O jardim selvagem de Laura do Céu (ou de Soraia Simões de Andrade)
Esta coletânea de poemas é, sem dúvida, um livro de poesia muito bom. Mas não é isso o que verdadeiramente importa. O que importa é que é um livro inconfundível. E isto, nos tempos que correm, é algo raro, digno de nota.
E tal sucede por várias razões. Antes de mais, porque a autora verdadeiramente escreve poesia. E hoje escreve-se mais meta-poesia, versos sobrevindos da academia e não da vida. A maioria das obras poéticas portuguesas atuais mais parecem tratados filosóficos em segunda mão. Lá figuram invariavelmente Wittgenstein e Dante, ou aparentados; as vivências do autor, as suas dúvidas reais, as suas hesitações, essas pouco ou nada interessam. Hoje, de um modo geral, falta à nossa poesia o fundamental: o diálogo com a vida e com o desconhecido. Nesse género de livros, ditos meta-poéticos, o autor aparece somente como máquina de citações e especialista em pastiches literários.
Este livro é diferente. Os poemas de Laura do Céu, em Em/Sem Terra, estão repletos de pessoas e de estarrecimentos vários ante as coisas comezinhas e menos comezinhas da vida. É um livro para os que, como a autora escreve em “Poetagem”: “Amam Gina Lollobrigida e destroem Deleuze” (Laura do Céu, 2021, p.34).
Não quer isto dizer que não haja nele uma assinalável erudição e múltiplas referências literárias. Há, e muitas delas surgem em quadro femino-feminista. Abundam figuras mitológicas, como Cassandra e Antígona, poetisas como Emily Dickinson e personagens literárias como a pequena e irrequieta Alice. E também habitam estes poemas pensadores como Platão, Cioran e o juiz-penitente camusiano da Queda. Contudo, a autora escolhe bem as suas afinidades eletivas e não se deixa manietar por elas, nem, em momento algum, as tenta mimetizar. Como ela própria chega a afirmar: os “Ruídos do eu não pedem licença, para nada. São, criticamente, livres” (Laura do Céu, 2021, p.39).
Ressalta também, neste poemário, uma apurada oficina poética. Temos metáforas insólitas, plenas de significado, como estas que passo a citar: “Os nervos trancados num vaso” (Laura do Céu, 2021, p.62), ou “uma mandrágora de sons” (Laura do Céu, 2021, p.43). Há, igualmente, constantes jogos musicais com a própria linguagem, entre os quais aliterações, trocadilhos e rimas internas. Vejamos alguns: “Branda a brisa/ riam formosas as tias (Laura do Céu, 2021, p.77)”; “Faia de flores femininas” (Laura do Céu, 2021, p.78)”; “quão mais simbólico/ que diabólico/ tesão da manhã” (Laura do Céu, 2021, p.58). E pululam também, a espaços, expressões latinas: “sincera-fide” (Laura do Céu, 2021, p.56), “in natura”, etc. (Laura do Céu, 2021, p.55). Em suma, é uma obra eivada de uma vasta e rica paleta de estilemas literários.
Contudo, friso outra vez, também não é isso o que mais importa. A autora não parece interessada nos meros jogos de linguagem da meta-poesia. Ela está, isso sim, interessada em perscrutar-se. Certos versos fazem lembrar o gesto de encostar um búzio ao ouvido com o intuito de ouvir o som da nossa corrente sanguínea. Não sei se sabem, mas aquele som que nos parece o ressoar do mar, quando nos pomos a escutar um búzio, é, na verdade, o eco do nosso sangue a mover-se nas nossas entranhas. E este livro é, assim, um livro de emoções fortes. Há nele muitas pontes que se constroem, mas outras tantas que se derrubam sem piedade, e versos que, sem pedir licença, nos atravessam o coração, como estes:
“Já me entreguei por instinto
Fiz dos dentes uma faca
Erigi-me sozinha (…)
Escolho militantemente o meu destino”
(Laura do Céu, 2021, p.19)
É, portanto, um livro de quem se desconstrói e reconstrói poeticamente, numa espécie de auto-gnose literária. Daí que alguns títulos, e vocábulos utilizados, se refiram a operações e métodos decorrentes da psicanálise. “Ab-reação”, por exemplo, relacionado com o reviver catártico de traumas passados; e “Anamnese”, que se reporta à história narrativo-clínica de um paciente.
Em correlação com esse aspeto de auto psicanálise, existe um reiterado sondar da memória. Estes poemas são férteis em recriações mnemónicas, que passam pela infância, livre e desbragada, em ambiente rural, até ao fervor adolescente do ambiente citadino, enquadrado por motes punk e canções dos Smiths. Assim, quase cinematicamente, a autora deambula perante nós nas suas várias encarnações: a criança traquinas, a jovem culta que descobre a pulsão da morte e a libido, e, por fim, a mulher adulta a tomar em mãos a vida, sem deixar de estar atenta à morte e aos seus sinais anunciadores – a velhice, a decrepitude e, sobretudo, o desaparecimento físico dos mais próximos. E, por isso, é um conjunto de poemas habitado por fantasmas; amiúde, são fantasmas familiares, mas nem por isso deixam de ser fantasmas, nem por isso deixam de ser figurações de pessoas já mortas.
Na essência, este belo, genuíno, livro de poemas, remete para o romantismo. Não é por acaso que nele são, a certa altura, invocados Goethe e Vitor Hugo. Vários indícios apontam para essa correspondência de sensibilidade com o imaginário da Sturm und Drang, aqui, claro, em cenário contemporâneo.
Por um lado, há um certo pendor para o abissal, para o fantasmagórico. Como a autora, a certa altura, afirma, é preciso “Descer às catacumbas, despertar os fósseis” (Laura do Céu, 2021, p.41), e “cotejar avejões/ Fés obscuras, espíritas, fatuidades” (Laura do Céu, 2021, p.32). Por outro lado, aquele que é o tema mais obsessivamente tratado pelos autores do romantismo, emerge aqui nas suas facetas de fascínio e, simultaneamente, de repulsa. Refiro-me a “Antecâmera do fim”: a morte, acerca da qual a autora tem uma consciência poética aguda.
Em decorrência, tal como em Mary Shelley e Milton, perpassa nestes poemas de Laura do Céu um indesmentível travo gótico, observável, por exemplo, na referência às “pulgas dos morcegos”, ou aos “demónios” que, diz-nos a autora, “aparecem quando menos se espera” (Laura do Céu, 2021, p.64). A certa altura, somos mesmos confrontados com um “Paganini/ De copo com uísque e rum na mão” (Laura do Céu, 2021, p.54), que nos faz lembrar imediatamente Lúcifer, o anjo caído sobre o qual os românticos escreveram copiosamente.
De modo similar, não me parece que a autora se sinta particularmente atraída pela beleza. Ao invés, o que ela parece perseguir é o confronto iluminador com o Sublime. E o Sublime, tão bem explicitado por Durkheim, é o oposto da beleza harmónica. Fazendo uma analogia: a beleza será quiçá uma mulher nua; o Sublime, por sua vez, uma mulher nua com uma bomba relógio nas mãos. Assim, as páginas de grande e intangível alegria neste excelente livro de poesia são, sobretudo, aquelas em que a autora, ao entrar no seu jardim selvagem, no seu éden pessoal, toca e conquista o Sublime. Por exemplo, quando enfrenta uma cobra de água ou arrisca a queda, ao subir a uma árvore alta e traiçoeira.
Este livro é inconfundível. Leiam-no.