O “tríbrido” cultural: uma breve digressão pessoal pela(s) identidade(s) — Parte I

Naturalidade

Europeu, me dizem. 

Eivam-me de literatura e doutrina 

europeias 

e europeu me chamam. 

Não sei se o que escrevo tem raiz de algum 

pensamento europeu. 

É provável… Não. É certo, 

mas africano sou. 

Pulsa-me o coração ao ritmo dolente 

desta luz e deste quebranto. 

Trago no sangue uma amplidão 

de coordenadas geográficas e mar Índico. 

Rosas não me dizem nada, 

caso-me mais à agrura das micaias 

e ao silêncio longo e roxo das tardes 

com gritos de aves estranhas. 

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. 

Mas dentro de mim há savanas de aridez 

e planuras sem fim 

com longos rios langues e sinuosos, 

uma fita de fumo vertical, 

um negro e uma viola estalando.

— Rui Knopfli (2003)

Introdução

Alguns teóricos culturais argumentam que a tendência em direção a uma maior interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades culturais fortes e está produzindo aquela fragmentação de códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente, na diferença e no pluralismo cultural.

Em certa medida, o que está sendo discutido é a tensão entre o “global” e o “local” na transformação das identidades. As identidades nacionais representam vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias particulares. Elas representam o que algumas vezes é chamado de uma forma particularista de vínculo ou pertencimento. Sempre houve uma tensão entre essas identificações e identificações mais universalistas — por exemplo, uma identificação maior com a “humanidade” do que com a “portugalidade”, a “moçambicanidade” ou a “brasilidade”. Esta tensão continuou a existir ao longo da modernidade: o crescimento dos estados-nação, das economias nacionais e das culturas nacionais continua a dar um foco para a primeira; a expansão do mercado mundial e da modernidade como um sistema global davam o foco para a segunda.

Num mundo de fronteiras dissolvidas e de continuidades rompidas, as velhas certezas e hierarquias da identidade têm sido postas em questão.

A categoria da identidade não é, ela própria, problemática? É possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e integral? A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez, pela intensidade das confrontações culturais globais.

Importa lembrar que o século XXI abre com uma confissão, a da extrema fragilidade de todos. E de Tudo.

Poder permanecer e poder mover-se livremente não serão condições sine qua non da partilha do mundo ou, ainda, do que Édouard Glissant chamou ‘relação global’? O que poderá identificar os seres humanos, em termos de reconhecimento, para além do acidente do nascimento, da nacionalidade e da cidadania? (Mbembe 2017, p. 248).

noção de cultura faz alusão às características socialmente herdadas e aprendidas que os indivíduos adquirem a partir de seu convívio social. Entre essas características, estão a língua, a culinária, o jeito de se vestir, as crenças religiosas, normas e valores. Esses traços culturais possuem influência direta sobre a construção de nossas identidades, uma vez que elas constituem grande parte do conjunto de atributos que formam o contexto comum entre os indivíduos de uma mesma sociedade e são parte fundamental da comunicação e da cooperação entre os sujeitos.

O conceito de identidade refere-se a uma parte mais individual do sujeito social, mas que ainda assim é totalmente dependente do âmbito comum e da convivência social. De forma geral, entende-se por identidade aquilo que se relaciona com o conjunto de entendimentos que uma pessoa possui sobre si mesma e sobre tudo aquilo que lhe é significativo. Esse entendimento é construído a partir de determinadas fontes de significado que são construídas socialmente, como o gênero, nacionalidade ou classe social, e que passam a ser usadas pelos indivíduos como plataforma de construção de sua identidade.

cultura da triagem tem um aspecto descontínuo e tende a restringir a circulação cultural, que será pequena ou mesmo nula e, de qualquer maneira, desacelerada pela presença do exclusivo e do excluído. É uma cultura do interdito. Já a cultura da mistura apresenta um aspecto contínuo, favorecendo o “comércio” cultural.

Esta breve digressão conceitual sobre as identidades, constituem o ponto de partida para refletir sobre as questões identitárias a partir de minhas vivências/influências culturais, tomando como referências três culturas que, em maior ou menor grau, fizeram de mim o que sou. Tento procurar a diferença, como faz o poeta moçambicano Virgílio de Lemos no seu poema “Procura-se: a diferença”:

sou o exílio/ minha esperança ficará/ exaltante de demagogia/ nas entrelinhas/ da metafísica e/ da linguagem…/real sem profeta/colorido/ em cada palavra reescrita/ e reinventada/ nascida morta ressuscitada/ procura/ minha excessiva utopia/ constelação diagrama/ no teu céu astral/ desmemoriado (…) (Lemos,2009, p. 384).

Sinto-me em casa…

A cidade em que se nasce não é sempre a cidade em que se nasce. Às vezes é preciso partir, com os olhos descalços e o coração ignorado, em busca de um nascimento – os lugares são tantos e é tão difícil reconhecer-se num mapa quanto num espelho. Alguma cidade se investe num nascimento, entre a mineração e o mar. Alguma cidade se elege entre tantas para a vida, e nem sempre a vida de regresso. As cidades também foram inventadas e têm seu destino. As ruas cruzadas com as linhas das mãos. (MARQUES, 2009, p. 112).

Nasci em Portugal e fui para Moçambique com um ano de idade. Minha infância foi vivida na cidade da Maxixe (província de Inhambane) e na cidade de Pemba (Província de Cabo Delgado). Minha juventude foi vivida nas cidades da Maxixe e de Inhambane. No início da minha vida adulta vivi em Lourenço Marques (atual Maputo) onde me formei com professor do Ensino Primário e onde frequentei os primeiros anos do Curso de Economia na Universidade. De alguma forma, vivenciei grandes lances históricos do século XX. Durante minhas quatro primeiras décadas moçambicanas, três dessas décadas foram vividas sob a colonização lusitana autoritária e racista da ditadura salazarista. Vivenciei a partir de 1965 o processo de luta armada desencadeado pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) contra o colonialismo português e que conduziu Moçambique ao processo de independência em 1975. Durante uma década e meia participei ativamente no processo de construção do socialismo. Dez anos após a independência de Moçambique fui pela 1ª vez a Portugal em gozo de férias e a este país retornei diversas vezes, mas sempre por períodos curtos. Nos finais da década de oitenta fui realizar estudos superiores no Brasil, país que me acolheu, inicialmente como estudante e depois como professor e onde me encontro há mais de três décadas. Neste país vivenciei processos políticos liberais, processos políticos de matriz ideológica mais socializantes e processos de raiz autoritária, de matriz neoliberal e de subversão da ordem democrática.

Fala inaugural do VII Seminário Pedagógico da Universidade Eduardo Mondlane - MoçambiqueFala inaugural do VII Seminário Pedagógico da Universidade Eduardo Mondlane - Moçambique

Fala inaugural do VII Seminário Pedagógico da Universidade Eduardo Mondlane - Moçambique Fala inaugural do VII Seminário Pedagógico da Universidade Eduardo Mondlane - Moçambique

Esta rápida descrição de minha trajetória revela claramente que sou alguém em trânsito. Sou e não sou moçambicano, sou e não sou português, sou e não sou brasileiro. Sou um ser que incorpora partes significativas de três continentes e países sentindo-me, por isso, europeu, africano, americano. Nestes tumultuados cruzamentos geográficos e culturais resultou o ser que, em síntese, se sente como um educador luso-afro-brasileiro.

Embora tenha visitado, por períodos bastante curtos, outros países na África, Europa e América Latina, essas fugazes permanências não possibilitaram que, de algum modo, tivesse sido marcado por traços culturais desses lugares. Também se sabe que mesmo não tendo vivido em determinados territórios, somos influenciados por aspectos de suas culturas. No meu caso poderia dizer que, desde muito jovem, gosto da música anglo-saxônica, francesa e italiana, sem nunca ter vivido na Inglaterra, Estados Unidos, França e Itália. Assim, são as vivências ou permanências relativamente longas que permitem a aquisição de marcas culturais mais significativas.

Que concretudes culturais moldaram aquilo que designo como o meu “tribridismo”, de que falarei mais adiante? O que recebi de forma mais vincada da cultura portuguesa, moçambicana e brasileira? Certamente, em graus diferenciados, incorporei de todas elas a língua portuguesa, os costumes, a música, a festa, a alegria, a fraternidade, e por que não, a geografia de suas paisagens, com suas diversidades climáticas, com a presença ou a ausência do mar ou das montanhas.

Habituei-me ao clima quente e húmido, predominante em Moçambique e sempre vivi próximo do mar. Encantava-me e me encanta até hoje a brisa marítima ao cair da tarde, acompanhada pelo espetáculo imperdível do pôr-do-sol. Em Portugal a dicotomia entre verão e inverno é mais acentuada, o que me obrigava à adequação do vestuário aos extremos de frio e calor. É uma experiência única partilhar com os amigos animadas conversas, perto de uma lareira numa noite de inverno. Descobri depois que o Brasil tem clima para todos os gostos. Afinal o Brasil é um mundo, são vários Brasis, várias culturas. Em termos geográficos nele cabem 90 “portugais” e 11 “moçambiques”. A cidade em que vivo, Belo Horizonte, tem um aclima ameno quase todo o ano. As paisagens de Minas Gerais, sobretudo as que são próximas de Belo Horizonte, são montanhosas. É inesquecível observar a imponência esmagadora dos vales e montanhas no quilombo de Lavras Novas (próximo de Ouro Preto). 

Em todos estes lugares sinto-me em casa…

Desde criança que o hábito da leitura se constituiu como um marco na minha identidade cultural. Assim, Moçambique me fez viajar pelas obras poéticas e ficcionais de grandes autores como José Craveirinha, Noêmia de Sousa, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa… As marcas literárias de Portugal fizeram-se presentes na minha formação através das obras de Fernando Pessoa, José Saramago, Maria Teresa Horta e Lobo Antunes… Do Brasil pude acolher de braços abertos Guimarães Rosa, Machado de Assis, Lygia Fagundes Teles, Manoel de Barros…

Todos estes grandes nomes da literatura abriram-me horizontes e fizeram-me sentir em casa…

O universo musical sempre se fez presente em meu viver. Ouvir os moçambicanos Lizha James, Hortêncio Langa, Stewart Skuma, Conjunto Marrabenta ou os portugueses Zeca Afonso, Madredeus, Carlos do Carmo, Pedro Abrunhosa, ou os brasileiros Elis Regina, João Gilberto, Chico Buarque, Martinho da Vila é empreender uma viagem por sonoridades que me deixam extasiado.

Em casa me sinto quando os escuto ou assisto aos seus shows numa sala de espetáculos, no cinema, na televisão ou na internet.

O cinema, desde cedo, exerceu em mim uma poderosa atração. Durante anos fui membro de um Cine-Clube em Moçambique, frequentei no Brasil um curso de Introdução à Estética do Cinema, passei a utilizar o cinema nas minhas aulas e publicando livros, coletâneas e artigos sobre a sétima arte. Se os primeiros contatos com o cinema se deram através da filmografia norte-americana, a partir da minha experiência cineclubista meu encantamento passou a ser direcionado para o cinema de arte, um cinema mais elaborado e reflexivo onde se destacam cineastas como Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Andrei Tarkovsky e tantos outros. Habituei-me a conhecer o trabalho dos grandes cineastas e a elaborar listas de meus filmes favoritos. Também adquiri noções básicas sobre os grandes movimentos cinematográficos ao redor do mundo, como o Cinema Soviético, o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague Francesa, o Cinema Novo no Brasil, a Era de Ouro de Hollywood, entre outros. Aprendi a conhecer os diferentes elementos que fazem parte da produção cinematográfica e a saber identificar a qualidade de cada um desses aspectos em um filme, desde o roteiro até à direção de fotografia, passando pela direção de arte, montagem, atuação, música e edição de som. Justamente por isso, considero o cinema como uma expressão artística, não apenas entretenimento. Nesta breve descrição o cinema moçambicano, português e brasileiro tem um lugar especial na minha fruição da Sétima Arte. Com efeito, os moçambicanos Ruy Guerra, Licinio Azevedo, Sol de Carvalho, os portugueses Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Miguel Gomes e os brasileiros Glauber Rocha, Walter Salles, Kleber Mendonça Filho, reforçaram o meu gosto e paixão pelo cinema. 

Quando vejo filmes destes cineastas e de muitos outros destes três países, sinto-me em casa…

A arte culinária é inesgotável. Na hora das refeições meu paladar é levado aos píncaros dos sabores mais requintados, quer esteja perante os moçambicanos caril de frango, chacuti (comida de origem indiana), camarões grelhados…ou os portugueses com suas dezenas de receitas de bacalhau, morcela (chouriço), pastéis de Belém…ou os brasileiros com a muqueca capixaba, o churrasco do Rio Grande do Sul, o sorvete de açaí…

Todas estas iguarias me fazem sentir em casa…

Circulando nos espaços das urbes moçambicanas meu olhar se detém nas vistosas capulanas (pano muito colorido que, tradicionalmente, é usado pelas mulheres para cingir o corpo, e por vezes a cabeça, fazendo também de saia, podendo ainda cobrir o tronco), nas roupas coloridas que todos usamos, revelando certo desprendimento e à vontade no uso do vestuário, em sintonia com o tipo de clima tropical. Em território português chamam à atenção as masculinas camisas lisas ou às riscas e os belos lenços coloridos que as mulheres usam em volta do pescoço. Em terras brasileiras foge-se ao máximo à padronização, sendo o vestuário bastante descontraído em qualquer faixa etária.

Uso indistintamente roupas coloridas ou mais padronizadas e, portanto, me sinto em casa…

Finalmente, não posso deixar de abordar a língua portuguesa e a forma como ela se apresenta nos três territórios, com suas modificações, apropriações, simplificações que a tornam um fascinante instrumento de contato, sobretudo em situações do cotidiano. Em Moçambique podem-se escutar palavras ou expressões que revelam os modos como a língua portuguesa opera. Entre muitos exemplos, cito três: sograria (casa dos sogros), madala (idoso), mata-bicho (café da manhã). Em Portugal chama a atenção, por exemplo, o uso muito frequente do infinitivo gerundivo “Estou a fazer um trabalho.” Na maneira de se dirigir às pessoas, é mais frequente usar “o senhor”, “a senhora”, “você” em diálogos com pessoas desconhecidas ou mais velhas. Se for para uma pessoa com licenciatura ou de alta patente militar ou política, empregam-se, muitas vezes, “sr. doutor” no caso de serem médicos (sendo também muito frequente para professores, advogados, economistas, gestores) ou, ainda, “sr. engenheiro”. No aspecto informal do português europeu, utiliza-se, sobretudo, o pronome pessoal da 2.ª pessoa do singular, “tu”, de forma subentendida ou não: “Tu andas muito distraído nas aulas.” Mas onde a língua portuguesa “faz a festa” é na proliferação de gírias. Vejamos algumas e como elas são traduzidas no Brasil: fixe (legal), giro/gira (bonito/bonita), piropo (cantada), autocarro (ônibus), casa de banho (banheiro), autoclismo (descarga de banheiro), gajo (cara), puto/miúdo (criança), rebuçado (bala), montra (vitrine de loja). Repare-se que esse estranhamento inicial ocorre nos dois lados do Atlântico mas, para mim, há muito que não soam mais estranhas as duas formas que são utilizadas. 

O mais espantoso é ver a simplificação da linguagem, fenômeno linguístico que ocorre em todas as línguas, mas no Brasil me parece ter sido levado ao extremo e é fascinante. O intelectual e poeta brasileiro, Oswald de Andrade, já em 1922, enfatizou a busca por uma “língua brasileira” no poema “Vício na fala”: Para dizerem milho dizem mio/ Para melhor dizem mió/ Para pior pió/ Para telha dizem teia/ Para telhado dizem teiado/ E vão fazendo telhados… Além dosquase 200 sotaques da língua portuguesa num país com mais de 180 línguas indígenas ainda vivas, o que me fascina é o português abrasileirado que, inclusive, soa mais amigável aos ouvidos estrangeiros. Essa maior facilidade de compreensão se deve ao legado dos africanos escravizados trazidos à força a este lado do Atlântico: É devido à influência das línguas africanas, especialmente o banto, que são mais vocais, de vogal aberta e (pronúncia) mais lenta. Divirto-me com a simplificação da linguagem. “Minha Nossa Senhora” virou “Minha Nossa”, depois “Nossa”, em seguida “” e já se consegue ouvir uma tentativa de simplificação ainda maior: “Nn”. “Falar para você”, virou “falar pocê”. “Olha aqui” virou “aquió”. Alguém se dirige à sua companheira ou companheiro e em vez de dizer “amor” diz “”. “Estou bem” é substituído por “joia”. “Oh coisa boa, senhor” é substituído por “Oh trem baum, sô”. Todas estas expressões não mais me soam estranhas e, por vezes, as utilizo de forma natural. Em resumo: observando e me apropriando de tantas formas de falar a língua portuguesa, como não me sentir em casa?

Sinto-me, pois, um personagem sem lugar ou de todos os lugares, na mais radical acepção que se pode atribuir ao deslocamento. Isso se dá porque, diante da “floresta de signos” que se manifesta nas minhas vivências, prevalecem as memórias e as pulsões do inconsciente, que se fazem conhecer por seus efeitos. Nesse sentido, penso minha identidade, meu pertencimento e minha diferença a partir do meu movimento diaspórico de pessoas, ideias e signos, que não pressupõe, necessariamente, deslocamento físico.

Recebo as heranças culturais do espaço moçambicano, português e brasileiro, mas, também, a riqueza metafórica em um tabuleiro “etno-mágico xadrez” (Lemos), resultado dessa alteridade.

A identidade resultante do movimento diaspórico, por vários espaços e trânsitos culturais e identitários, funda-se a partir de encontros que a tornam irremediavelmente “impura”, já que tem o seu centro cultural em todo lugar e em lugar algum, tornando-a descentrada. Sob essa perspectiva, as imbricações culturais advindas desses percursos resultam na subversão de modelos tradicionais; torna-se “desterritorializante” em seus efeitos.

O espaço passa a ser considerado como um circuito comunicativo, um solo fértil e compartilhado por todos aqueles que neles fazem transitar os signos, mais além dos absolutismos ou anelos de purezas étnicas.

Este meu “tribridismo”, é diaspórico, na medida em que incorpora o discurso do outro, reiterando-o e transformando-o. Portanto, procuro que meu olhar esteja aberto para o outro, para o mundo.

Nesse sentido, defino-me como um “tríbrido” cultural, um neologismo sintático que ironicamente criei e que busca refletir, entre muitas influências que recebi na minha trajetória de vida, três que considero mais marcantes e que retomo de forma sintética:

  • portuguesa, pois meus pais eram portugueses e eu estudei durante duas décadas (1954-1974) no sistema educacional no Moçambique colonial com professores portugueses e com o mesmo currículo de Portugal;
  • moçambicana, pois uma parcela significativa da minha vida decorreu em Moçambique (1946-1988) no qual recebi as influências da cultura africana (hábitos de convivência, hábitos alimentares, música, dança, alegria mesmo na adversidade…);
  • brasileira, pois cheguei ao Brasil para frequentar o ensino superior em 1988, portanto, há 33 anos, e acabei incorporando novos conhecimentos, vocábulos, outras pronúncias da língua portuguesa, outros hábitos alimentares, uma intensificação da cordialidade…

Outro “tríbrido” cultural que partilhou, salvaguardadas as devidas diferenças de trajetória e tempo histórico, foi o poeta brasileiro Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), português nascido na cidade do Porto, em Portugal e que veio para ao Brasil aos sete anos de idade. Foi um dos mais importantes revoltosos que participou da Inconfidência Mineira, acabando por ser deportado para Moçambique onde viria a morrer. Em terras moçambicanas, sua amargura por estar longe da pátria, ainda deixou espaço na sua poesia para traços esperançosos, com forte carga utópica e profundamente elogiosa à forma tão solidária como foi recebido pelos moçambicanos.

Foto em Maputo com amigos moçambicanos quer estudaram no BrasilFoto em Maputo com amigos moçambicanos quer estudaram no Brasil

Algumas pessoas argumentam que o “hibridismo” e o sincretismo — a fusão entre diferentes tradições culturais — são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia que às velhas e contestadas identidades do passado. Outras, entretanto, argumentam que o hibridismo, com a indeterminação, a “dupla consciência” e o relativismo que implica, também tem seus custos e perigos. O romance de Salman Rushdie sobre a migração, o Islã e o profeta Maomé, “Versos satânicos”, com sua profunda imersão na cultura islâmica e sua secular consciência de um “homem traduzido” e exilado, ofendeu de tal forma os fundamentalistas iranianos que eles decretaram-lhe a sentença de morte, acusando-o de blasfêmia.

Por conta dessas várias influências que recebi, enfrento situações curiosas nos meus deslocamentos geográficos que têm por cenário Moçambique, Brasil e Portugal e que acabaram dando forma à minha identidade cultural. Quando me desloco a Moçambique, alguns dos meus amigos dizem que, pela forma como falo, já estou muito abrasileirado, ou seja, já não sou um “verdadeiro” moçambicano! Quando visito Portugal, as pessoas me dizem ”você não é daqui, deve ser de algum país ex-colônia de Portugal em África ou, talvez, do Brasil”. Portanto, já não sou um português. No Brasil, pela forma como falo a língua portuguesa, de imediato me dizem que eu não sou brasileiro. Em resumo, não sou de lugar nenhum ou… sou de todos os lugares o que, devo reconhecer, me coloca numa posição em que posso exercitar com mais coerência mecanismos de solidariedade e de desprendimento.

O que de fato significa ter nascido em algum lugar? Como esse acidente assinalará de maneira tão irrevogável quem sou, como sou conhecido e por quem me tomam? Não pertencer propriamente a nenhum lugar é próprio do ser humano, uma vez que, por sua condição de ser composto por outros seres vivos e outras espécies, pertence a todos os lugares em conjunto. Portanto, aprender a passar constantemente de um lugar para outro deveria ser o projeto de qualquer ser humano, visto que esse é, de todo modo, seu destino. Como refere Mbembe (2017, p. 248):

…passar de um lugar para outro é também tecer com cada um deles uma dupla relação de solidariedade e de desprendimento. A essa experiência de presença e de diferença, de solidariedade e de desprendimento, mas nunca de indiferença, chamemos a ética do passante.

E acrescenta (Idem, p. 245):

Atravessar o mundo, dar conta do grau do acidente que representa o nosso lugar de nascimento e o seu peso de arbitrário e de constrangimento, agarrar o irreversível fluxo que é o tempo da vida e da existência, aprender a assumir o nosso estatuto de passagem, uma vez que é provavelmente, em última instância, a condição da nossa humanidade, a base da qual criamos a cultura – são, talvez, afinal, as questões mais difíceis do nosso tempo, que herdamos de Fanon na sua farmácia, a farmácia do passante.

Estamos assim em presença da figura de alguém que parte, que deixa seu país, que vive em lugares onde cria casa e liga seu destino ao daqueles que o acolheram e reconheceram, no seu rosto e sua singularidade, uma humanidade. Nesse processo, que implica tradução, mas também conflito e mal-entendidos, algumas questões vão dissolver-se por si, na busca do que nos é comum, de nossa condição comum.

Nunca procurei, pelo menos de forma deliberada, inserir-me na realidade brasileira, ou seja, pensar e agir como um brasileiro, mesmo com todas as diferenças culturais existentes neste imenso país. Isso poderia sugerir uma via de mão única. Ao contrário, pensava numa inserção em termos de troca igualitária: o único meio de retribuir a hospitalidade que meus anfitriões brasileiros me facultavam era procurar, ainda que inconscientemente, oferecer a eles algo que não possuíam e que dificilmente poderiam adquirir a não ser num encontro face a face com um pensamento e um modo de agir alternativos; algo novo e diferente que pudesse, eventualmente, enriquecê-los do mesmo modo que me tenho enriquecido no encontro com as vivências dos brasileiros. Na verdade, desejava ser aceito — mas aceito precisamente pelo que eu era, por minha dessemelhança.

Posso pensar em muitos países onde viver com tal atitude teria sido muito mais difícil, social e espiritualmente mais complexo. Se alguém tiver de ser um exilado ou um estrangeiro, o Brasil me parece ser o lugar mais adequado para se estar. Pode-se esperar boa vontade, respeito mútuo e bastante hospitalidade — com a condição de que não se queira fingir que se é brasileiro… Além disso, quem aqui chega não é colocado numa classe, mas numa categoria separada, de “estrangeiro”, na qual a liberdade de pensamento e de ação tem amplo espaço; os estrangeiros escapam da atribuição de classe, de certo modo inflexível e rija, que interfere na vida dos outros…

É óbvio que o fator linguístico exerceu em mim, e exerce até hoje, uma forte aproximação cultural. Tendo como língua materna a língua portuguesa, vindo de Moçambique cuja língua oficial é a portuguesa, foi bastante fácil a minha inserção em território brasileiro.

Portugal, Moçambique, Brasil, países que falam a língua portuguesa, comunidades nascidas da viagem, da transposição de fronteiras e da mestiçagem - que são elementos estruturantes das culturas portuguesa, moçambicana e brasileira – estas três “comunidades” culturais não são apenas o outro lado do mar, mas o outro lado da nossa alma. O nosso modo próprio e único de sermos europeus, africanos e latino-americanos. Em seu poema “Língua-Mar” (1997), o brasileiro Adriano Espínola nos fala dessa língua oceânica, na qual a língua portuguesa se transformou ao longo de uma prolongada viagem:

A Língua em que navego, marinheiro,

na proa das vogais e consoantes,

é a que me chega em ondas incessantes

na praia deste poema aventureiro.

 

É a Língua Portuguesa - a que primeiro

transpôs o abismo e as dores velejantes,

no mistério das águas mais distantes,

e que a gora me banha por inteiro.

 

Língua de sol, espuma e maresia,

que a nau dos sonhadores-navegantes

atravessa caminho dos Instantes,

cruzando o Bojador de cada dia.

 

Ó Língua-Mar, viajando em todos nós!

No teu sal, singra errante a minha voz.

Pátria-língua, língua-pátria, nos lábios dos poetas é uma só realidade, ao mesmo tempo caminho e luz. A partir das peculiares diversidades gramaticais com que seres humanos de diferentes azimutes ideológicos e culturais exprimem suas ideias, não traem, não poluem nem disformam as fecundas raízes seculares, configuradas nas trocas e apropriações linguísticas.

Mas ouçamos dois poetas moçambicanos. Pinto Lobo se diz “inspirado por palavras do meu amigo Miguel Lopes” e faz uma digressão pelos entre-lugares:

(…) Estamos num “entre-lugar”, num limbo de pertença. Somos daqui e dali./ Um pedaço de nós em cada espaço./ Divididos. Dilacerados. Pela dor mutiladora da separação do chão pátrio./ Sussurra-me outro amigo. Por talvez não sabermos mais voltar./ No entanto o espírito agarra-se ao local do princípio. Às memórias do tempo./ Outros tempos. Outra vida. Vivida e sonhada./ É possível regressar para onde nunca saímos? (Pinto Lobo, 2021)

E é a partir deste poema que outro moçambicano envereda por espaços de peregrinação, sem regressos nem atalhos,

(…) Eu sinto que somos daqui e dali,/ de ontem de hoje e de amanha/ entre os espaços da peregrinação existencial/ aonde só a mudança é efémera e inexorável/

/ eu sinto que a peregrinação de cada um no conjunto/ não tem regresso nem atalhos/ só é rio quando as gotas em movimento/ gingam e reflorescem a vida das paisagens (…) (Ferrão, 2021)

Ao chegar a terras brasileiras foi ficando cada vez mais clara para mim a “presença” de Moçambique e da África em geral na consciência brasileira que se manifesta na religiosidade, nas cores, nas gestualidades, na forma de falar a língua portuguesa, nas danças, nas comidas. Muitos terreiros do candomblé (só no Maranhão são mais de 2000) são ilhas de África no Brasil.

Em muitas circunstâncias, posso me sentir “fora de lugar”. Diria que esse sentimento implica perdas e ganhos, mas é algo que me agrada. Não tenho certeza se tal atitude foi fruto de uma escolha livre que gradualmente se tornou um hábito, ou se foi, e ainda é, um meio de transformar uma necessidade em virtude. Perdas devem ocorrer, como ser ocasionalmente objeto de desconfiança ou, em casos absolutamente raros, de rejeição. Mas os ganhos superam imensamente as perdas. No meu ponto de vista (e por experiência), estar “fora de lugar”, ao menos em parte do nosso ser, não concordar completamente, manifestar divergência e dissensão, é o único meio de resguardarmos nossa autonomia e liberdade. Estar “dentro”, mas parcialmente “fora”, é também um meio de preservar o frescor, a inocência e a surpreendente ingenuidade de visão. Quem está assim situado tende a fazer perguntas que não ocorreriam àqueles estabelecidos mais solidamente; tende a notar o estranho no familiar, o anormal no óbvio. Este longo afastamento de Moçambique e Portugal (embora com alguma irregularidade os visite) é, muito frequentemente, uma situação de desconforto, mas também de expansão do pensamento crítico, de independência, insight e criatividade. No conjunto, minha grande sorte foi ter tido a possibilidade de viajar, estudar e ser professor universitário no Brasil e conviver com tantos brasileiros de várias regiões e classes sociais. Ao transpor uma fronteira novos desafios emergem.

Ler aqui a parte II.

Fotografias cortesia do autor.

por José de Sousa Miguel Lopes
A ler | 27 Setembro 2021 | Brasil, cultura, identidade, memórias, moçambique, Portugal, viagens