Os rituais públicos no império português
Rituais públicos como casamentos, aniversários e funerais de reis e da família real, celebrações religiosas, procissões, embaixadas, entradas solenes, entre outros, tiveram um papel fundamental na construção do governo do império português nos séculos XVI-XVIII. Mas por vezes foram também espaços de negociações, tensões e conflitos.
Os rituais como coreografias do poder
Os rituais públicos no império português foram uma oportunidade de simular a presença do rei em sítios onde a sua presença física era impossível. Eram um mecanismo para reforçar o seu poder e potenciar a coesão social. Entre o século XVI e o século XVIII, período que se designa como a “época moderna”, o império português era composto por uma série de possessões dispersas que iam do continente americano até ao mar da China. À dispersão juntava-se ainda a morosidade das comunicações. Em 1750, por exemplo, quando na Bahia se celebrou o aniversário de D. João V, o rei já tinha falecido em Lisboa havia quase três meses. Quando finalmente a notícia da sua morte chegou ao Brasil, a população foi outra vez mobilizada para manifestações de pesar e, pouco depois, para demonstrar a sua alegria pela aclamação de D. José.
O poder real enfrentava desafios complexos para se fazer representar em sítios onde os reis nunca tinham ido. Como fazer reconhecer a sua autoridade em lugares onde a maior parte da população tinha uma escassa ideia do que era o reino e do próprio rei? Uma das maneiras de o fazer foi, precisamente, através da circulação dos mesmos rituais entre os vários espaços imperiais. Com modelos predefinidos, os rituais funcionavam como uma forma de unir, agregar, regular, harmonizar e acomodar cultural e simbolicamente comunidades muito diferentes entre si. A celebração de aniversários, nascimentos, batizados, casamentos e funerais da família real, de entradas solenes de embaixadores e vice-reis, ou as procissões, nas várias geografias dispersas do império, partilhavam linguagens políticas, gestos e performances que tornavam próxima a presença régia, ao mesmo tempo que se constituía como experiência política comunitária.
O fortalecimento do poder imperial consolidava-se, assim, através do espetáculo da monumentalidade, pompa e aparato, dominado pela fruição e o deleite. Os carros alegóricos, arcos triunfais, fogos de artifício, discursos, música, teatro, banquetes ou celebrações religiosas eram dispositivos efémeros a partir dos quais se encenava o poder, se elaboravam imagens e se desenhavam os imaginários políticos do império que, ao romperem com o quotidiano e a rotina das populações, pretendiam exaltar a monarquia e reforçar o sentimento de pertença.
Exemplo disso são as cerimónias fúnebres em honra de D. João V, celebradas da Bahia até Goa, passando pelo Rio de Janeiro, Vila Rica, Funchal, Lisboa, Braga, Porto, até localidades mais pequenas como Cumieira, Trancoso, Chamusca, entre outras, por vezes durante semanas, meses — no caso de Braga, chegaram a durar um ano. Era, portanto, de suma importância o investimento da monarquia nos rituais, bem como na sua repetição, tendo em vista cimentar identidades, estruturar a sociedade e reforçar o poder. Também se escreviam e liam sermões e panegíricos em memória do falecido monarca, dando muitas vezes origem a textos impressos que circularam em larga escala. Estas publicações mostram-nos como é que, no reino e no império, nas cidades e nos espaços rurais, a morte de D. João V seria lembrada, unindo, dessa forma — em tempos por vezes desencontrados — a comunidade dos súbditos do rei de Portugal.
Rituais públicos como espaços de negociação
Podemos também entender os rituais públicos como momentos de negociação, uma oportunidade de comunicação política entre as diferentes partes envolvidas. Podia tratar- se, por exemplo, da negociação de relações de poder com o próprio monarca, relembrando ao rei não apenas o seu papel, mas também os limites do seu poder. Na sociedade da época moderna, a conservação da ordem era um pilar fundamental e as mudanças eram, de forma geral, indesejadas. O bom governo estava frequentemente associado à manutenção da tradição e da confirmação dos privilégios e liberdades previamente atribuídos aos súbditos. Assim, em muitos rituais políticos, nomeadamente os de aclamação e juramento, os súbditos confirmavam a sua lealdade ao rei e reconheciam-no como tal.
Todavia, estes mesmos momentos podiam ser utilizados por câmaras, comerciantes, clérigos e oficiais locais para manifestar as suas expectativas, afirmar a sua jurisdição, apresentar as suas queixas e pretensões políticas e questionar os limites do poder do rei. Na aclamação de D. João IV em Goa, em setembro de 1641, a Sé foi decorada com panos de seda e no seu interior construiu-se um teatro de grandes dimensões, com cinco degraus alcatifados, no cimo dos quais se encontrava uma cadeira de veludo carmesim. Era um cenário que procurava transmitir solenidade, autoridade e, sobretudo, majestade. O evento deu, porém, lugar a uma disputa de precedências entre os oficiais da câmara e a fidalguia sobre quem juraria primeiro reconhecer D. João IV como legítimo rei. A ordem pela qual se atuava transmitia uma mensagem sobre a importância de cada grupo, bem como dos seus privilégios. Neste caso, o vice-rei determinou que jurassem primeiro os representantes da cidade e só depois os fidalgos.
Os rituais como momentos de tensão e conflito
Os rituais públicos ocorridos no império português nem sempre foram lugares de agregação e de convergência, ao contrário do que algumas das suas narrativas da época possam sugerir. Apesar da existência de manuais e códigos de conduta e representação que procuravam facilitar estes momentos de encontro, era frequente estes eventos darem azo a tensões entre as partes que os integravam.
A grandiosidade de algumas destas cerimónias, como as exéquias de D. João V, ou as procissões anuais de Corpus Christi, implicavam um elevado investimento económico, gerando frequentes discussões relacionadas com os custos. Em junho de 1650, os oficiais da câmara da Bahia, enviaram uma série de pedidos ao reino para financiar as procissões de Santo António de Arguim, S. Filipe, e Santiago e S. Sebastião. A câmara comprometera-se a pagar a despesa, mas os provedores da comarca não autorizavam os gastos sem autorização do rei, e exigiam ainda a restituição do valor. Estas disputas podiam levar anos a serem resolvidas, levando, por vezes, a que os organizadores das festas ameaçassem não as realizar de todo.
Tensões e conflitos emergiram também com alguma frequência em momentos rituais que envolveram o encontro entre códigos culturais distintos, como o caso das embaixadas com reinos extra-europeus. A embaixada de Churumá Nadir, representante do rei Tegbesu (reinado 1740-1774), do reino do Daomé, atual República do Benim, ao vice-rei do Brasil, conde de Atouguia, em 1750, com o objetivo de estabelecer uma aliança comercial com o rei de Portugal, é disso um excelente exemplo.
Segundo o relato publicado em 1751 por José Freire Montarroio Mascarenhas, Churumá Nadir chegou a Salvador da Baía a 29 de setembro de 1750, acompanhado de dois representantes da elite daomeana e de um intérprete que conhecia a língua portuguesa. À chegada, o embaixador foi recebido com uma salva da artilharia e conduzido num palanquim (cadeira portátil transportada por dois homens) ao colégio dos jesuítas, onde ficou alojado, esperando impacientemente durante quase um mês para ser oficialmente recebido pelo vice-rei. O conde da Atouguia afirmaria que tal atraso se prendia com querer fazer coincidir a audiência do embaixador com a já referida celebração do aniversário de D. João V, a 22 de outubro.
Enquanto adiava a audiência, o vice-rei enviou a Churumá “a mais rica tela, o mais excelente veludo e os melhores damascos e brilhantes que se puderam achar na cidade” para que o seu convidado e acompanhantes aparecessem vestidos à portuguesa. Os portugueses consideravam os trajes geralmente utilizados pelos povos africanos como inadequados para ocasiões solenes, e procuravam que estes se apresentassem antes trajados à europeia. O embaixador considerou a oferta ofensiva, ripostando que tanto ele como a sua comitiva iriam apresentar-se de acordo com os costumes do seu reino, em representação do seu rei. Entretanto, o mesmo Churumá celebrou uma festa durante a qual aves foram mortas e depenadas e o seu sangue escorrido e untado no corpo dos convivas, o que chocou os espectadores portugueses. Por fim, no dia da audiência, o embaixador entrou na sala vestido com uma túnica colorida. Não distinguiu (ou fingiu não distinguir) o vice-rei de todos os outros presentes, não aceitando, também, sentar-se ao seu lado. A audiência foi rápida e, aparentemente, sem grande sucesso.
A visita desta embaixada mostra bem o choque entre códigos culturais distintos, evidenciando alguns dos limites do poder dos monarcas portugueses e daqueles que os representavam nos espaços do império. Mais de cem anos antes e numa outra parte do mundo, Pero da Silva, vice-rei do Estado da Índia entre 1635 e 1639, mandou à corte mogol António Moniz Barreto, que na sua primeira audiência foi mantido pelo rei de pé, o que causou um grande escândalo — a ponto de nos dez meses que se seguiram, o embaixador não ter voltado a dirigir-se ao rei senão na despedida.
Os conflitos não se esgotam nestes dois tipos de exemplos. Durante os eventos podiam surgir outras desavenças, desde questões de precedências e etiqueta e o seu desrespeito por alguns dos participantes, até questões políticas, onde intervenientes dos rituais aproveitaram para perturbar a ordem pública num momento em que esse seu gesto teria grande visibilidade.
Narrar os rituais públicos: as Relações de Festas
Nenhuma destas dimensões dos rituais públicos celebrados no império português poderia ser identificada se não tivéssemos acesso a textos que os descreveram. A narrativa que nos dá conta da embaixada do rei de Daomé ao vice-rei do Estado do Brasil constitui um género literário em si, muito heterogéneo, que conhecemos como as Relações de Festas. Estes textos de caráter informativo e noticioso reproduzem e ampliam o aparato e o efeito provocado pelas cerimónias e sublinham o seu investimento material e simbólico. Compostos depois das celebrações, impressos e disseminados, longe de serem isentos, eram um instrumento para impressionar, mover e convencer os leitores. A intencionalidade política pautava e condicionava, portanto, estes textos.
O relato já referido, escrito por José Mascarenhas, um experiente escritor de notícias que conhecia Portugal, Brasil, África e Ásia, é, de facto, sintomático. Nele, Mascarenhas fez as suas escolhas, filtrando realidades no momento de passar os acontecimentos para a escrita. Ao seu público leitor, pouco fala da indumentária do vice-rei, optando antes por evidenciar o exotismo do traje e dos comportamentos dos daometanos, bem como das festas por si oferecidas. Textos de outros autores, pelo contrário, omitem todo o tipo de tensões, oferecendo, ao invés, uma versão apologética dos eventos narrados.
Efetivamente, as narrativas que descrevem os rituais ocorridos no império português na época moderna dão conta de diferentes escalas de percepção política. Quem escreve o ritual toma-lhe o pulso, constrói realidade, interpreta e capta “significados”, tenta decifrar códigos culturais que nem sempre lhe são próximos e pode, inclusive, condicionar a acção de governantes. As perceções dos rituais estão sujeitas a uma predisposição para o deslumbre e a uma disponibilidade para o impacto visual, auditivo e tátil. Mas, ontem como hoje, haverá entendimento político destituído desse jogo de sedução e espanto que os rituais públicos encerram?
O projeto Rituais Públicos no Império Português (1498-1822) é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/HAR-HIS/28364/2017)
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Artigo originalmente publicado por Público a 28.02.2021