O 'Cemitério do Elefante Branco', entre a sociologia da literatura e a história de Portugal

João Pedro George (JPG) investiu-se dos dons de historiador e sociólogo para escrever O Cemitério do Elefante Branco Retornados e Ficções do Império, híbrido de sociologia da história e de história social da literatura. Nota-se, no título do livro, que se trata de um ensaio eclético, com uma abordagem polifacética da realidade sócio-cultural de Portugal. Com efeito, para analisaar a produção literária do período imediatamente posterior à descolonização, JPG começa por trazer a lume os antecedentes históricos do retorno à Metrópole de 500 mil pessoas que viviam em África. 

Este é um ensaio interdisciplinar, como bem destaca no prefácio Diogo Ramada Curto, que ressalta a proeza com que o autor “ocupou-se e chamou para si o caso dos chamados retornados, mas tentou integrá-lo numa interrogação mais vasta sobre o colonialismo tardio e o fim do império”. (p.14). 

Um dos primeiros passos no processo gradual da descolonização portuguesa foi dado em 1961, pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira, que aboliu o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, que vigorava desde 1954. Em consequência, as pessoas destas províncias tiveram facilitado o acesso à cidadania portuguesa. Não obstante isto, o Governo do Estado Novo reprimia os que defendiam a independência das colônias e os via como traidores da Pátria e servidores do Comunismo Internacional.

João Pedro George evoca as décadas de 1970 e 1980 para comentar a percepção dos portugueses sobre o processo de descolonização e o valor estético das obras literárias escritas depois de Abril de 1974, quando os residentes nas ex-colónias se viram forçados a retornar a Portugal.

De pronto, um acontecimento no mundo das letras gerou um fato histórico da maior relevância. Em maio de 1965, o livro Luuanda, do escritor Luandino Vieira, recebeu o Grande Prémio de Novelistica, da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE). Luandino achava-se, desde 1963, preso na Colônia Penal do Tarrafal, em Santiago de Cabo Verde, condenado a 14 anos de prisão, por prática de terrorismo contra o Estado em Angola.

Para o Governo do Estado Novo pareceu absurda a premiação de um escritor que fora condenado por defender interesses diametralmente opostos aos do Estado. Em nome do regime autoriário, o ministro Galvão Telles mandou extinguir a SPE. De seguida, a sede da SPE foi assaltada e saqueada por cerca de 50 indivíduos que pertenciam a organizações nazi/fascistas do regime. 

A polícia política portuguesa (PIDE) tentou intimidar Linda, a mulher de Luandino, exigindo-lhe que devolvesse o dinheiro. Ela redarguiu que o montante do prémio servira para custear a edição do livro.

Recorda JPG que Luandino Vieira nasceu em Portugal e com um ano e pouco foi viver para Angola, onde desempenhou funções fundamentais na difusão da literatura angolana, especialmente ao dirigir o jornal Cultura em Luanda.

Houve protestos nacionais e internacionais contra o fechamento da SPE e contra a detenção dos escritores Manuel da Fonseca, Augusto Abelaire e Alexandre Pinheiro Torres, membros do júri que atribuiu o prémio a Luandino. 

Alguns escritores tiveram a coragem de protestar contra a extinção da SPE e expressar solidariedade a Luandino. Em janeiro de 1965, Urbano Tavares Rodrigues (autor de As Pombas São Vermelhas (1977), que versa sobre o tema dos retornados) elogiou o livro de Luandino Vieira no República (no suplemento República das Artes e das Letras). 

A SPE interpôs recurso da decisão do Governo no Supremo Tribunal Administrativo. Marcello Caetano recebeu, em novembro de 1968, os representantes da SPE e lhes assergurou que o Exército e a União Nacional não permitiriam que a associação de homens de letras fosse restabelecida. Caetano oscilava entre a liquidação violenta dos movimentos independentistas do Ultramar e a solução pacífica, mediante um federalismo de relativa autodeterminação para as colônias.

De inopino, JPG dá uma guinada na sequência temática e situa o leitor no momento crucial da transição da política portuguesa: de 1974 a 1976, chegaram mais de 500 mil “descolonizados”, por assim dizer. 

Houve duas tentativas de golpe de Estado em 1975. Em 1976, a Constituição Portuguesa reconheceu o direito a autodeterminação dos povos e a Terceira República, que então se iniciava, teve seis governos provisórios. O desemprego gerava um ambiente adverso para os retornados, que o regime político obrigara a fugir das colónias. Eles reivindicavam apoios, empregos, assistência médica, transportes públicos gratuitos e bolsas de estudo. A violência não tardou a ser o argumento com que exigiam do Governo os dinheiros que haviam perdido, deixando os bens móveis e imóveis em África. 

Os insatisfeitos perpetraram alguns atos de vandalismo, tais como invadir a Secretaria de Estado dos Retornados e, de seguida, agredir dois deputados comunistas e o ministro-adjunto Almeida Santos.        

As direitas do período posterior ao 25 de abril de 1974 denunciavam a ignomínia da descolonização ou “a traiçoeira descolonização  exemplar”. Mário Soares, que terá usado a expressão descolonização exemplar, manifesttou, em 7 de junho de 1977, o temor de que os retornados ou desalojados pudessem vir a compor as forças de direita, “senão mesmo de extrema-direita”.

O Governo criou organismos para lidar com o acolhimento e apoio aos retornados. Desenvolveu programas para a construção de habitação, criação de postos de trabalho e distribuição de créditos. As compensações concedidas aos retornados não eram suficientes para contentar a tamanha demanda.  

 Aglomerados no Rossio e adjacências, os retornados empunhavam cartazes com reivindicações dos seus direitos. Pelo estardalhaço que provocavam, eram vistos como conflituosos. Boatos fantasiosos lhes atribuiram a fama de ladrões e vigaristas e de terem introduzido em Portugal o consumo de drogas ilegais 

João Pedro George mostra como esses antecedentes históricos foram determinantes para a definição da literatura portuguesa do período de transição do Estado Novo à democracia. Com efeito, depois da Revolução do 25 de Abril de 1974, sugiram muitas obras literárias, “escritas por portugueses que nasceram nas colônias ou que para ali foram viver e decidiram ou se viram forçados a abandonar suas residências”. Estes livros acusavam de imprevidentes os setores políticos e militares responsáveis pela descolonização. Argumentavam que nem os portugueses nem os africanos tinham sido ouvidos ou consultados no processo descolonizador.

As editoras se interessaram sobremodo por essa “literatura do fim do império” ou “do colonialismo tardio”, tal como classifica João Pedro George os diversos livros em que se relatam as experiências dos portugueses que se viram forçados a abandonar as colônias africanas. JPG observa que essas narrativas retratam a experiência social dos colonos brancos. Os negros quase nunca são adequadamente situados nos enredos. O processo de descolonização, no entanto, trouxe para Portugal não apenas pessoas brancas, mas também negras mestiços e hindus.

O objetivo eminentemente lucrativo das editoras fez com que o aspecto emocional do público leitor fosse intencionalmente enfatizado pelos autores. Os editores adaptaram-se às regras próprias dos bestsellers. O tema amoroso é ubíquo nessa produção literária, em que são dramatizados os amores das pessoas que foram forçadas a deixar quase tudo para trás, no regresso à Metrópole despojada do império.

O autor de O Cemitério do Elefante Branco comenta o sucesso de vendas dos livros com a temática da descolonização, como O Anjo Branco, de José Rodrigues dos Santos, que teve 24 edições de 2010 a 2019, e Equador, de Miguel Sousa Tavares, sendo este o principal bestseller, com 38 edições de 2003 a 2015. 

O juízo crítico que faz João Pedro George dessa literatura é direto e objetivo: “nenhum destes livros assume uma atitude de crítica frontal ao colonialismo, nem mesmo Equador, que inclui vários excertos sobre a escravatura nas plantações são-tomenses. O “drama real das populações negras” não é abordado nestas obras “reveladoras do imaginário mítico da África portuguesa ou, se quiserem, dos pressupostos ideológicos, das imagens e das fantasias acerca do colonialismo luso”. (p. 319). 

O próprio João Pedro George é retornado. Chegou a Lisboa em 1972, com três anos de idade, procedente de Moçambique e viveu a sua infância e adolescência no Bairro da Tapada do Mocho, localizado na margem esquerda da Ribeira de Paço dos Arcos. Os terrenos ali constituíam uma espécie de elefante branco do império colonial, sendo este mesmo império (como explica o prefaciador do livro) visto por alguns como um elefante branco, no sentido de ser algo valioso, porém com inconveniente custo de manutenção pelo proprietário.

Todo este manancial de informações e interpretações desemboca num estuário instigante. A conclusão a que chega o autor, após as razões expostas ao largo do ensaio, é de que “a democracia ainda não conseguiu expurgar a sociedade portuguesa da estigmatização social de que os negros continuam a ser alvo”. JPG entende que o racismo permanece como a principal herança colonial dos portugueses. Por fim, afirma, categoricamente, que as instituições e estruturas dos portugueses estão eivadas desse racismo, realidade esta que invalida “a tese de que as coisas se resolvem por si mesmas. Para isso, diz-se, devemos olhar para diante – esquecendo que o futuro é sempre o produto de um investimento no e do presente.” (p. 320).

 

por Márcio Catunda
A ler | 26 Agosto 2024 | O Cemitério do elefante branco, retornados