Postais das viagens e da luta de Amílcar Cabral
Amílcar Cabral, não sendo escritor-viajante ou viajante-escritor, mas “homem do mundo”, não deixa de produzir um relato das suas viagens, através desta compilação de postais enviados à mulher e aos filhos agora editada em livro, intitulado Itinerários de Amílcar Cabral.
O relato das viagens de Amílcar Cabral, incontornável líder da luta anticolonial, é aqui, quase, biografia, na exata medida em que conta as experiências do autor num registo novo, que não conhecíamos. Com efeito, este livro compila uma inestimável antologia de alteridade e de construção, na linha da premissa da libertação como ato de cultura e de desafio humanista, preconizados por Cabral, de “aprender, aprender sempre; pensar com as nossas próprias cabeças”.
Estes postais permitem-nos, assim, cartografar e calendarizar o percurso de um dos mais reconhecidos dirigentes da luta e pela dignidade e pela autodeterminação dos povos. Da mesma forma que nos deixa garimpar (por entre as manifestações de saudade, declarações de amor, preocupações e recomendações de pai e marido ausente), até encontrarmos desabafos e preciosos comentários sobre as vicissitudes da luta, as estratégias diplomáticas para mobilizar apoios internacionais, assim como, muitas vezes, a expressão das aspirações e ideais que o moviam.
Revisitar todo este relato, organizado e composto por Ana Maria Cabral (viúva de Amílcar Cabral), Filinto Elísio e Márcia Souto (estes últimos, editores da obra), remete-nos, e à nossa memória coletiva, para o longo período da Guerra Fria, especialmente os anos sessenta e setenta. Ao mesmo tempo, descobre um Amílcar Cabral que foi das figuras mais brilhantes do seu tempo e incontornável teórico da luta independentista em África. “A independência para quê?”, dizia numa entrevista. “Para nós, em primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo”.
Atrás de uma escrita simples (tratando-se de postais aos familiares), partilhamos do extraordinário trânsito global de Amílcar Cabral, vencendo, pelo brilho da causa anticolonial e humanista, e da sua sedutora capacidade de argumentação, as contingências de ordem político-diplomática e geoestratégica. Acompanhando-o por Nova Iorque e Moscovo, Roma e Cairo, Estocolmo e Trípoli, e reconhecendo a sua voz ativa nas Nações Unidas, na Organização da Unidade Africana, entre os Não-Alinhados e no Vaticano.
Em muito das suas viagens, parcialmente registadas por estes postais, Amílcar Cabral procurou as Nações Unidas e suas agências. Considerou-se a si próprio um “soldado da ONU”. Fê-lo, creio, por entender haver uma convergência de pontos de vista e de ideais entre a sua luta e a razão de ser central das Nações Unidas. As suas preocupações com a educação do seu povo levaram-no algumas vezes à UNESCO. Da mesma forma que as suas inquietações relativamente à fome e à insegurança alimentar o induziram a ver na FAO um parceiro.
O livro conta com a preciosa colaboração da investigadora Aurora Almada que procura, através de notas de enquadramento, iluminar o leitor sobre as razões e as motivações, assim como as circunstâncias, estas sim de enorme interesse público, de cada viagem-postal.
Olhando para esta obra, apetece perguntar: quem disse que entre a história privada e a pública têm de existir fronteiras claras e intransponíveis? Que historiador poderá abrir mão do potencial de esclarecimento recíproco que as duas possuem?
No seu livro de memórias, “A Ponta da Navalha”, o jornalista francês Gérard Chaliand conta que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, este terá replicado, com a profundidade que o caraterizava, “não, o maior é Cabral”.