(S)EM TERRA, de Laura do Céu
Apresentação do livro, 12/11/2021, Livraria Tigre de Papel
Agradeço a Soraia Simões de Andrade pelo convite a mim endereçado para apresentar a coletânea de poemas (S)EM TERRA, agradeço à editora Caleidoscópio, e agradeço também à Livraria Tigre de Papel pelo acolhimento desta apresentação, à semelhança, de resto, de várias outras apresentações e eventos literários que tenho tido o privilégio de assistir nesta livraria.
Li Metrónomo sem Função de Laura do Céu, pseudónimo de Soraia, uma narrativa ficcional marcada pelo percurso autobiográfico de uma narradora que busca compreender o seu lugar no mundo com uma relação muito particular com as memórias pessoais. Esta é uma protagonista e narradora que vive em Portugal, um país em transição, recém-saído de uma ditadura, que se encontra num longo despertar da consciência cívica e das liberdades; narradora e país partilham, de certa forma, de um processo de transição. Estes são também os anos que me acompanharam desde a infância e reconheço, portanto, muito do que é aqui narrado. Destaco no processo narrativo do Metrónomo sem Função, três diferentes registos que se encontram interligados na construção da subjetividade da mulher representada: um narrador de terceira pessoa, uma narradora na primeira pessoa que se divide entre um registo pessoal que acompanha diacronicamente a narrativa e um registo diarístico, mais pessoal e mais íntimo ainda, particular de um tempo específico da protagonista Zoraide. As dores, as interrogações e as emoções específicas desta busca pessoal, íntima e intransmissível, estendem-se por toda a narrativa, mas estão particularmente visíveis, acutilantes até, nas páginas avulsas do diário de Zoraide.
Pois bem, (S)EM TERRA é uma coletânea tributária deste registo mais pessoal, íntimo, em parte devedor de um isolamento pela pandemia que nos colocou em confinamento forçado e o isolamento propicia que nos voltemos para dentro de nós mesmos; em parte também devedor de um processo poético de busca interior e individual que é, por natureza, incessante e, por conseguinte, não terminou na última página do Metrónomo sem Função. Podemos, então, afirmar que o metrónomo cumpre, apesar de tudo a sua função: a de metaforizar “a procura por um lugar na pauta da vida e da morte” e uma marcação da memória, de chão e ancestralidade (Céu, 2020, p.12). Encontramo-lo novamente em (S)EM TERRA, bem como a uma série de referências, como o pai, a mãe, o avô e a avó Laura, que acompanham o sujeito poético desde Metrónomo sem Função.
(S)EM TERRA é o nome do poema que é uma ode à resiliência, à garra e à constância de quem defronta tanto dificuldades como sucessos, um cântico às origens também e um cântico de quem não pertence inteiramente a este espaço, reconhecendo em si a fraqueza que faz do sujeito poético humano. É o poema que empresta o título a esta coletânea de poemas que é em si mesmo uma resistência a sentidos únicos e à fixação de pontos de chegada, sugerindo sempre duas leituras (Sem Terra e Em Terra). Este é um livro sobre resistências múltiplas de um sujeito que ora se vê sem terra – o tempo é impiedoso com as nossas referências - ou se encontra em terra, mas não necessariamente em solo seguro, no reconhecimento da transitoriedade da vida, das emoções que nos ficam como registos de memória, mas que não podemos fixar ou reviver. É este o dilema mais profundo do sujeito poético: o de não poder impedir o ritmo descompassado da vida, preencher os seus silêncios e impedir a finitude, não saber o que fazer com as memórias, sabendo-as matriciais da nossa existência, e ao mesmo tempo ser um sujeito profundamente social e envolvido com o que o rodeia. (S)EM TERRA é o que sobrevem a este movimento de vaivém de espaços e de memórias e que catalisa a criação poética.
Esta coletânea está dividida em duas partes: a primeira, Algures, Subversivamente, Numa Cidade e a segunda, Algures, Contígua à Procedência, Num Campo. A diferença e alternância entre cidade e campo, fonte inspiradora de muitas páginas escritas por tantos autores, são a expressão visual, metafórica, num espaço que habita, mas ao qual não pode e quer pertencer inteiramente e, por isso, a expressão do não conformismo e da transgressão, mas em que sobressai um exercício social dos afetos, e o espaço da memória e da dor, mais íntimo, em que sobressai um exercício pessoal dos afetos. Não interessa que a esta cidade possamos sentirmo-nos tentados a identificar Lisboa, cidade onde tantas aves limícolas se demoram e “a plateia acomoda toalhas” (Aves Limícolas) nem que ao campo, induzidos por leituras anteriores, possamos pensar no espaço campestre das origens familiares de Zoraide, primeiro romance de Laura do Céu, pseudónimo novamente utilizado nesta coletânea. A distinção entre cidade e campo é sobretudo metafórica para a criação poética, mas é importante que se sublinhe que são espaços comunicantes.
Assim, no espaço da cidade, o sujeito poético escreve e rescreve continuamente num processo contínuo e incessante em que as palavras “ter-se-ão enchido de afetos, ocuparão um espaço útil, circular” (Rascunhos) em busca de sentidos outros. Embora não deambulando pela cidade, o sujeito poético convoca este espaço através de imagens que retém e a partir das quais constrói, subversivamente, a criação poética: as pessoas que circulam na rua; a porteira que “anuncia notícias do bairro” e “sublinh[a] dos novos habitantes as caras as que as têm” (A Porteira trivial); o espaço do cinzentismo e do populismo que nos entra pela casa dentro; das hierarquias bafientas, de uma estrutura patriarcal e da máscara em que os “donos da cátedra traja[m] tailleurs resguardados pela cânfora (Cânfora); a cidade é fantasma e nela “fantasmas andantes insípidos sem dorso na língua” (Eufonia Campestre) Apesar de desalentos e embora a prudência perante a realidade lhe dite que será “Imprudente tocar” os amanhãs que cantam, se nem a pandemia tem um fio certo à vista (Ano Novo) é através da escrita que a luz da esperança permanece porque ela “subsiste ao tempo como uma rocha” (Há uma luz que nunca se apaga). É o espaço que convoca a literatura, as artes e o pensamento como fuga e como alternativa de criação de novos mundos; não o da poesia falsa “agora que qualquer coirão metaforiza” e que a “ágora é símbolo palanque de gongorismos” (Poetagem), mas a arte propiciada pelos mundos criados de Victor Hugo, Buñuel, Goethe, Cendrars, Gogol, Kobayashi, Kafka, Cocteau, Dickinson, Pascoaes e a poesia grega que prometem “amores mais longos e dias maiores” (Cântico Inspiratio).
O campo é o espaço das memórias mais íntimas, pessoais, das brincadeiras de infância, dos entes queridos que se foram e permanecem na memória, da natureza que mostra que a vida é um ciclo, as folhas das faias amarelecem e ao tempo se dá tempo, onde um metrónomo marca compassadamente as memórias e o tempo que as marca como um passado que não se pode voltar a viver. Essa é a não conformação dolorosa de quem procura superar através da criação poética e, por isso, onde o sujeito poético tenta capturar as sensações mais físicas e profundas – a sua terra, de facto, mas, como a vida nos mostra, dolorosamente transitória, sempre.
Uma nota importante porque atravessa toda a coletânea: estes são poemas escritos por uma mulher e a atitude subversiva advém da sua condição de não pertença a um centro de poder estabelecido e da construção do poder a partir do olhar visto a partir da margem e que convoca sentimentos de sororidade, “todas por uma” (coro de irmãs). É a mulher que “pinta os lábios de encarnado rubescente” (Hipálage do Tempo (In)Útil) que luta e reage, autónoma, independente, “dona do desejo e da repulsa” (Onanismo), alguém que poderia juntar-se ao coro de quem uma vez escreveu “Guerreiros, nós, mulheres de corpo inteiro e segura mão” (Barreno, Horta e Costa 2010, p. 32).
Referências:
Barreno, M. I., Horta, M. T. & Costa, M.V. (2010). Novas Cartas Portuguesas. Edição Anotada e Organizada Ana Luísa Amaral. Dom Quixote
Céu, Laura do. (2020) . Metrónomo sem Função. Caleidoscópio