Teresa Coutinho: "É difícil ser mulher e não ter sentido já discriminação"
Teresa Coutinho é a autora e encenadora de O Eterno Debate. Também é atriz, amante de poesia e lutadora - pela igualdade e pelos direitos. Das mulheres e não só.
E se o mundo fosse ao contrário? Se em vez de serem os homens a dominar o discurso, fossem as mulheres? Se num debate televisivo o normal fosse ter um painel maioritariamente feminino? E se, ao mesmo tempo que pregam as maravilhas da pluralidade, as mulheres fossem tratando o único homem na mesa com condescendência? E se, em vez de poder dizer o que pensa e ser ouvido, ele fosse constantemente interrompido e ignorado, elogiado pela roupa que traz e criticado pela maneira como fala? Esta é a proposta de O Eterno Debate: trocar os papéis para pôr em evidência a discriminação de género que está presente em tanto daquilo que dizemos e fazemos.
A peça nasceu em 2018 para a rubrica “A Peça Que Faltava”, da RTP2. “Pensei logo que queria usar essa ferramenta - a televisão - e brincar com o espectador, criando um debate televisivo que pudesse parecer verdadeiro. Isso permitiria criar uma realidade distópica em que, de repente, os dominantes passam a ser outros”, conta a autora e encenadora Teresa Coutinho. Claro que o espetáculo usa o humor para sublinhar a situação: “É nesse lugar do absurdo, quando esticamos a realidade e as pessoas acreditam que aquilo não é sobre elas, mas na verdade é, e então é como se lhes tirássemos o tapete, e percebem que estão a ver-se ao espelho, a rir de si próprias.”
Dois anos depois, O Eterno Debate chega ao palco, numa versão ainda mais crítica. “Senti que era preciso ir um bocadinho mais longe”, diz a autora. “Como digo no texto: não se pode estar sempre a falar dos progressos que se fizeram até agora, temos é de pensar no que falta fazer.” Teresa Coutinho sabe bem do que fala. “É muito difícil ser-se mulher e não se ter sentido a discriminação, de alguma forma”, afirma. “Esta é uma conversa que está na ordem do dia porque nós - todos nós, não só as mulheres, mas toda a gente que tem algum interesse na democracia e na igualdade - não podemos dar nada por assegurado. Vivemos numa altura em que todas estas coisas, que nos parecem ter avançado, estão tão ameaçadas.”
É importante falar da discriminação de género, diz, como de todas as outras discriminações: “E, mais do que isso, é importante agir sobre elas, da escala mais micro à maior, cada um, na sua profissão, seja o que for, todos nós temos um papel na mudança destes paradigmas que são muito antigos, estão muito enraizados. Nós respondemos a um sistema que está muito bem montado e no qual somos, muitas das vezes, peões. Deixar de ser peão e passar a ser agente, usar o livre-arbítrio, pensar por si próprio, pela sua cabeça, nem sempre é fácil.”
Dos poemas no bar aos grandes palcos
Teresa Coutinho tem 32 anos, é atriz e criadora e se há coisa que podemos dizer é que pensa pela sua própria cabeça. Cresceu no Porto entre livros, filmes e espetáculos, numa família que valorizava a arte e onde se discutia tudo. Em miúda, tinha “uma adoração por cinema. Fazia cenas de filmes de que gostava muito, e tinha paixões loucas por atrizes e por atores que admirava”. O teatro surgiu através de uma professora da Escola Francesa. “Eu pensava que não conseguia porque tinha imensa vergonha, era muito tímida.” Mas, afinal, gostou tanto que, depois, criou um grupo amador com os colegas do liceu. Chamava-se A Ver Cenas, ensaiavam na paróquia de Leça e faziam espetáculos “com muita seriedade”. O seu primeiro papel foi como a viúva de O Urso, de Tchkehov. “Nesse momento, percebi que adorava, que quando não estava na escola o que eu mais queria fazer era estar a fazer teatro.”
Apesar disso, na altura de escolher um curso universitário, hesitou. Esteve dois anos a estudar jornalismo e foi “muito infeliz”. “Percebi que não estava no sítio certo e fui às escondidas fazer as provas para a ESMAE. Só quando entrei é que disse em casa.”
A partir daí, não mais parou. Mudou-se para a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa. E depois foi fazendo de tudo um pouco: foi atriz, assistente de encenação, fez pesquisa e assistência para cinema, produção. “Quando se é freelancer, faz-se o percurso ao serviço das nossas convicções”, explica. “Tento trabalhar sobretudo com pessoas em quem confio, cujos princípios são parecidos com os meus, com um olhar artístico que me interessa.”
Também desde muito cedo sentiu vontade de criar os seus próprios espetáculos. Mesmo errando, queria correr esse risco. Queria escrever textos para o palco, imaginar como os poderia pôr em cena. Interpretar tornou-se apenas uma parte do trabalho: “O que me fascina no teatro é a possibilidade de criarmos uma realidade alternativa durante um período de tempo, com as pessoas que se sentam ali, em que o espectador é de facto transportado para essa realidade. E também a questão de ser presencial, de ser uma troca sem intermediários: saber que os atores e os espectadores estão mesmo ali e que tudo pode acontecer. Há um lado perigoso nessa presença.”
Enquanto tudo isto aconteceu, acontecia também a poesia. “A poesia foi uma espécie de antecâmara do teatro”, recorda. Dos poemas lidos no quarto durante a adolescência passou para os poemas em voz alta em bares, no Porto, com destaque para as Sextas na Cave do Maria Vai com as Outras. “Era uma das formas que eu tinha de alimentar esta vontade de comunicar com os outros e de partilhar uma série de coisas que me agitavam, naquelas idades em que parece que tens o mundo inteiro a pulsar dentro de ti e não sabes como o escoar.” Ler poesia é já “um lugar onde há teatralidade, há relação com o público, há espetáculo - mas ao mesmo tempo estamos sempre ao serviço de uma folha na mão e de palavras de outros”. Teresa Coutinho gosta de ser essa “mensageira” das palavras dos poetas.
E é assim que, desde 2016, se instala todos os meses no átrio do Teatro Nacional D. Maria II para fazer o Clube dos Poetas Vivos. “A simplicidade do clube é também a sua grande arma: as pessoas sentam-se ali e durante uma hora e meia estão só a ouvir e a conversar. É um lugar para a palavra, a escuta, o encontro. Há essa hipótese de ficar a conhecer um poeta e obviamente cada poeta que ali se senta carrega consigo uma imensidão de referências e de influências, por isso falamos de outros poetas e de temas muito diferentes, há sessões que são sobre erotismo ou sobre cinema ou sobre política.”
Ação Corporativista: a entre ajuda
O Clube dos Poetas Vivos continua. Enquanto isso, no próximo ano, podemos vê-la em Solo, no Teatro do Bairro Alto, um espetáculo criado e interpretado por si. E a seguir vai voltar à Sala Estúdio do Nacional para encenar Distante, de Caryl Churchill.
Em maio passado, Teresa Coutinho criou para a Rádio 23 Milhas, de Ílhavo, um “falso programa de rádio”: “Era uma entrevista à ministra da suposta abstração e a certa altura entrava um ouvinte que falava de uma coisa que a ministra não percebia bem, que era a fominha.” Isto não surgiu por acaso. Para ela, a criação e a realidade andam geralmente de mãos dados. Durante o confinamento, foi uma das vozes mais ativas da Ação Corporativista - um grupo de entreajuda entre os profissionais das artes que estavam a passar por mais dificuldades financeiras - e que acabou por dar origem ao movimento Unidxs pelo Presente e pelo Futuro da Cultura em Portugal, que foi muito importante na forma como pressionou a tutela para que tomasse medidas que apoiassem as pessoas da cultura nesta crise.
“Deparámo-nos com situações muito graves, percebemos que havia um desamparo total destes trabalhadores. Agora ainda há muito por fazer. Estamos num momento muito, muito crítico, estamos numa retoma das atividades mas não sabemos o que temos pela frente e, na verdade, as medidas que se foram tomando ainda deixam de parte muita gente. E há uma série de promessas que foram feitas e que não foram cumpridas. Temos de continuar muito atentos”, denuncia. “Não se pode mudar o mundo de uma assentada”, diz uma das intervenientes de O Eterno Debate. Pois não, mas Teresa Coutinho irá fazendo a sua parte, dentro e fora dos palcos.
Artigo publicado originalmente no jornal Diário de Notícias a 04/10/2020