Práticas de Alegoria Política
Para a memória coletiva europeia o primeiro grande símbolo da impiedosa violência fascista, a Guerra de Espanha (1936-39) mobilizou sensibilidades políticas a uma escala global. Enquanto primeiro conflito armado a ser amplamente coberto pelos meios de comunicação modernos (imprensa, fotografia, rádio e filme), a guerra civil espanhola foi o palco de um repto que continua hoje a assombrar a cultura e que, nas palavras do escritor André Gide, se resume a “proteger o espírito face à força bruta e a arte e a cultura face à opressão”. Testemunho do contemporâneo, poderá a arte, os seus agentes e instituições, assistirem ao desenvolvimento de uma esfera na qual “o artista criativo e todos os que se preocupam com a justiça, a liberdade e a cultura verão ser impossível trabalhar ou mesmo dela sair”?
As palavras do poeta W. H. Auden, autor do verso político Spain 1937 ressoam com frequência nos projetos que tenho desenvolvido como curadora e nos quais exploro as formas como o presente retrocede e renova. Em 2019, face à demissão do curador Nicolaus Schafhausen do cargo de diretor da Kunsthalle Wien, que ocupara desde 2012, começava a despertar uma nova consciência sobre o futuro das instituições culturais em tempos de movimentos populistas de direita. Para Schafhausen, era claro desde então que as políticas nacionalistas na Áustria e em outros lugares da Europa já se teriam sobreposto à possibilidade do trabalho artístico e cultural. No mesmo ano, surge também a hashtag #342artes nas redes sociais luso-brasileiras, movimento que alerta para um processo de criminalização das artes plásticas e performativas no Brasil no decorrer de vários episódios de censura em instituições públicas de arte contemporânea após a eleição do assumido defensor da ditadura militar e da política do extermínio, Jair Bolsonaro. Nos Estados Unidos, o conceito de “marxismo cultural”, adotado pela extrema-direita radical, assume, entretanto, o legado da expressão propagandística nacional-socialista e Macarthista de “bolchevismo cultural”. Difundido à escala global através das redes sociais, este conceito constrói uma teoria da conspiração cujo centro se situa na disseminação das culturas visuais e do pensamento crítico. Foi um conceito central no manifesto de Anders Breivik, o norueguês que cometeu um assassinato em massa no ano de 2011.
A Repórter Especial das Nações Unidas para formas contemporâneas de racismo e de discriminação racial, xenofobia e intolerâncias relacionadas, Tendayie Achiume, nota que a atividade neonazi persiste nos discursos e fóruns convencionais, em parte devido à persistência de ideologias etno-nacionalistas e de supremacia branca nos mais altos de cargos políticos em países da Europa e das Américas. Sobre os ataques e assassinatos perpetrados contra minorias raciais, étnicas e religiosas durante os anos de 2018-2019, escreve Achiume:
“Nos Estados Unidos da América, existe um aumento de 30% no número de grupos de ódio desde 2014, incluindo um aumento de 7% apenas em 2018. De acordo com uma contagem, havia 1.020 organizações de ódio identificadas nos Estados Unidos. Um grupo de monitorização relatou um aumento de 182 por cento em incidentes de propaganda da supremacia branca nos Estados Unidos: 1.187 casos relatados em 2018 em comparação com 421 em 2017.”
Sabemos que estes números, exponenciados por processos de recrutamento através das tecnologias de informação, redes sociais, memes, cultura de jogos e a música, continuam a aumentar. A música desempenha um papel fundamental na radicalização em grupos de ódio. Em 2018, o festival Rock gegen Überfremdung [Rock contra a dominação estrangeira] reuniu mais de seis mil neonazis, num dos maiores concertos de música white power já organizados na Alemanha. Está claro que a cultura não é adversa às mais insidiosas políticas de recrutamento e de esvaziamento democrático praticadas por estes grupos. Ainda na Alemanha, o estudo da história e das consequências do confisco de obras de arte modernas em museus alemães e austríacos pelos nacional-socialistas em 1937, recebe um grande investimento público e apoio mediático numa campanha de sensibilização pública para o seu passado histórico e para a efetiva presença de novos radicalismos de direita.
Exposição de destaque no ano de 2020, Tell me About Yesterday Tomorrow [Conta-me Sobre Ontem Amanhã], com curadoria de Schafhausen, ex-diretor da Kunsthalle Wien, no Centro de Documentação de Munique para a História do Nacional Socialismo apresentou obras selecionadas do regime nazi em diálogo com obras das últimas décadas e novas comissões, explorando imagens multifacetadas da história, nas quais experiências individuais complementam e expandem reflexões estruturais. Paralelamente, a exposição Hannah Arendt und das 20. Jahrhundert [Hannah Arendt e o século XX] no Deutsche Historische Museum, em Berlim, partiu de uma proposta curatorial assente nos reconhecidos conceitos “totalitarismo” e “banalidade do mal” teorizados pela filósofa alemã e americana em relação às atrocidades do regime nacional-socialista.
Envolvidos no desafio do eurocentrismo que, argumentam os autores, sustenta o atual conceito de fascismo, o artista franco-argelino Kader Attia e a escritora portuguesa Ana Teixeira Pinto têm desenvolvido a série de conferências internacionais intituladas The White West [O Ocidente Branco] nas quais abordam a relação entre colonialismo e nacional-socialismo por meio da cena “protototalitária” da expansão colonial e seu conceito racializado de personalidade jurídica. Na instituição holandesa BAK, basis voor actuele kunst, em Utrecht, o projeto curatorial de longa-duração (2017-2020) comissariado por Maria Hlavajova, Propositions for Non-Fascist Living [Propostas para uma Vida Não-Fascista] convida artistas, teóricos, e ativistas a desafiar a ascensão dos fascismos contemporâneos que ameaçam os fundamentos da vida comum. Uma curta descrição destes projetos curatoriais demonstra a preocupação, tentativa e urgente, de alguns produtores e instituições culturais face à penetração dos discursos fascistas na sociedade civil.
Em Portugal, à medida apresentada pelo partido Livre para que o património das ex-colónias portuguesas que esteja na posse de museus e arquivos nacionais possa ser identificado, reclamado e restituído às comunidades de origem, o deputado do partido de extrema-direita Chega, André Ventura sugeriu que a deputada proponente, Joacine Katar Moreira “seja devolvida ao seu país de origem”. À data deste ensaio, Ventura é candidato às Eleições Presidenciais 2021 e que, num debate com o atual Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, acusou o último de socializar com “bandidagem”, referindo-se às comunidades luso-africanas que habitam o Bairro da Jamaica na margem sul de Lisboa, comunidades estas pós-coloniais, despossuídas e marginalizadas por quinhentos anos de colonização portuguesa. Como parte do seu programa eleitoral, Ventura rejeita o multiculturalismo e qualquer política pública nele fundamentado, prevê manter e preservar “sem revisionismos circunstanciais a onomástica e toponímia originais de monumentos históricos e vias de comunicação,” e, naturalmente, criar o Museu dos Descobrimentos.
No que respeita às artes, o seu partido opõe-se manifestamente ao citado “marxismo cultural” que descreve ser “hoje dominante em franjas estreitas, mas decisivas pela influência detida no mundo académico, das Artes e das Letras, dos meios de comunicação de massa e na generalidade das falsas elites locais que vão buscar, a essas franjas, o essencial do seu pensamento e da sua visão do mundo e da vida.” No seu programa para eleições legislativas de 2019, propõe ainda a reavaliação da presença de Portugal na Organização das Nações Unidas (ONU), entidade na sua conceção, “produtora e difusora do marxismo cultural e do globalismo massificador”.
Não basta recordar que a existência legal deste partido parte de um fenómeno não só constitucional, mas social e político. Recentemente, ao abrigo do artigo 187º do Código Penal, foi constituída arguida a pessoa que colava cartazes nas ruas de Lisboa anunciando uma exposição da poetisa e artista Gisela Casimiro. Na perspetiva dos dois agentes da Polícia de Segurança Pública que a intercetaram, a pessoa cometeu flagrante delito de “Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva” na divulgação de “factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade da autoridade.” Em causa encontra-se o poema Quando for Grande, no qual a autora evidencia a violência racial perpetrada pelo aparelho repressivo do Estado neste país. A curadora da exposição foi igualmente constituída arguida no processo, agora sob a tutela do Ministério Público.
Sabemos que as limitadas investigações do último às filiações de oficiais no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e nas forças policiais e militares portuguesas a grupos de direita radical, fascista, racista e xenófoba, revelam a premência de repensar como o Estado de Direito delimita a atividade policial e política. Para tal, urge não só rever a distribuição de recursos públicos, mas também as estruturas sociais que, na literatura da psicologia sobre extremismo, favorecem ou determinam o comportamento extremista, tais como a formação de identidade social, aculturação, influência social e pressão normativa de filiação que afetam indivíduos psicologicamente vulneráveis, muitos deles galvanizados em dias de Defesa Nacional e pelas Jotas partidárias.
Neste processo, não devemos, artistas e curadores, assistir passivamente ao agravamento da condição da liberdade de expressão e à crescente polarização e radicalização da esfera pública. Pelo contrário, devemos exigir mais das nossas práticas e das nossas instituições de arte, procurando o desfazer poético e narrativo das práticas de produção de conhecimento que sustentam aqueles conceitos modernos que permitem tais exclusões e intolerâncias na arena política e social.
Recordemos as palavras do filósofo alemão, Theodor W. Adorno, numa palestra de 1967 proferida em Viena sobre os novos radicalismos de direita:
“(…) repito que tenho consciência de que o radicalismo de direta não é um problema psicológico e ideológico, mas sim um problema muitíssimo real e político. Mas o objetivamente errado e falso da sua substância força-o a utilizar meios ideológicos e propagandísticos. E, por isso, independentemente do combate político com meios puramente políticos, é necessário enfrentá-lo no seu próprio terreno. Mas não se trata de opor uma mentira a outra mentira, procurar ser tão esperto como eles, mas sim contrariá-los com a força penetrante da razão, com a verdade não ideológica.”
Da raiva acelerada à violência lenta, artistas e curadores têm procurado colocar em primeiro plano as práticas extrativistas enraizadas na modernidade colonial, no governo dos colonos e nas operações atuais do capitalismo neoliberal. Em tempos de nacionalismos ressurgentes, nos quais corporações super-soberanas como o Facebook ou Google, alimentam formas cada vez mais abrangentes de governança cibernética e intolerância enraizada na supremacia branca e disseminada pelas tecnologias digitais, que papel têm os produtores culturais? Que exemplos de boas práticas institucionais podem inspirar uma ação determinante nas instituições de arte a nível nacional de forma a promover uma educação estética antifascista e sensibilidades democráticas? Que exemplos de solidariedade transnacional e de cruzamentos disciplinares podem inspirar a prática artística e curatorial contemporânea contra os ressurgimentos nacionalistas à escala global? Recordemos o impacto da Guernica (1937) de Picasso, produzido durante a Guerra Civil Espanhola, um dos mais consagrados manifestos contra o fascismo e exemplo da “revolta da consciência e da arte face aos desastres que devastavam a Europa”. Guernica demonstra a importância da ação conjunta de atores estatais e não estatais no desarmamento da ideologia fascista. Que práticas de crítica e reflexão artística e que soluções locais e globais, podem as redes de arte contemporânea – artistas, curadores e instituições – promover para a desradicalização da esfera pública e fomentar novas sensibilidades ancoradas na linguagem democrática?