbas no orçamento”.
Apesar dos 44 graus, o meio-dia é a hora preferida pelos homens de Balandougou. É nessa altura que o sol a pique ilumina melhor o fundo dos buracos e assim o ouro mostra-se aos olhos do mineiro. Marinfim sobe do buraco, encharcado em suor. Os pedaços de quartzo que obteve irão para a aldeia, para serem desfeitos no pilão. “O ouro que encontro é para alimentar a minha família e se sobrar, um dia gostava de construir uma casa”. Ou comprar uma mota, ou pagar o dote para casar com mais uma mulher.
“Como a poligamia é aqui frequente os que ganham muito ouro multiplicam as mulheres. Por isso é que se pode ver um jovem com 3 ou 4 mulheres de uma vez”, constata Monsomba Kamará, o geólogo que não tem ilusões sobre a evolução da aldeia porque “é uma questão de mentalidade, eles não são intelectuais, são analfabetos. Cada um ganha dinheiro para si”.
Entre o ouro, os diamantes e a construção civil na Europa, Vitor Catarino pouco pára em Portugal, embora volte sempre à sua casa do Fogueteiro. As contas das empresas estão nas mãos da esposa, Ana Maria, uma moçambicana que suspira de saudades pela sua ilha de Ibo.
Ana Maria nunca foi à Guiné-Conakry e por vontade dela e do filho, “se pudéssemos votar, ele não iria, porque é muito isolado, muito mato, não tem qualquer assistência”. O filho Cristiano, de 8 anos, passa meses em que vê o pai 2 ou 3 dias entre viagens. De África só ouve as histórias.
Mas é a África que Vitor quer sempre voltar. Sonha alto em alargar a empresa com parcerias entre portugueses e africanos porque “eles precisam da nossa tecnologia e nós podemos colaborar para ensinar, não para explorar de imediato o africano porque isso já não se usa”. Fascinado pelas pedras preciosas, é em Portugal que Vitor tem o seu diamante mais valioso, um Ferrari Testarossa vermelho que faz sucesso nas ruas do Fogueteiro. Extasia-se com o rufar do motor tal como reage a um diamante vermelho, o mais raro que um dia gostava de encontrar na Guiné porque “é um fascínio, o diamante fascina qualquer pessoa, principalmente as mulheres, mas a mim também me fascina”.
Fotografias de Jordi Burch, Kameraphoto
Publicado na revista Única, jornal Expresso, 2008