O francês, a francofonia e nós
Este texto restitui e põe em causa uma certa relação que o locutor africano francófono tem face à língua francesa. Procura «humanizar» o francês, fazê-lo descer do pedestal em que tem sido colocado para o trazer às suas justas proporções. Sobrevalorizado sob certos céus africanos, o francês possui, efetivamente, todas as características de um mito todo poderoso: constitui um sinal exterior de saber, confere prestígio e abre as portas do poder. Por essa razão, é necessário desmistificá-lo para pôr a nu o «veneno mortal» que encerra. Uma vez aliviado da sua carga alienante, uma nova pedagogia, concebida a partir de preocupações puramente endógenas, redefinirá o seu estatuto e lugar entre as línguas estrangeiras, no âmbito mais geral de uma nova glotopolítica.
Acabar com o mito do francês concebido como língua africana
Há uma crença persistente que pretende que o francês seja considerado uma língua africana. Crença essa reforçada pelas palavras do grande Léopold Senghor. Confessando ele próprio pensar em francês - «Eu penso em francês; eu exprimo-me melhor em francês do que na minha língua materna» - o poeta-presidente dava como razão da «africanidade» do francês, a elevada aculturação das elites, o facto de «a elite» senegalesa pensar em francês e exprimir-se melhor nessa língua: «o francês já não seria efetivamente uma língua estrangeira, dada a condição de extrema aculturação que teria levado as elites senegalesas a pensar em francês e a exprimirem-se melhor nesta língua do que nas suas línguas maternas, repletas, no fundo, de «francesismo» nas cidades».
A realidade era completamente diferente. Vejamos o caso da Roménia e do Mali. Na Roménia há mais de 2 milhões de alunos que estudam o francês e cerca de 15 mil professores de francês. No Mali, contam-se pouco mais de 2 milhões de falantes do francês. No entanto, esta língua é considerada como língua estrangeira na Roménia pelo facto do romeno e do francês pertencerem ambas à mesma família das línguas românicas. No Mali, nenhuma das línguas locais faladas no país é da família do francês e, curiosamente, pretende-se que o francês não seja aí uma língua estrangeira! O francês que é «geneticamente» da família do português e do italiano, seria uma língua estrangeira em Portugal e na Itália, mas não uma língua estrangeira no Senegal! Uma maneira curiosa de ver as coisas!
Todavia, é verdade que pessoas que estiveram longamente em contacto com o francês, podem ingenuamente pensar que esta língua faz parte integrante de si e que, por isso, não seria verdadeiramente uma língua estrangeira. Este sentimento é acentuado pelo facto desta língua, ainda que minoritária, ter sido considerada língua oficial na maior parte dos países ditos francófonos de África. Sejamos claros: esta situação é efetivamente fruto de uma inconsciência que foi sabiamente mantida pela administração colonial e as elites francófonas locais.
Mas vamos mais longe. Linguisticamente, o francês é uma língua estrangeira. Pertence à família das línguas românicas e não tem, portanto, nenhum parentesco com as línguas africanas, nem morfológica nem estruturalmente. Historicamente, o francês impôs-se em África pela colonização, ao passo que a presença das línguas africanas é aí confirmada desde tempos muito recuados. Geograficamente, milhares de quilómetros separam o berço do francês dos países africanos e esta língua não conseguiria, sociológica e psicologicamente, exprimir o «eu profundo» dos africanos. Não, o francês não conseguiria exprimir adequadamente o génio do povo sereer, a visão do mundo dos Fang ou dos Sara.
A não ser na esfera da nostalgia, e sob o domínio da pura «emoção» tão querida ao poeta Senghor, o francês não pode, em rigor, face ao que ficou demonstrado, ser considerado uma língua africana. Tomar o francês pelo que é, ou seja, uma língua estrangeira, permitirá, em parte, desvendar o que faz o fracasso da sua didática na maior parte das vezes em África.
Para acabar com a «nevrose» linguística
Os africanos ditos francófonos fizeram de uma língua de colonização uma língua elitista, uma língua de prestígio, de promoção social e que dá acesso ao poder. Bem aventurado aquele que fala sem sotaque e trabalha para preservar a sua «pureza». No seu tempo, o presidente Senghor extasiava-se com o facto de, na Rádio-Dakar, as emissões francesas serem de uma língua mais pura que as emissões em línguas vernáculas. Melhor, dizia ele, nem sempre é fácil distinguir, pelo não iniciado, as vozes dos senegaleses da dos franceses.
O francês é a língua dos «eleitos», daquela casta de privilegiados ciosos de poder, quantas vezes imenso, que lhes confere a língua. Neles, a sintaxe ultrapassa muitas vezes a semântica e presumem que quem a fala bem domina o saber. Blasonar pelo francês torna-se um sinal exterior de saber. O africano francófono chega mesmo a esforçar-se mais por cuidar da forma do que por ter em conta o seu interlocutor. Este excesso de cuidado com a língua levou o filósofo do Benin, Paulin Hountondji, a falar de «comunicação truncada». Se a «língua vulgar» aproxima e junta os homens, para o «colonizado», diz o filósofo, «o Outro não é o interlocutor, é a linguagem». Sobrevalorizada, esta linguagem é «vivida como uma opacidade, como uma matéria rebelde na qual é preciso concentrar todos os esforços desviando-os de qualquer outro objeto.» É por isso que “O comportamento linguístico do africano quando se exprime em francês, tem todas as características de uma nevrose.”
Aliás, nos países africanos ditos francófonos acontece esta coisa curiosa: Fala-se de problemas africanos em textos escritos dirigidos, na realidade, a um público não africano. Dado que nesse caso o francês é minoritário, há uma espécie de exteriorização que levou Boubacar Boris Diop a retomar a pergunta crucial de Jean-Paul Sartre: «Para quem escrever?» O escritor senegalês interroga-se «para quê escrever romances que as pessoas vão ler em França ou na Bélgica e nunca no vosso país?» Nos meus romances, eu refiro que África não está bem. É verdade. Mas a quem devo contar isso? Aos estrangeiros ou aos africanos que são quem tem de mudar a situação?… Nós, escritores de língua francesa - eu, em parte - remetemos para o mundo a imagem de uma África corrupta e imatura. Imaginemos que seja verdade… pois bem, escrevamo-lo numa língua que os africanos compreendam para que possam mudar de orientação.»
Acabar com o culto da língua
O que o francófono inculca nos africanos é o culto da língua francesa, um amo sem limites à língua de Rivarol. O escritor Mongo Beti, pasmado com esta exigência excessiva, barafustou: «Mas, afinal, o que é esse ato de fidelidade ou de amor à língua francesa que se espera de nós? Porque havia eu de festejar o francês? Porque escrevo em francês? Sendo habitante dos subúrbios, pego no meu carro todas as manhãs para ir trabalhar no centro da cidade. Quem ousaria pedir-me que fizesse uma declaração de amor ao meu carro?
Seguindo o mesmo pensamento, o escritor senegalês Cheik Aliou Ndao, que muito cedo compreendeu a «orquestração», foi um pouco mais longe que Béti ao distinguir «herança» e «acidente histórico». «Não escrevemos em francês por amor ou por uma escolha deliberada.» Usamos a língua de Molière por acidente histórico. A francofonia não é a nossa herança, porque o nosso eu profundo exprime-se nas nossas línguas maternas. Escrever numa língua de empréstimo é aceitar participar numa literatura de transição.»
Longe de ser essa «comunidade espiritual» de que fala Senghor, a francofonia é a prossecução, sob forma dulcificada, do projeto colonial de afirmação dos valores da civilização da França. É a caixa de graves a partir da qual se envia ao mundo o eco da «grandeza da França». É a oficina a partir da qual deve ser fabricada a pílula do esplendor do francês.
Além de pedir aos africanos que declarem o seu amor à língua francesa, a francofonia gostaria que eles permanecessem no papel de executantes que participam na sua expansão pelo mundo. A francofonia espera dos africanos «francófonos» que sejam zelosos propagadores da língua e da influência francesas; uma preocupação, porém, nos antípodas das suas prioridades. Com a francofonia, procura-se perpetuar o que era o projeto colonial e que o tenente Paulhiac exprimiu em 1905, com uma incrível precisão: «A nossa língua implantar-se-á pela força das coisas e não o esqueçamos, é um dos meios mais seguros de fazer perpetuar o progresso nas nossas colónias, como será a única coisa que nos permitirá conservar para sempre as próprias colónias… é na nossa língua que residirá a nossa força, como há-de ser, mais tarde, a base da nossa indestrutível influência nos países que tivermos moldado à nossa imagem».
Noutros termos, é uma forma subtil de manter na sua alçada os países africanos ditos francófonos - alguns diriam «domínio» - da França. O económico deverá ser o prolongamento natural do cultural. A francofonia deverá ser o pretexto para o domínio económico. Os seus objetivos expressos com clareza pelo antigo secretário de Estado do Ministério dos Negócios estrangeiros, Yvon Bourge, em1967, em plena Assembleia Nacional francesa, não se alteraram uma vírgula: «O primeiro objetivo do meu Departamento é o de favorecer a penetração da língua e da cultura francesas nos países de África e de Madagáscar… O segundo objetivo a que nos propusemos é de ordem económica: a manutenção e o desenvolvimento dos interesses comerciais e industriais franceses constituem igualmente uma preocupação constante da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros encarregada da Cooperação. Digo-o sem vergonha. Isso, aliás, nada tem de ilegítimo nem de sórdido. A cooperação não é um empreendimento interessado no sentido egoísta do termo, mas não pode tratar-se de esbanjamento nem de prodigalidade…»
Para acabar com o conhecimento tardiamente adquirido
Enquanto o jovem africano em zona francófona forjou geralmente as suas primeiras experiências afetivas e cognitivas no contacto com a sua mãe e os seus próximos na sua língua materna, o seu desenvolvimento «normal» é bruscamente interrompido pela imersão em turmas onde só se fala francês. Aí, ele tem que dominar a sintaxe - por vezes, à custa de humilhações (como o uso do «símbolo» das «orelhas de burro», por exemplo, que aterrorizou gerações inteiras de alunos) - antes de tentarem inculcar-lhe os primeiros segmentos de conhecimentos.
Ninguém exprimiu melhor e tão pertinentemente este atraso da criança africana para adquirir o saber como o professor Cheikh Anta Diop: «No mesmo dia em que o jovem africano entra na escala, ela já tem descirnimento suficiente para apreender o segmento de realidade contido na expressão: um ponto que se desloca gera uma linha. Mas, como escolheram ensinar-lhe esta realidade numa língua estrangeira, será preciso esperar, no mínimo 4 a 6 anos, para que tenha o vocabulário e a gramática suficientes, isto é, um instrumento de aquisição do conhecimento para que possam ensinar-lhe aquela parcela de realidade». O que não acontece com a criança francesa que aprende diretamente na sua língua. Esta parte do conhecido (a sua língua materna) para o desconhecido (as outras línguas e as matérias novas que lhe são ensinadas), ao passo que a criança africana, essa, esbarra no desconhecido, num espaço em que a realidade está encoberta «por uma membrana estanque que a separa do espírito» e em que «a memória chega a substituir a razão».
Memorização e superficialidade constituem o destino cognitivo do jovem africano francófono. Mais tarde, ele virá engrossar a massa dos «papagaios que repetem» e dos «macacos que imitam» para retomar as palavras do Pr. Amady Aly Dieng da Universidade de Dakar. Este não-saber, resultante da memorização excessiva é, aliás, o que sobressai das palavras de Louis Vignon, antigo membro da Academia das ciências morais e políticas de França que, depois de ter evocado os escritos de Rousseau, de Montesquieu, os livros de histórias e de política ocidentais, afirma, falando dos colonizados, que «Tudo isso retido pela memória, mal compreendido, mal digerido por cérebros cujos pais não o tinham pensado e nem o podiam pensar, de certa maneira envenenou-os.»
Como explicar, se não for por automatismos de repetição maquinal, que se tenham mantido até ao início dos anos 70, no hino nacional dos Camarões, as seguintes palavras da primeira estrofe?
Ó, Camarões, berço dos nossos mestres
Outrora viveste na barbárie,
Como um sol que começa a despontar
Vais saindo pouco a pouco da selvajaria
Na verdade, o francês, considerado como língua exclusiva de ensino, obriga o jovem africano a fazer um duplo esforço «para assimilar o sentido das palavras, diz-nos Cheikh Anta Diop, e depois, um segundo esforço intelectual para aceder à realidade expressa pelas referidas palavras». Se acrescentarmos a isso o facto da estrutura do francês ser diferente da das línguas africanas, compreende-se por que razão uma plêiade de jovens cérebros é deixada à deriva pelo sistema. Compreende-se, sobretudo, a razão pela qual ainda hoje se continua a falar do «baio nível» e da «dificuldade de aprendizagem do francês». O governo francês está de tal modo consciente deste problema que financia (até cerca de 9,1 milhões de euros), por intermédio da Organização internacional da Francofonia, da Agência internacional da francofonia, da Agência universitária da Francofonia, da Agência francesa para o desenvolvimento e do Ministério francês dos Negócios Estrangeiros e Europeus, o programa ELAN (escola de línguas nacionais em África) em 8 países de África para, dizem, «remediar o insucesso escolar devido à dificuldade de aquisição da língua francesa». Também aí, mais uma vez, está a França que tem todo o interesse nisso.
Por conseguinte, uma nova pedagogia, que se apoie numa política linguística inteligentemente concebida é, mais que nunca, necessária aos nossos países. Esta nova política, que voltaria a dar dignidade às línguas nacionais, deve necessariamente arrepiar caminho relativamente àquela que era tão grata ao presidente-poeta, em última análise, ao francês como língua principal para que o Senegal não chegue dizia ele, «em atraso chegada do Ano 2000».
Também é imperiosa uma nova relação do locutor africano com o francês. O francês deve, doravante, ser considerado como aquilo que é: uma língua estrangeira imposta pela colonização cuja sobrevalorização é absurda. O francês deve deixar de ser para os africanos um instrumento de mistificação e de alienação e tornar-se numa simples ferramenta de aquisição de conhecimentos. Nisso consistirá a sua desmitificação; nisso consistirá a sua bem sucedida descolonização e humanização.