Ossos humanos e histórias coloniais
Os ossos dos outros
Existem milhares de restos humanos em coleções de museus por todo o mundo. A razão principal para a existência destas coleções reside no valor que lhes foi atribuído no passado – e ainda lhes é atribuído no presente – enquanto objetos científicos. São esqueletos; cérebros; fios de cabelo; múmias; amostras de sangue – mas, sobretudo, um grande número de crânios humanos das mais variadas proveniências. Desde finais de 1700, mas de forma acentuada entre as décadas de 1850 e 1920, muitos destes crânios viajaram para a Europa desde lugares distantes, de África, Ásia, América ou Oceânia. Estas viagens dos ossos para museus foram consequência das relações de poder e conquista dos impérios coloniais europeus, animados por nacionalismos bélicos e inflamados. Não surpreende por isso que o seu percurso tenha deixado rasto de abusos vários, tão complexos nos seus motivos e circunstâncias quanto atrozes nos seus efeitos. Abundam casos de cemitérios profanados; sepulturas saqueadas; inimigos decapitados; cadáveres desviados do hospital para a sala do anatomista. Enfim, indícios existem de um fenómeno global de usurpação e tráfico dos ossos dos outros, capaz de ligar uma aldeia no Bornéu a um museu em Paris.
Estas viagens foram feitas para satisfazer a curiosidade genuína de muitos cientistas (na sua larga maioria homens) que gastaram vidas e fortunas a adquirir, medir e comparar ossadas de outras pessoas, por si imaginadas como radicalmente diferentes, inferiores, atrasadas, ou aberrantes. Pensava-se que o estudo do crânio humano seria decisivo para classificar e hierarquizar “raças humanas”, naturais e inatas. Foi assim que no século XIX o crânio se tornou o objeto privilegiado de uma ciência da raça, chamada de craniologia, “antropologia”, ou raciologia. Esta ciência é o antepassado sombrio da antropologia biológica e da genética humana dos dias de hoje. O projeto Ocidental de modernidade e colonização do mundo caminhou de mãos dadas com a obstinação racial dessas ciências. Entretanto, a craniologia fracassou; os impérios caíram. Mas de ambos ficaram marcas persistentes. Ficou a fantasia do racismo científico, por exemplo. Isto é: a ideia falsa, mas subscrita por certos cientistas, de que existe nos corpos humanos prova de “raças” diferentes, umas inferiores e outras superiores. Ficaram também nos museus vastas coleções de restos humanos sonegados aos seus habituais lugares de repouso.
A história da ciência que esbocei não é uma história de glórias. É uma história tormentosa, violenta, e difícil de confrontar para os europeus de hoje. Desde logo, ela impõe que se reconheça o carácter obscuro da modernidade colonial, racial, e racista das ciências humanas – da qual o nosso país foi parte ativa. Portugal tem razões factuais para constar nos anais desta história mundial. Entre as décadas de 1880 e 1940, pelo menos, algumas instituições receberam ossos humanos provenientes do então chamado “império colonial português” ou “ultramar”. Chegaram a museus portugueses na qualidade de representantes das “tribos” ou “raças indígenas” desse império. O seu número atingiu escala mais modesta, comparado com coleções congéneres em França, Reino Unido, ou Alemanha. Mas o seu passado é igualmente revelador da expressão intrusiva do colonialismo português em muitos lugares, enquanto no país a ciência racial era acarinhada pelo Estado e pelas sociedades eruditas. O percurso de uma coleção de crânios de Timor em Portugal, de que trato a seguir, é um fragmento apenas deste processo histórico maior. Conhecê-lo ajuda-nos a levantar um pouco o véu a um passado que dura ainda no presente.
Crânios de Timor em Coimbra
Em 1882, a Universidade de Coimbra recebeu uma coleção de 35 crânios humanos da parte oriental da ilha de Timor, colónia sob domínio português. Esta parece ter sido a primeira coleção ultramarina de restos humanos recebida por museus em Portugal. Pouco depois, em Coimbra (onde a coleção continua depositada) criava-se o primeiro curso universitário de antropologia e arqueologia pré-histórica, inspirado na ciência racial francesa. Os crânios foram então objeto de um estudo raciológico assinado por J. G. Barros e Cunha. Nos anos de 1930-40, porém, esse estudo motivou uma controvérsia sobre a autenticidade da coleção e as “raças” de Timor, opondo aquele craniologista a administradores coloniais. O problema era que a coleção tinha chegado a Coimbra sem prova documental da sua história colonial. Desconheciam-se documentos que munissem os ossos de uma narrativa sobre o seu passado e assim autenticassem a identidade rácica que os craniólogos desejavam isolar.
Esta controvérsia foi um dos pontos de partida da minha pesquisa histórica sobre as circulações entre arquivos, crânios humanos, violências coloniais, e teorias raciais, de que resultaria o livro Headhunting and Colonialism, publicado em 2010, pela Palgrave Macmillan. Vou relatar aqui curtos segmentos dessa investigação. Pretendo, primeiro, mostrar que o colonialismo e a ciência portugueses são parte integrante dessa história mundial de circulação de ossos de outros povos. Pretendo também salientar que a memória que construímos e as histórias que contamos agora sobre esses passados coloniais são importantes para definir os modos como podemos lidar com estes materiais no presente e no futuro. A historiografia destas coleções está implicada em questões éticas e políticas relativas à sua preservação e curadoria em museus, bem como à sua restituição, tantas vezes justa, às comunidades de origem.
Uma controvérsia sobre autenticidade
Em 1920, o coronel Leite de Magalhães, antigo administrador e militar em Timor, publicou um estudo defendendo que os timorenses deviam ser classificados na “raça Malaia” por oposição à sua afiliação alternativa na “raça Papua”. Todavia, o trecho da obra que mais agitaria a antropologia portuguesa apareceu numa nota de fim de página. Os crânios em Coimbra, alegava o militar, não tinham pertencido a verdadeiros timorenses. Eram os restos mortais de militares portugueses, africanos e indianos, massacrados e decapitados por “rebeldes” ao governo colonial em Timor, no ano de 1895. Por engano, tinham sido enviados para um museu em Portugal. Com este reparo, Magalhães deitava por terra o anterior estudo craniológico de Barros e Cunha. Em 1885, Cunha sugerira, em sintonia com a raciologia internacional da sua época, que os leste-timorenses se filiavam numa suposta “raça Papua”. Mas fê-lo sem determinar a proveniência da coleção, porque faltavam em Coimbra os papéis que documentavam a sua origem. Esta falta de um arquivo documental era uma lacuna importante da coleção enquanto matéria de prova de “raças”. De facto, naqueles tempos, uma boa coleção e um bom espécime científico eram aqueles que se acompanhavam de documentos acerca da sua identidade, proveniência e circunstâncias de aquisição. Esta preocupação traduzia-se na prática de guardar ossadas nos museus junto com arquivos de cartas, cartões, rótulos, que atestavam a sua proveniência. Ora, no caso da coleção em Coimbra, a inexistência desses documentos impedia que os crânios servissem de testemunho válido acerca de “raças”.
Em Portugal, a suspeita do coronel Magalhães difundiu-se amplamente como verdadeira. Só muitos anos mais tarde, em 1934-35, contudo, veio Cunha a público defender o seu estudo. Daqui resultou uma polémica entre o craniólogo e os seus detratores que correu tinta nas páginas do Diário de Notícias em 1935. A coleção tinha chegado a Coimbra no ano de 1882. Por esse motivo, os oponentes de Cunha acabaram por aceitar que os crânios não podiam ter pertencido às tropas massacradas em 1895. Mesmo assim, continuaram a desconfiar da autenticidade da coleção, através de conjecturas sobre o seu passado. Em resposta, sem documentos, Cunha foi incapaz de oferecer uma história credível.
A identidade étnico-racial da coleção é ambígua e irresolúvel. Tentar a sua destrinça é um projeto infrutífero que repete e reproduz as ilusões da raciologia do passado. Todavia, a mesma coleção importa como testemunho do colonialismo e da ciência racial que marcaram a história de Portugal e dos países que um dia formaram o seu império. A pesquisa de arquivo que realizei nos anos 2000 resgatou a documentação perdida. Mais: mostrou que a coleção era uma prova das relações de violência colonial, enredadas em costumes e conceitos locais, que possibilitavam e fortaleciam a autoridade portuguesa em Timor. Encontrei pistas que situavam as origens da coleção em terríveis guerras punitivas de finais do século XIX, marcadas pela decapitação ritual do inimigo praticada por guerreiros timorenses ao serviço de Portugal. Surpreendi ainda as origens da coleção na atividade dos missionários católicos.
Inimigos do governo
“Sob o n.º 1º designam-se trinta e cinco crânios. São eles de pessoas adultas de um e de outro sexo, que pereceram às mãos das forças auxiliares do governo na guerra de Laleia de 1878 a 1879 contra o facínora e rebelde Manuel dos Remédios.”
Este excerto surge numa carta oficial enviada em 1881 pelo Superior da Missão de Timor, o Reverendo António Joaquim de Medeiros, para o governador da colónia. Hoje nos fundos do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, esse excerto é parte da documentação perdida da coleção de Coimbra. Na carta, o Superior descrevia a ação dos missionários católicos no âmbito de uma Comissão destinada a reunir objetos de Timor para o Museu Colonial em Lisboa. A remessa resultante incluía a coleção de 35 crânios que chegaria ao museu antropológico de Coimbra. Segundo o relato, os crânios foram recolhidos pelos próprios missionários. Foram entregues aos padres por guerreiros timorenses, seus aliados, que tinham decapitado inimigos dos portugueses durante a chamada “guerra de Laleia”, de 1878-81, uma guerra feroz fomentada contra uma autoridade local timorense pela própria Missão católica e pelo governador português. Eram, portanto, as cabeças decepadas de opositores timorenses ao governo português na ilha.
Em Timor, a cumplicidade entre portugueses e timorenses no domínio da guerra era um costume local antigo que datava dos primeiros tempos do estabelecimento português na ilha. Em vários momentos, os ritos de caça de cabeças, por exemplo, conhecidos em Timor por ritos do lorosa’e, foram simultaneamente ritos de guerras coloniais, promovidas pelos governadores e oficiais portugueses. Assim, o horror que muitos observadores atribuíam à “selvajaria” timorense era, afinal, também o modo de ser do poder colonial português. Deste ponto de vista, a coleção de Timor em Coimbra é indício de uma forma colonial de governo pela violência, que juntava certos timorenses e portugueses na decapitação de timorenses inimigos.
Passados difíceis
A história mundial do racismo científico e da apropriação colonial de ossos humanos é também uma história nacional. É um passado difícil, mas que urge reconhecer e enfrentar. Tornar esse passado visível e transparente é uma importante tarefa analítica, ética e política. A fantasiosa ciência racial de antigamente queria passados coloniais convenientes, que autenticassem os seus espécimes. Pouco interessava as marcas que esses passados deixavam na cultura e na memória das comunidades de onde os restos humanos eram subtraídos. Hoje, porém, já não deve ser assim. É fundamental reconhecer e incluir o ponto de vista dessas comunidades, em termos equitativos. Novos desafios se colocam, assim, à subversão da condição colonial e racial das coleções. O passado colonial ocupa o coração do debate sobre o repatriamento de restos humanos para as comunidades de origem que hoje tem lugar um pouco por todo o mundo. Estas reclamam para si a propriedade desses materiais; ou somente a possibilidade de decidir o destino a dar aos restos dos antepassados, nos seus próprios termos culturais. Sem que a história específica de cada coleção esteja documentada, é difícil decidir sobre o seu futuro. Por esse motivo, a questão política da restituição é hoje também uma questão historiográfica. Em alguns países, como Austrália, Alemanha, ou Reino Unido, a restituição implica um programa sustentado de investigação histórica e arquivística. Os restos humanos em museus são um exemplo pungente e visceral de tempos coloniais e raciais, com e contra os quais precisamos de saber viver no presente. Contei aqui a história de uma coleção portuguesa com um passado colonial e racial difícil. Mas muitas outras histórias de coleções no país estão ainda por saber e por contar. Afinal, a coleção de crânios de Timor em Coimbra talvez seja apenas a ponta de um icebergue.
“Viver com o sangue que fica: The Blood That Remains, pesquisa sobre uma coleção colonial”
Artigo publicado originalmente no jornal Público (série Ciências Sociais em Público)
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