O mar e as correntes da Literatura chinesa

Entre mim e a literatura chinesa há sempre, com sorte, um Tiago Nabais. Podem ser dois e esses dois podem nem dominar a língua chinesa, tal é ainda a complexidade do processo de verter para português a língua chinesa e a escassez de tradutores literários qualificados. Eu não domino a língua chinesa. Vivi em Macau vários anos, no sul da China, e consigo comunicar naquilo a sói chamar-se cantonês de rua – dizer direcções, pedir comida, trocar umas poucas frases e logo de seguida ter de conseguir conter o entusiasmo de algum local – um taxista, um vendedor de banca de peixe – e que acredita estar na presença de um falante do seu idioma. Não está. De mandarim não se pode dizer que saiba grande coisa além de contar até dez, com maior segurança até cinco, mais umas quantas frases de calão que a minha namorada, chinesa, me vai atirando.  

Não me considero, por isso, de modo algum, especialista em literatura chinesa, ou especialista em coisa alguma, a bem dizer. Está-me vedado o espanto que o Tiago Nabais pode sentir perante um texto em língua chinesa, o mesmo que sentiu o veterano escritor Jia Pingwa 贾平娃  (Ruined CityHappy Dreams, traduzidos em inglês), quando em criança roubou da casa da tia dois volumes do clássico Dream of the Read Chamber, de Cao Xueqin, e os começou a ler. O deleite, a afeição e gosto tenho por alguns autores chineses é sempre indirecto, filtrado.

Este episódio da infância de Jia Pingwa é contado pelo próprio num documentário ainda por estrear em Portugal, da autoria do cineasta Jia Zhangke 贾樟柯, um dos mais importantes e interessantes realizadores chineses da actualidade. O documentário chama-se Swimming Out Till the Sea Turns Blue, é composto entre outras coisas de longas entrevistas a vários autores chineses. Já tive a oportunidade de vê-lo e aproveito outro episódio do filme para lançar um olhar sobre a literatura da China – e porque não sobre toda a criação artística na China, e porque não sobre toda e qualquer vida que almeje mais do que a banalidade do consumo desenfreado que hoje se generalizou.

Yu HuaYu Hua

O episódio de Swimming Out Till the Sea Turns Blue que aqui trago passa-se com Yu Hua 余华, outro grande escritor chinês contemporâneo (China em Dez PalavrasViver), que o Tiago Nabais também traduziu, e um dos autores chineses que maior impacto teve neste leitor. No documentário, Yu Hua olha o mar de Hayan, na província de Zhejiang, perto de Hangzhou e Xangai, na costa oriental da China. Com os olhos na lonjura do mar, vai contando com um sorriso melancólico que muitos anos antes nadava ali quase todos os dias com os amigos. Certa vez, foi apanhado por uma forte corrente e depressa percebeu que era inútil lutar contra a força das águas. Yu Hua deixou-se levar. Foi arrastado por mais de 20 quilómetros na baía de Hanghzou até conseguir regressar à costa e sair. Caminhou de volta todo e cada quilómetro, descalço e resignado. 

Esta é – muitas vezes antes e hoje por certo – uma imagem triste mas ao mesmo tempo feliz para explicar aquilo por que passam os escritores sérios e outros intelectuais na China. Por vezes percebem que é impossível rumar contra a corrente e deixam-se levar, só para depois retomarem o seu caminho, mesmo que descalços. 

Yu Hua foi um dos muitos autores que visitou o Festival Literário de Macau durante os sete anos em que fui seu director de programação. Começámos o festival em 2012, numa China e numa Macau e numa Hong Kong muito diferentes das de hoje. Seria o ano da subida ao poder de Xi Jinping mas ninguém podia ainda supor o que isso viria a representar. Hu Jintao e Wen Jiaobo, presidente e primeiro-ministro anteriores, eram uma dupla moderada. Respirava-se bem em Macau, não se asfixiava no Continente e durante esses anos dourados – essa tonalidade tão chinesa a par do vermelho – levámos a Macau alguns dos melhores artesãos da língua chinesa. Faltou Yan Lianke (As Crónicas de Explosão, trad. Tiago Nabais) e não foi por falta de convite. 

Há vários livros que quero referir nesta breve passagem pela literatura chinesa contemporânea. Alguns são fruto desse trabalho no festival Rota das Letras, já que convidávamos todos os autores que nos visitavam a escrever sobre Macau a posteriori. Nem todos o fizeram mas muitos aceitaram o desafio. Contos, poemas, crónicas de mulheres e homens de Portugal, Brasil, Moçambique, Cabo Verde e outros países onde o português se fala; mas também de Macau, da China Continental, de Taiwan, de Hong Kong, Filipinas, da Malásia, Indonésia, Coreia do Sul e por aí em diante. Outros livros são de gente muito boa que passou pelo festival. Por exemplo as memórias de Lijia Zhang, com o título Socialism is Great. Ou Factory Girls, livro de não-ficção de Leslie Chang, sobre a grande convulsão que foi a transformação do sul da China e, na verdade, de quase toda a China, com pequenas aldeias a transforem-se em grandes urbes e com as enormes migrações internas que isso espoletou; ou ainda Xu Xi, autora de Hong Kong que tem um belíssimo livro epistolar no qual se despede da sua cidade. Chama-se Dear Hong Kong. 

Outra das autoras que gostaria de referir aqui é Yan Ge 颜歌, escritora ainda jovem, agora a viver no Reino Unido, que começou a publicar muito nova e tem já vários livros traduzidos em inglês. Recentemente, num gesto muito nabokoviano, Yang Ge começou um processo de migração de língua, escrevendo e publicando em inglês. Ela, diga-se, não é caso único entre os escribas chineses radicados fora da China: o escritor Ha Jin 金雪飞, há décadas a viver nos Estados Unidos da América e que publicou recentemente uma excelente biografia do grande poeta Li Bai 李白, The Banished Immortal, também fez esse caminho. De Yan Ge, recomendo Strange Beasts of China, traduzido para inglês e publicado no ano passado. 

Shen KeyiShen KeyiFinalmente, Sheng Keyi 盛可以. Conheci Sheng Keyi quando tropecei em Northern Girls, primeiro romance da autora traduzido para inglês e publicado pela Penguin, sobre jovens mulheres da China rural que viajam para a sulista província de Cantão em busca de uma vida melhor. Sheng Keyi, que nasceu na província de Hunan, foi uma dessas mulheres, quando aos 19 anos comprou um bilhete de comboio, desapareceu de casa e pôs-se a caminho de Shenzhen. Trabalhou numa empresa de segurança. Trabalhou como editora de uma revista. Começou por escrever contos e, anos depois, decidiu estudar jornalismo na Universidade de Shenyang, subindo, e de que maneira, às províncias do norte. Em 2012 convidámo-la a estar presente no Festival Literário de Macau e, enquanto preparava o programa, olhei várias vezes a fotografia que nos enviara. É uma fotografia a preto-e-branco, quase de perfil. Keyi tem a cabeça coberta com uma espécie de manto. Os cabelos desalinhados escondem pequenas fracções do seu rosto muito pálido, os olhos parecem semicerrados e fixam a câmara, e há um sorriso contido que se desenha. Tudo nela é frágil, tudo nela é forte.

Tive a mesma sensação quando finalmente a vi em Macau, caminhando sozinha, serena, limitada pelo pouco inglês que articulava mas também salva por essa falta de vocabulário – salva de ter de se dar a toda a gente. 

No belíssimo Teatro D. Pedro V de Macau, Keyi falou do seu livro, da China e da literatura na China, falou do lugar do escritor no mundo contemporâneo. Se já gostara de lê-la, impressionou-me ouvi-la. Nunca mais lhe perdi o rastro.

Um dia quis escrever sobre ela e enviei-lhe umas perguntas. Queria saber qual o grande desafio que alguém como Keyi – mulher, chinesa, solteira, escritora – enfrenta? Ela respondeu por escrito, em chinês, depois traduzido e traduzido outra vez, para chegar aqui:

“Julgo que o maior desafio ainda é a ansiedade e o stress de escrever. Porque para ser uma escritora tenho primeiro de ser uma pessoa, uma cidadã chinesa. No entanto, aquilo que uma pessoa e uma cidadã é deve estar presente naquilo que escreve de uma forma poderosa. Quando há montanhas diante de nós, a arte de rodopiar no ar da realidade é extremamente importante para os escritores.”

O “ar da realidade” de que fala Sheng Keyi fê-la rodopiar para a fama relativa, primeiro nos círculos literários do Sul da China e de Pequim, depois nos EUA, com a publicação em inglês de Northern Girls, livro que recebeu largos elogios da crítica e foi finalista do Man Asian Literary Prize. Pelo meio, escreveu de tempos a tempos uma coluna opinião no New York Times – uma escrita activista, socialmente comprometida, sobre o papel da mulher na sociedade chinesa, a gravidez, o aborto; sobre a contaminação pela indústria dos cursos de água do seu país, que vêm destruindo comunidades reais ao mesmo tempo que devastam a ideia intangível de uma infância de riachos cristalinos e verdes prados que Keyi conserva. 

As memórias de Tiananmen e a China actual levaram Keyi a desenhar as ruas de Swan Valley, no país ficcional de Dayan, casa de uma sociedade distópica que a escritora apresenta em Death Fugue, outro livro seu e o segundo a traduzido para inglês, publicado na Austrália. Em Death Fugue, após um incidente que faz lembrar em tudo a supressão violenta dos movimentos estudantis em Tiananmen, o poeta ficcional Yuan Mengliu desiste da poesia para se tornar médico. Yuan Mengliu acaba por chegar a um lugar estranho, uma sociedade que à primeira vista parece perfeita, mas que se revela bem mais complexa e perigosa do que poderia aparentar: a Swan Valley imaginária de Sheng Keyi.

Não posso fechar sem falar do autor que provavelmente mais me escancarou as portas da literatura moderna desse país incrível que é a China. Lu Xun 鲁迅 (1881-1936). Um artigo do New York Times sobre Lu Xu começa assim: “Este é um momento deprimente e assustador para a maioria dos escritores chineses, um período em que eles não se atrevem a desafiar o Governo e têm resignadamente de deixar os seus melhores manuscritos nas gavetas das suas secretárias.” É um texto de 1990. Podia ser um texto de 2021. Lu Xun morrera muitos anos antes e, mesmo assim, um ano depois de Tiananmen, o maior jornal do ocidente dedicava-lhe um longo artigo com o título “China’s Greatest Dissident Writer: Dead But Still Dangerous”. Uma passagem de Lu Xun tornara-se então símbolo de resistência: 

Se a China não perecer, então, como nos diz a história, o futuro reserva uma surpresa tremenda para os assassinos. Isto não é a conclusão de um incidente, mas um novo começo. Mentiras escritas a tinta nunca podem mascarar factos escritos a sangue. As dívidas de sangue devem ser pagas em género: quanto maior o atraso, maior o juro. 

Em Portugal há pouco de Lu Xun editado. Mas pegamos em Ervas Silvestres (ed. Cotovia) e tudo parece eterno por ser actual, atemporal, preciso, por ser agora. No texto “Esperança”, deste livro, Lu Xun escreve sobre uma juventude vaga e triste, que não deixa por isso de ser juventude. A máscara da esperança, enganadora, não lhe parece suficiente para enfrentar a noite do meio-dia, e cita o poeta e revolucionário húngaro Sándor Petőfi, um dos muitos autores europeus e russos que apreciava. 

O que é a esperança?

A esperança é uma prostituta

Que a todos engana e a todos se oferece.

Até tu lhe sacrificaste o mais valioso

Da tua juventude,

E ela vai-te abandonar. 

Lu XunLu Xun

Lu Xun conclui que o sem sentido do desespero é o mesmo que o da esperança. E, apesar de tudo, de não haver estrelas nem luar, nem borboletas caídas nem conversas disparatadas que façam sorrir, apesar de tudo, os jovens ainda são jovens. Quem se lembra disto, hoje, nesta noite cheia de nada da China? 

Desespero. A palavra leva-me de volta ao documentário de Jia Zhangke. Todos os escritores e, a bem dizer, quase todas as pessoas que a câmara capta carregam uma tristeza qualquer difícil de nomear. Neste filme, que espero possam ver no futuro, até os sorrisos são tristes.  

Termino com uma constatação óbvia mas importante: não há uma literatura chinesa, como não há apenas uma China ou apenas uma literatura portuguesa. Dispensemo-nos de aplicar categorias universais ou de fazer generalizações vazias.  

(No Festival Literário de Macau, certa vez um escritor português disse que os seus livros vendiam bem porque tudo o que se fizera antes dele era muito chato! Impressionante afirmação que jamais esquecerei.)  

Seja como for, nesta tentativa quase vã de tentar abarcar alguns livros debaixo do mesmo chapéu, deixo sobre a literatura chinesa uma nota de mágoa, uma cicatriz cavada, profunda, uma cicatriz que o tempo até pode tornar bem-humorada, como tantas vezes acontece na China, mas que não deixa de ser uma cicatriz.

 

*Versão editada do texto originalmente escrito para uma sessão sobre literatura chinesa, em Outubro de 2021, na livraria Linha de Sombra, Cinemateca Portuguesa.

por Hélder Beja
A ler | 27 Outubro 2021 | arte, China, cultura, escritores, Literatura, literatura chinesa, lu xun, sheng keyi, yu hua