"Terceira Metade": Novos horizontes – Arte africana contemporânea e política pós-colonial
1.
No momento em que escrevo, estou visitando a África do Sul. Há somente duas semanas atrás africanos nacionais e refugiados; mulheres e crianças foram violentamente expulsas de seus abrigos nos municípios sul-africanos, alguns brutalmente assassinados. O processo politicamente sancionado da revitalização da Renascença Africana visaria a reintegração dos Estados africanos com o mundo como agentes ativos e também daria início a uma nova era de celebração da herança cultural africana.Porém, o súbito rompimento provocado por ataques xenofóbicos refletem ainda os efeitos do penoso legado do colonialismo e do apartheid. Comunidades ainda se encontram profundamente divididas em desigualdades baseadas em raça, sexo e classe, que continuamente assombram a experiência de uma maioria. Em todo o mundo a complexa interseção entre classe, gênero, raça, religião, ideologia, trabalho e commodities são parte da “condição humana” na qual nós ativamente construímos nossas vidas, e o corolário de violência e xenofobia são o legado de nossa preocupante modernidade1.
A pós-independência na África é um espaço de ambivalência, em que as aspirações de seu povo vão, frequentemente, em oposição a seus líderes e às influências externas. Sua riqueza é aleijada pelo controle financeiro ocidental que visa uso próprio dos recursos do continente. Nos últimos anos, o rápido crescimento da influência econômica da China sobre a África se tornou mais um aviso do novo agente fomentado pela globalização e da resultante expansão política e econômica. Ainda não há indícios de uma mudança, onde os tentáculos dessas influências alcançam cada vez mais áreas afetadas por conflitos e governos fracos. Neste conflito terreno, nós devemos carregar conosco as palavras de Walter Benjamin “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de emergência’ em que nós vivemos não é uma exceção, mas sim uma regra.”2 Enquanto a história e o presente se desdobram intrincadas e separadamente, a proposta de abandono do pós-colonialismo vem como um aviso de que devemos remodelar nossas ferramentas críticas e analíticas em função das realidades conflituosas de nossa constelação pós-colonial, em que se negocia a existência em um mundo de incoerência, instabilidade e descontinuidade.
A África é um continente ainda em construção: em um processo de transição e desenvolvimento. Nos últimos anos, a proliferação de bienais em Dakar, Cidade do Cabo, Luanda e no Cairo contribuíram para o estabelecimento de novas linhas de comunicação e infraestrutura entre artistas, curadores e historiadores de arte para que possam atuar no continente. Novas energias e atividades de desenvolvimento em áreas distantes do já estabelecido circuito artístico se misturaram com a fundação de novos espaços e projetos, workshops e intervenções não estabelecidas previamente.Neste novo contexto, a produtividade cultural africana está florescendo; literatura, dança, música, teatro, belas artes e narrativas orais são expressas de novas e inventivas maneiras. Nos discursos ocidentais modernos a noção de autenticidade e pureza cultural por muito tempo assombrava a recepção e apreciação dos trabalhos artísticos advindos do continente africano. Desvinculada da multiplicidade de identidades desenvolvidas durante o colonialismo, da globalização, do pós-colonialismo e das migrações, a noção de autenticidade é baseada em um estereótipo em busca de reflexos que visam a continuidade de um passado cultural imaculado e singular.3 Desde o surgimento do pensamento crítico pós-colonial, o enquadramento primitivo foi majoritariamente substituído por noções de múltiplas identidades que estenderam o discurso da arte africana para além das fronteiras do continente, para dentro da experiência múltipla de uma comunidade africana marcada pela diáspora.
Levando em consideração a larga movimentação de pessoas para dentro e fora do continente; de áreas rurais para áreas urbanas, de espaços nacionais para outros pós-nacionais e transnacionais, o pensamento pós-colonial introduziu em nosso vocabulário teórico conceitos como hibridismo, entre espaços, criolização, subalternidades,contra-hegemonia e indeterminação, em função das constantes mudanças em nossa realidade e visando a crítica às heranças eurocêntricas e à ontologia e epistemologia ocidental.
Firmemente questionando o mito de uma subjetiva África unificada e a “ficção de autenticidade” tão fortemente enraizadas no discurso colonial, esse reordenamento tem contribuído para enfraquecer antigas alianças e nos abrirmos para a revisão de noções comumente emitidas sobre etnicismo, identidade e origem. No entanto, sem querer fixar-se sobre um imutável regime de diferença, as forças ideológicas e epistemológicas que modelam os opressivos discursos estereotipados, mitos, etc, têm mudado com o tempo, espaço, e outros sistemas discursivos.
A persistência da visão do “outro” como objeto de investigação passivo, sem voz e atemporal, predeterminado, a priori, pelo discurso, ao invés de ser considerado um sujeito auto-constituído, permanece ainda entre nós como consequência do enquadramento do discurso ocidental dos “outros”.4 As experiências vividas de hibridismo, movimento, deslocamento e exílio foram motivos importantes e produtivos no tocante ao discurso cultural e sabedoria curatorial do século XX. Porém, há o risco de escorregar para o que SaratMaharaj chamou de “espetacularização do discurso”. Ultimamente temos visto os marcantes efeitos da rotulação de artistas africanos em uma nova forma de alteridade: Aquela de um artista pós-colonial. Uma figura personificada pelo imigrante africano artista, alocado dentro do contexto ocidental, cuja identidade está em constante transição, incansável e questionador. Consequentemente estamos testemunhando uma crescente separação entre as representações da diáspora e da experiência de volta, entre a mobilidade e a imobilidade, em que artistas praticantes no continente e que permanecem confinados em condições de escassez de recursos e cujas oportunidades de alcance além da fronteira são mínimas, estão perdendo representatividade. Para artistas, muitos profundamente arraigados em contextos locais e engajados em desafios sociais, políticos e econômicos dos locais onde habitam; permanece urgente a subversão desta situação hegemônica e restritiva, seja ela local ou global. No esforço em alcançar uma pluralidade dinâmica e enriquecedora, artistas estão lutando para resistir à assimilação e assim terem suas vozes roubadas, não somente pelas tendências atuais, como também por aquelas não-tendências pós-coloniais/pós-modernas estabelecidas.5
Consequentemente permanece sendo um desafio pensar como engajar-se completamente com o presente plural, interpretar e exibir produções culturais de diferentes partes do mundo sem reduzi-las às políticas de identidade e história que aprofunda os temas em prol de demandas da perspectiva curatorial e teoria cultural.6 Isso demanda uma necessidade de perguntar-nos como podemos incluir completamente os méritos de diferença cultural formais e conceituais na prática artística e como desenvolver novos conhecimentos em torno da complexa dinâmica entre produção local e global. Assim, esse momento de despedida nos convida a analisar as estratégias teóricas e conceituais usadas para entender e criticar nosso presente e sua relação com a produção artística e conhecimento curatorial. Dando voz a que Irit Rogoff chama de “incorporar criticamente” 7, nos baseando em um entendimento e reconhecimento de nosso próprio envolvimento em cumplicidade com as mesmas condições que buscamos criticar, meu desejo é trazer a atenção à formação do nosso ponto de vista. É na maneira como olhamos “para fora” – o local epistemológico de onde nós vemos e encontramos conhecimento, que é o tema mais importante no questionamento que espero que a terceira Trienal de Guangzhou nos possibilite explorar. Dada essa finalidade, a intenção não é necessariamente encontrar respostas às perguntas que nós fazemos, enquanto curadores, juntamente com os artistas, mas sim acessar diferentes maneiras de habitar as quais nós podemos direcionar nossa percepção de dentro para fora e ver em outras localidades e modernidades espaços tão produtivos para o questionamento/produção da crítica artística.
Ao invés de utilizar os artistas e suas obras como ilustrações dessas discussões, eu fiz uma proposta a aqueles que buscam reinventar questões de cultura e agenciamento nesta era de dinamismo global. Impondo questões astutas, os artistas buscam mapear novas cartografias de nosso mundo contemporâneo e apresentar novas visões do futuro a vir. Enquanto este trabalho se compromete com desafios estéticos formais da arte contemporânea, a investigação por parte dos artistas está no campo das questões culturais, filosóficas, ideológicas, sociais e políticas de nosso tempo. Trabalhando juntamente com artistas que desenvolveram profunda sensibilidade crítica em uma recusa em adequar-se em categorias e políticas já estabelecidas, não há um consenso ou necessariamente uma similaridade entre temas entre cada posição artística. Tampouco há um contra manifesto sendo plotado; os artistas exibidos aqui se comprometem com uma multiplicidade de perspectivas que mantém as desarmonias, as tensões e contradições entre aqueles em jogo. O que mantém unida essa seleção é um comprometimento com noções de tradução, desejo, ficção, fantasia, simulacros, utopia, e em formar novas rotas de envolvimento em um sistema global de intercâmbio de ideias, visões e influências políticas e ideológicas. Ao unirem-se com vozes e posições subjetivas que trazem diferenças locais e internacionalismos, os artistas desta exibição nos permitem aprofundar a reflexão sobre critérios estéticos e conceituais, que hoje nos possibilita entender, lembrar e apreciar a arte.
2.
África – uma invenção carregada de múltiplos agentes e causas, não somente significando diferença absoluta e exterioridade, mas também, de muitas formas, o continente exemplifica o impenetrável, o indizível, o obscuro e desumano. Frequentemente colocam-se artistas africanos dentro de uma dupla-cegueira: ou absorvendo-os completamente no olhar ocidental como exemplos da euforia multiculturalista pós-moderna que visa uma celebração da alteridade e da comoditização; ou são negados como o que Donna Haraway chama de monstruosidade anômala do “outro inapropriado”8, já que a reivindicação de identidade que implica expectativas étnicas ou raciais são problemáticas e onerosas. No relativo ao fracasso da inteligibilidade e comunicabilidade dos artistas africanos e intelectuais na aquisição de ferramentas e poder de constituição de um discurso que articula uma voz autônoma, escritores e críticos da arte contemporânea africana se voltaram para a política manifestando a citada crise.9 Como artistas africanos podem desenvolver um “estar no mundo” quando as projeções acarretadas são tão profundamente poluídas, confusas, distorcidas e contrárias, tanto dos vestígios herdados do colonialismo como também do olhar ocidental normativo que se alimenta dessa mesma diferença? Como artistas africanos podem modelar uma visão que rompe com o olhar estruturado e se define, como subjetividade, como um singular plural estar-no-mundo da vida africana contemporânea? Colocando estas questões à prova, o projeto do artista e acadêmico sul-africano Thembinkosi Goniwe’s, Dialogical Encounter é baseado em diálogos on-line com artistas, curadores e intelectuais da África e além. Explorando os vibrantes debates artísticos e intelectuais que floresceram da profunda diversidade das práticas artísticas locais, o projeto de Goniwe se insere na interação entre arte e ativismo. Havia lugares onde o pós-colonialismo havia sido inicialmente impulsionado pela ética baseada no desejo de escutar o discurso do “outro”. Goniwe retoma este posicionamento no sentido de atualizar o relacionamento de diálogo como modelo para conversações cívicas, atravessando fronteiras reais e imaginárias. Seguindo os passos da pergunta significativa de Achille Mbembe de como escrever o mundo a partir da África e como escrever a África a partir do mundo,10 o desenvolvimento de um novo discurso sobre as profundas complexidades das particularidades africanas, como também seu estar-no-mundo são os pontos de partida para esta investigação. Iniciando uma plataforma de onde críticos, curadores e artistas africanos podem dialogar e tomar parte nos discursos globais e onde novas formas de representação e subjetividade podem ser articuladas, o Dialogical Encounter visa contribuir para a formação de uma nova ética nas relações globais. A sustentação do projeto está no questionamento sobre a relevância de práticas e discursos pós-coloniais e sua pronunciada despedida; O que aconteceu com a política do ativismo em prol da liberdade, democracia, paz e reconciliação no período da rápida aceleração da globalização capitalista? O que devemos fazer das implicações da velocidade e da política que impede a mobilidade de diferentes assuntos dentro do cenário cosmopolita? Que economias ou organizações representam as artes visuais para lidar com as rápidas modificações sociais, políticas e econômicas em sociedades sob o estresse do internacionalismo e do transnacionalismo?
Afastando-se da idealização do espaço de migração e multiculturalismo pós-colonial como o local privilegiado do hibridismo e reconhecendo que todas as formações culturais e identidades são igualmente fragmentadas e migrativas, o artista sul-africano Nicholas Hlobo insere sua prática artística na interseção entre cultura local e global, entre tradição e modernidade e na complexa formação de identidade do espaço de ambivalência pós-colonial. Jogando com as insinuações da linguagem de Xhosa e sua rica mitologia de provérbios e metáforas, Hlobo se vincula com questões de gênero, sexualidade, identidade e herança política e cultural. Tendo crescido como um jovem homossexual na África do Sul, onde a homossexualidade nas comunidades negras é frequentemente vista com desconforto e suspeita, considerado por muitos como uma doença trazida à África pelos europeus, as performances e intrincadas esculturas de Hlobo feitas de materiais como borracha e tubulações, elásticos, sabonete e silicone, representam uma construção normativa hetero de uma masculinidade em crise. Tomando esta crise como um espaço produtivo em que novas identidades podem ser negociadas, a prática de Hlobo reflexivamente incorpora noções de gênero e sexualidade no passado e no presente visando abrir caminho para um futuro destacado por maior aceitação. Preocupado com as implicações do fracasso em confrontar questões de sexualidade (sejam relacionadas com a AIDS ou com a homossexualidade) dentro da comunidade negra sul-africana, Hlobo questiona valores e estereótipos culturais que se tornaram aceitos como normas. De muitas maneiras, as instalações de Hlobo são jogos mentais, às vezes difíceis de decifrar para alguém de fora com pouca experiência na cultura e linguagem Xhosa. Porém, é aí que habita o poder de seu trabalho; na intrincada teia de significados de sua comunidade e além. Noções de solidariedade, ritual, abrigo, prazer e imaginação são importantes características, que efetivamente nos afastam do afro-pessimismo, servindo como uma fonte de estética nos caminhos dinâmicos em que identidade e cultura são reinventadas a cada dia. Revelando as muitas maneiras apropriadas de cultura, empréstimo e intercâmbio de ideias e influências de outras culturas e através do encontro colonial, Hlobo propõe para a temática africana uma representação que celebra e questiona as histórias e tradições que moldaram a percepção da masculinidade e identidade sexual.
Devido a grande quantidade de movimentos de refugiados, deslocados e expatriados ao redor do mundo, Edward Said se refere ao nosso mundo contemporâneo como um caracterizado por “uma condição generalizada de sem-teto”11. Neste estado de transição, noções de lugar e identidade não são mais naturalmente reconhecidas, mas sim demandas que devem ser lidas como hierarquicamente conectadas. Comprometendo-se com a memória como um espaço de produção de identidade e pertencente às sociedades pós-coloniais, a artista Cláudia Cristóvão é uma das poucas artistas portuguesas que tiveram a coragem de assumir sua relação com a África de maneiras que não somente desafiam os elos que pertencem estritamente a determinado lugar ou território, mas também revela a identidade como uma forma de reconhecimento em relação a determinada ética política e imaginação.No projeto La Voyage Imaginaire, Cristóvão se engaja com a narrativa pessoal de Auri, um homem de heranças Angolana e Portuguesa e produto contemporâneo de grandes movimentos de expatriação que remodelaram o mapa do mundo no século XX. Dividido entre memórias cinematográficas que lhe foram recontadas, além de a possibilidade de “entrar no filme” e modificar o seu final, a obra é a jornada imaginária de um homem sem um lugar fixo de chegada e de saída. Na reencenação do passado colonial de Portugal, Cristóvão refuta a correção histórica do encontro colonial da cultura portuguesa. Engajada em narrativas pessoais que são únicas, porém, genéricas em termos de uma experiência de contradição às sombras do colonialismo, Cristóvão nos conta que, de alguma maneira, contextualiza sua própria vida: A vida de uma mulher portuguesa nascida do encontro colonial em Angola. Tendo recusado fazer parte da dicotomia entre colonizador e colonizado, seu trabalho releva que tanto o “eu” quanto o “outro” são profundamente interligados e que as presumidas histórias dos “outros” são, na verdade, histórias de Portugal, da Europa no mundo moderno pós-colonial. A história da Europa é uma história de exílio e migração, de intercâmbio cultural, desenraizamentos, criolidade e oposição, intervenção, desejo e assimilação. A crise de representação da temática europeia é consequência do fracasso em remodelar a antiquada narrativa modernista de homogeneidade e exclusão.12
Outro que também navega sua existência dentro deste espaço de ambivalência é o artista parisiense/camaronense Barthélémy Toguo que estrategicamente usa seu talento e graça justapostos com provocativas representações de uma realidade muitas vezes cruel de nossa constelação pós-colonial. Apresentando-se como um representante da diáspora em um mundo de contradições, cumplicidade e complexidade, Toguo questiona a política pós-colonial e economia física da globalização atual e seus efeitos sobre a condição humana. Em sua instalação Lawless Zones 2, Toguo reproduz os efeitos do colonialismo em nossa sociedade contemporânea como uma de violência e, basicamente, morte. Os corpos sem vida de sua instalação são fortes lembranças das forças brutais da dominação colonial, mas a morte do sujeito pode também ser interpretada de maneira metafórica; como uma de alienação e perda. Em último caso, a instalação nos lembra que o nascimento e desenvolvimento da modernidade europeia foi de conquista e desmantelamento, cicatrizando o tecido que perdura em nossas vidas e que necessita ressurreição. Assim, o complexo desdobramento de diferentes temporalidades, do passado e presente e suas intrincadas junções podem indicar um caminho a seguir, além do pós-colonialismo. Vendo a crise do sujeito moderno como um espaço produtivo onde novos e mais complexos posicionamentos do sujeito podem ser adotados, Toguo vai de encontro aos discursos estigmatizados dos “outros” e se recusa a relações dialéticas simplistas mestre/escravo e opressor/vítima – e por isso encontramos corpos falecidos em cada lado das fronteiras de Lawless Zones.
Interpretando como visível a presença “invisível” dos sobreviventes em uma paisagem contemporânea de angústia, medo, pobreza e ansiedade, o artista nigeriano Dilomprizulike (o homem-lixo da África) volta sua atenção para a classe urbana trabalhadora da África cosmopolita. Em sua instalação The Last Flight, encena o corpo e o sujeito contemporâneo. Usando materiais encontrados como lixo e recolhido das ruas e campos de obras para as esculturas (de pessoas com sonhos, esperança, medos e desejos) ele traz à vida o que foi rejeitado pela sociedade. Irradiando luz sobre a vida nas “margens”, The Last Flight é um aviso crítico dos limites desiguais da modernidade e dos desafios que encaramos pela dignidade da vida que deve ser restaurada, aonde o sofrimento ainda permanece.
Reencenado o espírito revolucionário do otimismo político da década de 1960, a instalação de Allan de Souza e Yong Soon Min, 2008 Spring times of John and Yoko: Bed-Inn traz noções de simulacro e desejo em um gracioso, porém crítico comentário de nossa sociedade consumista e fatiga em relação à coragem e transformação política. Nesta obra, a revolução mediada pela massa desafia a audiência que se deita passivamente na cama enquanto consumidores de estimuladores simulados em forma de fusão entre pornografia, política e ditados de biscoitos da sorte chineses. Assim, o espectador é trazido para dentro da obra de arte; seduzido, entretido e aliviado pela urgência de uma ação política enquanto são acalmados pelos ditados de sorte prevendo um futuro brilhante. Como a arte crítica talvez tenha ultrapassado seu modo mais radical, a obra de Souza e Min transpassam os limites da crítica em prol de um olhar de receptividade da audiência, convidando-a a experienciar e questionar seu próprio “posicionamento humano”.
O The Benin Project (2207) do artista suíço/inglês Uriel Orlow inclui uma vídeo-instalação com sete telas que explora a recuperação da tradição e seu confronto com a modernidade na cidade de Benin, na Nigéria, nos dias atuais. Entre os diferentes componentes de seu trabalho há uma intrincada teia de relações que é criada para explorar as diferentes facetas e abordagens em que o artista baseou-se em sua investigação; a exploração do artista como um pesquisador, da prática tradicional cara-a-cara da modernidade, como também a história e deslocamento bronzes de Benin, agora apresentados em mais de 500 coleções privadas e públicas ao redor do mundo. Trabalhando com noções de memória coletiva e restituição, o projeto de Orlow é uma mediação entre o contingente de relações entre diferentes temporalidades e suas interseções com a geografia, história e cultura – revelando-se intricadamente ligados a uma teia complexa de narrativas e relações. Tomando como ponto de partida a Expedição Punitiva Britânica de 1897 (na qual o exército britânico invadiu, destruiu e saqueou o antigo Reino Africano de Benin) Orlow rastreia o destino dos Bronzes de Benin através do espaço geográfico e tempo histórico. Porém, entrando em lugares e culturas diferentes e moldados por um histórico de saques coloniais e exploração, Orlow, um africano do Oeste, se torna um “outro”, um estranho – um visitante. No vídeo The Visitor, Orlow reflete seu próprio papel enquanto artista e pesquisador, sustentando uma prática auto-reflexiva em que o artista interroga suas próprias pressuposições, identidades contingentes e história – formando tanto uma abordagem desconstrutiva quanto reconstrutiva às práticas visuais. No The Benin Project, a arte visual consequentemente se torna um meio que dá expressão às ambiguidades que influenciam o modo que o artista percebe a si mesmo, e como as pessoas o recebem em seus mundos.
Empregando humor e graça de maneira sutil, porém, de uma subversão crítica, o projeto do artista angolano Kiluanji Kia Henda, Icarus 13, é baseado no registro da fantástica jornada de Icarus 13, a primeira espaçonave africana a alcançar o sol. O nome da espaçonave é emprestado da história de Ícaro, o jovem que escapa do aprisionamento do Rei Minos, mas é tomado pelo sentimento sublime de voar. O corajoso Ícaro voa até muito perto do sol, onde derretem suas frágeis asas de cera, levando-o a uma morte precoce. Utilizando estruturas arquitetônicas, monumentos e edifícios da era colonial portuguesa e da presença russa em Angola durante e depois da Guerra Fria, Kiluanji divertidamente brinca com noções de utopia e direciona o fracasso final para a bem-sucedida jornada de Icarus 13. Inspirado em uma piada, primeiramente contada por Samora Machel, o primeiro presidente do Moçambique, que sugeriu uma viagem espacial africana ao sol, uma jornada somente possível pela noite, quando o sol estava frio, Kiluanji brinca com estereótipos africanos e a noção utópica da expansão colonial europeia e da suposta modernidade. Posicionando-se como um brincalhão polimórfico13, Kiluanji usa ficção, ironia e humor como ferramentas críticas objetivando produzir um deslocamento de noções e significados usualmente cristalizados. Assim como o presidente Machel, Kiluanji toma os estereótipos degradantes da África de uma maneira reflexiva. Ele se apropria deles para subverter o poder colonizador, rir deles até reduzir seus efeitos nocivos e desativa-los de seus poderes controladores. Com essa finalidade ele se apropria dos agora deteriorados remanescente arquitetônicos da conquista colonial e da política da Guerra Fria. Trazendo de volta as provas descartadas dos discursos de poder e revelando a maneira como operamos em um mundo de “ficções”, Kiluanji abre caminho para o “evento” inesperado nos deixando surpresos e mortos de rir. Consequentemente o projeto Icarus 13 nos possibilita reconhecer nossos habituais modos de pensar e infiltra uma linguagem hegemônica que torna a alteridade significativa e efetivamente abre espaço para uma mudança na relação entre o eu e o outro.
Retratado na literatura crítica como “pós-humano”, e artista por excelência, o sul africano Conrad Botes tem sua imaginação incrustada dos males do apartheid, e sua obsessão com poder e repressão. Na pintura Noir Christi, Botes retrata Cristo descendo da cruz que carregara seu corpo atormentado. Rodeando-o, há uma congregação de pessoas que se reúnem para chorar por sua perda. Porém, em seus braços existe um estereótipo da temática racista negra. Caído, assim como Cristo da cruz, o estereótipo racial sofreu uma morte violenta e agora chora pelos mesmos sujeitos brancos que o trouxeram a vida estimaram sua sobrevivência. Relembrando a inserção dos missionários na África e a missão civilizatória dos “selvagens” negros, Botes revela uma sociedade em crise em que a religião é irrelevante; a violência é desejada, o sadismo institucionalizado e o triunfo individual da crise existencial.14
Entrando no espaço da expressão visceral, estética e tátil, a bela e intricada instalação corte de papel de Mary Evans é formada por uma mistura de estampas, inspirada por sua mudança pessoal da Nigéria para o Reino Unido, como também ornamentos de porcelana chinesa.
Em meio às justaposições diferentes e as misturas de formas culturais e expressões estéticas encontradas em seu ambiente natural, Evan traz a atenção aos meios multidirecionais que influenciam e formam migrações. Baseado em uma mistura de adaptação, negociação, apropriação e resistência; influências são desenvolvidas tão ativamente recíprocas e transformativas. Reconhecendo o a natureza porosa e incompleta dos limites que promoveram confrontos mutuamente constituídos entre as pessoas ao redor do mundo, Evan trabalha com noções de memória, desejo, alienação e pertencimento. A construção em forma de labirinto que faz parte do trabalho de Evans e que dá estrutura aos recortes de papel me lembra da maneira como buscamos em nossa vida diária por uma infinidade de informação e códigos sociais e culturais. Nos sinuosos corredores do labirinto, os visitantes são restringidos por espaço, porém, acolhidos pela experiência das estampas, inspirados por uma estética de diferenças locais, como também referências que são de alcance global. Em outro nível, a fusão da forma, artes de ofício e as belas artes, decoração e ornamentação operam para uma mudança na percepção, já que historicamente, as artes de ofício, especialmente na África colonial, eram vistas como uma forma repreensível da arte. Fascinada pela beleza complexa e o poder narrativo das estampas, os trabalhos de arte feitos à mão de Evans recontextualizam as imagens da experiência diária e ilumina as raízes imperiais da nossa sociedade moderna.
Na instalação multimídia Porcelana de China / My Mother Told I Am Chinese, a artista cubana/africana Maria Magdalena Compos-Pons, em colaboração com Neil Leonard, investiga a interseção histórica entre a cultura africana, chinesa e europeia no Caribe. Diante da abolição do trabalho escravo em Cuba, grandes populações de chineses foram incorporadas à força de trabalho cubano e integradas à seu novo lar por um processo de creolização. Nos dias atuais, à luz do acelerado envolvimento da China na África, uma nova dinâmica se desenvolveu que se coloca em contraste radical com as interseções anteriores da China no Caribe. Tomando estas complexas transações e justaposições como entradas, Compos-Pons investiga, não apenas as complexa transações de sua própria herança familiar (quando criança foi contada que sua família tinha uma linhagem chinesa) como também os caminhos complexos e dinâmicos que as culturas e histórias viajaram e se modificaram na era da globalização. Embora as histórias sejam cheias de complexidade, Compos-Pons não teme abrir espaço para desejo e imaginação, através de uma mistura de memórias, narrativas orais, traçados históricos, mitos e símbolos.
Na instalação do artista benin Georges Adeagbo, a cidade se torna o arquivo e Adéagbo o arqueólogo escavando traços do dia-a-dia da vida humana. A fusão das representações midiáticas culturais e políticas da inserção chinesa a África como um todo, e em Benin em particular, mescladas a objetos encontrados em sua cidade natal Cotonou em Benin; em mercados de pulga, sebos, nas ruas e em lojas de antiguidades, podem ser vistas como um mapa mental autobiográfico do processo de translação cultural. A instalação forma uma sinfonia de diferenças: um arquivo de referências interculturais e intertextuais que dispões cada elemento em movimento e a “tradução” somente não consegue se forcar em apenas um elemento que possibilite uma interpretação dominante. Os elementos são trazidos de seus contextos originais; mancando uma fusão que configura os elementos de maneira que não podem mais ser revertidas a seus contextos originais: não mais “autênticos”, eles se tornam irreversivelmente traduzidos. Assim, o processo de tradução é revelado como não sendo simplesmente um cruzamento de significados, de um lugar ao outro, mas uma contínua produção de diferença, um estado de ser e tornar a ser. O projeto de Adeagbo é pioneiro em mostrar o “estar-no-mundo”, o viver dentro do mundo em meio aos outros. “A arte, como um todo, é uma maneira de conversar, uma maneira de fazer, uma maneira de andar, uma maneira de viver em meio aos outros.”15 Ele cria um espaço passível de intervenção de tradução, que tira vantagem da estratégia de deslocamento, transformação e re-nascimento, introduzindo a noção ética e estética e Walter Benjamin de “renovação da vida”. Assim como Benjamin, o projeto de Adéagbo é o inspirado flâneur que habita as cidades cosmopolitas que visita através da descoberta de livros e objetos antigos “Memórias das cidades nas quais eu encontrei muitas coisas: Riga, Nápoles, Munique, Danzig, Moscou, Florência, Basel, Paris… memórias dos quartos aonde esses livros foram abrigados…”16 Assim como Benjamin, nos revela a profunda sabedoria que para um colecionador “a aquisição de um livro antigo é o seu renascimento.”17 A memória histórica e a história contemporânea é para Adéagbo um meio material a ser cortado e editado, restaurado e re-emoldurado para tornar visíveis as operações discursivas de representação. Adéagbo é o re-colecionador e o tradutor: o portador de uma ordem de relações. Neste processo, Adéagbo deixa uma impressão digital autobiográfica através das múltiplas narrativas presentes na instalação – para o processo de re-imaginação e sentido das histórias que moldaram seu continente, e também a busca de seu próprio sentido individual.
Dividida entre os artistas está a busca em revisar, subverter e desafiar os limites da política enlatada e trazer as ideias pré-concebidas sobre a homogeneidade cultural à ruína. Não apenas revelando a idiossincrasias das abordagens pessoais dos artistas e suas relações com as localidades em movimento de onde falam, mas dando expressão às maneiras como cada indivíduo carrega a pluralidade de existências dentro de si, o ser singular plural dito pelo filósofo Jean-Luc Nancy não é mais uma utopia, mas sim uma realidade. Trazendo os artistas para dialogarem uns com os outros e com a multidão de artistas presentes na Terceira Trienal de Guangzhou, um espaço é aberto para viajar de maneira que mantenhamos as possibilidades políticas em movimento para um futuro mais sincronizado à frente.
Eu gostaria de estender minha gratidão aos meus colegas e queridos amigos Vuyile Voyiya,Thembinkosi Goniwe e Bhaskar Mukhopadhyay por suas contribuições valiosas nos diferentes estágios de produção deste artigo. Durante o processo de pesquisa eu também tive o apoio de outros curadores da área; Sharlene Khan, Kwezi Gule e Barbara Murray, que compartilharam seus contatos e ideias, pelas quais sou muito grato. Por fim, gostaria de agradecer o time de artistas e curadores da Terceira Trienal de Guangzhou; Sarat Maharj, Gao Shiming e Chag Tsong Zung que me convidaram para fazer parte deste excitante processo.
Terceira Metade é uma programação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com a curadoria de Marta Mestre e Luiz Camillo Osorio, e que se desenha no espaço geográfico e mental do Atlântico, em especial na triangulação Brasil, países africanos e Portugal.
- 1. OkwuiEnwezor, ‘Travel Notes: Living, Working and Travelling in a Restless World’, Trade Routs: History and Geography 2 Bienal de Joanesburgo, 1997
- 2. Walter Benjamin, Illuminations, pg. 248
- 3. OkwuiEnwezor, ‘The Production of Social Space as Artwork’, A Fiction of Authenticity: Contemporary Africa Abroad, 2003, pg. 58
- 4. Anthony Downey, ‘Curating Africa, “Arica Remix and the Categorical Dilemma’, Wasafiri, edição 46, 2005, pg. 48
- 5. Gerardo Mosquera, ‘From’, Documenta 11_3: Créolité andCreolization, 2001, pg. 146
- 6. Anthony Downey, ‘Belatedness All Over Again, The African Pavilion at the 52nd Venice Biennial’, Terceiro Texto, Vol.21, edição 6, novembro, 2007, pg. 782
- 7. IritRogoff, ‘Smuggling’ An Embodied Criticality, 2006
- 8. Donna Haraway, ‘The Promise of Monsters: A Regenerative Politics for Inappropriate/d Others’, Cultural
- 9. Achille Mbembe, ‘Figures of the Subject in Times of Crisis’, Documenta II, Platform 4, Under Siege: Four African Cities, Cornelia Klinger ‘The Subject of Politics – The Politics of the Subject’, Documenta II, Platform 1, Democracy Unrealized, Okwui Enwezor ‘The Production of Social Space as Artworks’, A Fiction of Authenticity: Contemporary African Abroad, para mencionar alguns.
- 10. AchilleMbembe and Sarah Nuttall, ‘Writing the World from an African Metropolis’, Public Culture 16, 2004, pg. 348
- 11. Edward Said, Orientalism, 1979, pg. 18
- 12. Jan‐Erik Lundstrom, BarthélémyToguo: The Sick Opera, Paris‐Musées: Palais de Tokyo, 2004
- 13. O brincalhão, originalmente ‘trickster’como intervenção artística foi desenvolvida por Jean Fisher no artigo ‘Towards a Meta ethics of Shit’, Complex Entanglements, (edt) Nikos Papastergiadis, 2003
- 14. Conrad Botes, ArtPrint SA
- 15. Edt. Silvia Eiblamayr, Georges Adéagbo: Archaeology of Motivations, Re writing History, 2001, pg.65
- 16. Walter Benjamin, ‘Unpacking My Library’, Illuminations, pg.68
- 17. Ibid, pg.63