Poéticas africanas de língua portuguesa: língua, engajamento e resistência

A literatura produzida por minorias, sejam elas étnicas, raciais ou de gênero, busca dar visibilidade a produções de autoria de grupos pouco prestigiados no contexto social e que, consequentemente, têm menor espaço dentro do contexto da tradição literária. Essas literaturas ditas marginalizadas ganham espaço à medida que a crítica, também parte importante do processo de circulação e recepção de obras literárias, ocupa-se em dar lhes notoriedade.

Apresentamos aqui a poética de duas autoras pouco analisadas no circuito da crítica literária brasileira, representantes de países africanos de língua portuguesa: a guineense Odete Semedo e a cabo-verdiana Eneida Nelly (ver aqui texto sobre esta poeta no BUALA), ambas trazem em vozes poéticas questões voltadas para o percurso insidioso do neocolonialismo e de uma intrincada relação entre língua oficial e língua de uso comum (português/crioulo). 

Eneida NellyEneida Nelly

Nos países africanos de língua portuguesa, componentes da CPLP (Comunidade dos países de Língua Portuguesa) é interessante observar o legado deixado pelo processo colonizador, também pensando a língua como fator relevante na formação dessas culturas e identidades. Esse processo fatualmente violento de invasão, submissão e dominação de grupos nativos levou a um apagamento histórico de suas diversas culturas e identidades, o que envolve também produções culturais em línguas nativas – neste caso o crioulo, que constitui, no universo africano de língua portuguesa, uma especificidade das experiências literárias na Guiné-Bissau e Cabo Verde.

A participação da mulher como voz criadora nas literaturas africanas de língua portuguesa é discreta se a compararmos com a produção realizada pelos homens.  Odete Semedo é autora de contos e poemas, publicou os livros Entre o Ser e o Amar (poemas, 1996), SONÉÁ histórias e passadas que ouvi contar I (contos, 2000), DJÊNIA histórias e passadas que ouvi contar II (contos, 2000) e No Fundo do Canto (poemas, 2003). 

Nos dois poemas escolhidos como objeto de análise, existe a evidência de um conflito e de uma aproximação: os poemas são apresentados de forma bilíngue, em português e em crioulo. A dualidade é propositadamente explorada: por um lado a autora está inevitavelmente ligada à cultura portuguesa, por outro, a sua memória e seus afetos estão arraigados às tradições de sua cultura, linguisticamente representada pela adoção do crioulo em seus versos. 

Outra figura importante das literaturas africanas de língua portuguesa cabo-verdianas recente é a poeta Eneida Nelly e seu único livro de cinquenta poemas chamado Sukutam (Escuta-me, em língua crioula), no qual a autora destaca sua poética de cunho sentimental e de compromisso social, relevando as adversidades sociais de Santiago, maior ilha do arquipélago de Cabo Verde. O discurso feminino da autora, focado nas suas vivências, traz temáticas inovadoras e amplia o olhar do leitor para outras realidades anteriormente não visíveis. Sukutam, obra lançada em 2011, foi publicado meses antes do suicídio da autora e traz como tema o tradicionalismo santiaguense a partir de uma resistência cultural em poética crioula que enfatiza o uso da língua materna como oposição à língua portuguesa.

Segundo Filomena Embaló, no texto denominado “O crioulo da Guiné-Bissau: língua nacional e factor de identidade nacional”: “A Guiné-Bissau é dos raros países africanos onde as línguas étnicas não se impôs como língua franca ou língua dominante. E esse fenómeno deve-se sem dúvida à existência do crioulo guineense” (2008, p.105). Por tratar-se da língua de comunicação entre os diversos grupos populacionais ao longo do processo independentista, o kriol foi o elemento de congregação num contexto de variada diversidade étnica. A utilização de uma língua comum, diferente da língua oficial imposta pelo colonizador, apresentou-se como símbolo de resistência cultural contra o jugo português e contribuiu para a criação de uma unidade nacional. 

O nascimento da língua crioula cabo-verdiana apresenta-se também como afirmação cultural que se distancia de certa forma da “metrópole”. Sendo resultado da conjuntura do povoamento e colonização do arquipélago, ela é conhecida como importante elemento da identidade e principalmente da noção de caboverdianidade, oferecendo elementos para a construção de uma identidade nacional. Para os cabo-verdianos, a língua crioula não é apenas um meio de comunicação, mas também de afirmação identitária. Para Maria Nazareth Soares Fonseca, na obra Literaturas africanas de língua portuguesa (2015, p. 36): 

 

A escrita literária, considerada veículo para a concretização de identidades culturais híbridas, mescladas, imprime, na língua oficial de cada espaço, marcas e tons diferenciados. Essa estratégia é deliberadamente assumida por escritores e escritoras que decidem construir os seus textos, optando por uma dupla escrita, em crioulo e em português, ou misturando, intencionalmente, a língua oficial do seu país com as línguas “da terra”, ou mesmo decidindo publicar os textos somente na língua de uso, o crioulo.

Odete SemedoOdete Semedo

O caso de Odete Semedo e de Eneida Nelly enquadra-se neste último exemplo, tendo as duas autoras optado por escrever e publicar em crioulo, o que se apresenta como uma forma de afirmação da cultura e das nacionalidades de ambas. É este crioulo que levanta questões sobre a legitimidade de seu uso e sobre a sua plasticidade enquanto espaço de representação das experiências vividas pelo povo guineense a partir de uma língua própria, tal como demonstra este poema:

Em que língua escrever
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar?

Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!

Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?

Ou terei que falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século

Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem

Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos

(SEMEDO, 1996, pp. 12-13)

Ainda segundo a observação de Maria Nazareth Soares Fonseca (2015, p.39): “As indagações que atravessam o poema de Semedo expressam os impasses que se põem entre falar crioulo, a língua de identificação nacional, o idioma em que se expressam os afetos mais íntimos, e escrever em português, a língua oficial do país”. Nota-se, a partir da análise do poema, que a(s) língua(s) funcionam ao mesmo tempo como elemento de união e da segregação, sendo o veículo pelo qual a poetisa expressa seus mais íntimos contornos, apresentando-se também como fonte do próprio conflito em si: expressar-se em português ou em crioulo.

A kontrata começara
O grande lugar de rónia
tronco de um velho poilão
aguardava a cerimónia
que abriria o encontro
(…)
Bissau tomou a palavra

era a anfitriã
kumbu da mufunesa
antro de desespero
(…)
Que coisa atroz

tão grande mufunesa
filhos seus corriam
de um lado para outro
Bissau era culpada: concluíam
Não criou bem os seus filhos
largou-os ao léu
mal abençoados
vagueando feito rastilhos
debaixo de sol e serunu

Esses filhos desgraçados

porfiaram as suas raízes
renegaram a verdade
apostaram na mentira
na calúnia e lobo
fez do seu manjar
outro lobo
(2007, p.29)

Esta poesia traz a imagem das formas de expressão e das manifestações culturais por meio da sensibilidade e do olhar crítico com os quais a autora retrata tanto a história de seu país, numa forma mais ampla, quanto os comportamentos e as consequências colocadas nos versos: “Esses filhos desgraçados/porfiaram as suas raízes/renegaram a verdade/apostaram na mentira”.

Os conflitos da guerra civil surgem em imagens como: “Bissau era culpada/ não criou bem seus filhos”. A construção da identidade guineense parte sobretudo destes acontecimentos históricos que marcam toda a trajetória sócio-política do país. A poeta é a porta-voz que constrói imagens tomando como ponto de partida um processo de releitura do passado, a partir de uma revisão que intenta compreender as experiências humanas no território de seu país. Todo este processo é percorrido para culminar na afirmação da identidade nacional.  

Odete Semedo, a partir de sua lírica de preocupação social e retomando temas caros à sociedade guineense como a guerra, a natureza e a intrincada relação com o colonizador, contribui com valores humanistas para a construção de uma literatura guineense, consolidando-se como uma das destacadas vozes femininas dos países africanos de língua portuguesa.

Eneida Nelly, jovem poetisa cabo-verdiana de fim trágico, publicando somente um livro ― Sukutam (Escuta-me, 2011) toda escrito em língua crioula e com muita  afetividade, tanto na forma (escrita em crioulo) quanto nos seus temas e conteúdos quando releva a vida e a valorização da mulher camponesa. Esses elementos têm como pano de fundo uma perspectiva de valorização da língua materna e das memórias de sua terra, constituídas nas experiências na cidade de Tarrafal, parte de Santiago. O componente trágico fica por conta do suicídio da autora, que o cometeu ainda muito jovem quando estava morando em Lisboa. 

Esta obra contém 50 poemas musicados por Princezito e tem como mote a infância e vivências em sua terra natal. Assim, está fora dos padrões já conhecidos da literatura produzida em África: na contramão de outros autores e seguindo a linha da Odete Semedo na Guiné-Bissau, Eneida Nelly escreve em crioulo cabo-verdiano, confrontando a língua de imposição colonial.

A origem da autora reflete-se também na sua poesia: trata-se de uma mulher negra, pobre e da zona rural da ilha de Santiago. Desse modo, os poemas retratam a vivência difícil para uma mulher nessas condições, revelando sua perspectiva de engajamento na escrita, bem como o resgate das tradições orais femininas. Por fim, nota-se que o empreendimento da autora em escrever na sua língua materna (o crioulo caboverdiano) revela um questionamento sobre a ordem e a imposições do fazer literário, demonstrando independência linguístico-cultural em relação à antiga metrópole.

Assim, foram selecionados dois poemas da obra Sukutam (2011) que representam uma pequena parte das questões levantadas pela autora, quais sejam: uma homenagem ao revolucionário Amílcar Cabral, um poema que traz à tona a vivência pobre e campesina no contexto da ilha de Santiago e um terceiro que exalta o valor das mulheres de sua terra. Segue o primeiro poema:

Cabral

Cabral, referência di nha terra

Cabral, referência da minha terra

Ki nha Dona desde mininu ta contaba

Que a minha avó desde criança contava

Ma ele bai Guiné, mel bai luta pa se sangui

Mas ele foi à Guiné, foi lutar para o seu sangue

Ma na fim, bandera mon es tral se bida

Mas no final, com a bandeira na mão tiraram-lhe a sua vida

Vovó ta flaba, ma Cabral bai na mon di tuga

Avó falava que Cabral se foi nas mãos dos portugueses

Ma se vivencia, sta na fundo bida di caboberdiano…

Mas a sua vivência está no fundo da vida dos caboverdianos…

 

A imagem de Amílcar Cabral como um herói libertário aparece na poesia da autora, que traz à tona seu papel como artífice da independência de Cabo Verde e Guiné Bissau. Assim, ele é tratado como uma referência que lutou pelo seu sangue, pelo seu povo. Outro ponto que se observa é como essa figura emerge: através da memória da avó que contava as histórias de Cabral desde a infância da autora. Essa imagem se engendra a partir de uma memória do trauma: Cabral é lembrado como herói por ter morrido pela causa, por ter perdido a vida defendendo seus ideais (a imagem da bandeira na mão é bastante evocativa dessa resistência e de todo o contexto político que envolve a morte de Amílcar Cabral).

Na figura descrita por Nelly é revelado o engajamento social com as questões relativas à libertação de Cabo Verde e Guiné Bissau e, sobretudo, a importância de Amílcar Cabral no processo de independência desses países, além de uma análise crítica subentendida dos usos políticos da sua memória. É por meio de seu poema, fruto do processo memorialístico de um grande líder, que a poetisa também consegue de certa forma narrar a história própria do povo caboverdiano, sem qualquer mediação da antiga metrópole e auxiliando na constituição de uma história contada pelos efetivos representantes do país.

A realidade social da mulher campesina é outro ponto que Nelly traz em sua poesia, exaltando em crioulo a vida desta mulher que vive do campo, de criar suas crianças, de buscar água na fonte. Essa imagem parte de um construto de memória que pode ser tanto individual quanto coletiva. No poema a seguir também fica clara a construção dessa imagem de mulher que, sendo caboverdiana, santiaguense ou tarrafalense, exaltando uma valorização de suas qualidades. 

Segue o poema “Mudjer di nha tera”:

Panu maradu, grasa na rosto

Pé finkadu ta ora propostu

É mudjer di nha tera!

 

K sabi bafa dor 

[sabe esconder sua dor]

K konxi storia, k tem kusa-l fla…

[conhece a história e tem muito que contar]

É mudjer di nha tera! 

[é a mulher da minha terra]

 

Matakam di ser k k ata tadjadu,

[ser de grandeza indomável]

Karamba si dja tem mudjer fadjadu

[pois, se existe mulher generosa]

É mudjer di nha tera! 

[é a mulher da minha terra]

(NELLY, 2011, p. 104-105).

 

 

Numa poética de tipo sentimental e de compromisso social, Eneida Nelly ressalta várias adversidades sociais e emocionais, a partir de um olhar feminino e do tradicionalismo santiaguense. Percebe-se como a autora põe em ação um imaginário fortemente ligado à terra e aos atributos femininos como tessitura dos contornos de uma comunidade imaginada. Essa imagem da mulher-terra nos remete às noções de maternidade, de cuidado, de campesinato e de valorização de uma mulher intimamente ligada à sua terra. Na perspectiva da poetisa, acentuadamente feminina, evidencia-se um modo de resistência cultural que, no entanto, ainda hoje constrange a efetiva libertação feminina das estruturas patriarcais e da opressão cultural. 

Existindo e se modificando ao longo do tempo, lado a lado com a língua portuguesa, a língua crioula é formada por um universo complexo, que ajuda na construção do imaginário da nação e na ideia de nacionalidade. Odete Semedo e Eneida Nelly deixam seu legado propondo obras escritas em crioulo, revelando as suas vivências e exaltando a  terra natal. Estas vozes poéticas fazem emergir um olhar sobre dois países africanos ainda pouco estudados no Brasil, buscando apresentar um apanhado da complexa rede de relações que compõe a literatura, a língua e a cultura de ambos os países e abrindo uma nova possibilidade de inscrição no cânone através de autoras que fazem da afirmação da língua materna sua bandeira.

REFERÊNCIAS

EMBALÓ, Filomena. O crioulo da Guiné-Bissau: língua nacional e factor de identidade nacional. Revista PAPIA, São Paulo, v. 18, p. 101-107, 2008.

 

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de Língua Portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos. Belo Horizonte: Nandyala, 2015.

 

NELLY, Eneida. Sukutam. Praia: Edição da autora, 2011.

SEMEDO, Odete Costa. Entre o ser e o amar. Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.

 

________. Língua esvoaçante. Consultado em 15/07/2016 In: http://djambadon.blogspot.com/2006_03_01_archive.html

 

________. No Fundo do Canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007. 

por Claudia Moraes
A ler | 13 Março 2020 | Cabo Verde, Eneida Nelly, Guiné Bissau, Literatura, Odete Semedo, poesia