Johannes Grau (Plainpicture / Stockwerk)Ulysse from Bagdad, de Eric-Emmanuel Schmitt, foi publicado em França em 2008 (2). Porquê escrever agora sobre um livro que tem mais de uma década? Se “escrever é agir”, na expressão de Emmanuel Schmitt, ler é sem dúvida conhecer, refletir, pensar, e sobretudo não perder a memória de uma história da humanidade que se repete ao longo dos séculos. Para Saad, o protagonista de Ulysse from Bagdad, o gosto pela leitura é o gosto pela liberdade: “…Nesse dia ganhei o gosto pela literatura ou pela liberdade, o que é equivalente” (3). De uma absoluta atualidade, Ulysse from Bagdad é um texto a ler e a reler. Através da história do jovem iraquiano Saad (que, logo no início do livro, explica e evoca repetidamente o paradoxo do seu nome: “Chamo-me Saad Saad, que em árabe significa “Esperança Esperança”, e em inglês significa “Triste Triste”), e através do mito grego que o acompanha – Ulisses –, entramos no labirinto de uma das condições transversais à existência humana desde sempre: a guerra, o êxodo, a fuga, a migração e a clandestinidade. A dualidade do nome do protagonista, uma palavra com significados totalmente opostos em línguas diferentes, aparece como um presságio do estatuto ambíguo de refugiado e das condições de vida do migrante clandestino, desenraizado do seu país, procurando uma vida melhor noutro lado, na senda de um estatuto de legalidade que lhe dê a oportunidade de resgatar uma identidade perdida: “Não pertenço a nenhuma nação, nem ao país de onde fugi nem ao país que atravesso. Clandestino. Apenas clandestino. Bem-vindo em lado nenhum. Estrangeiro em toda a parte” (4). Em quinze capítulos, numa narrativa polifónica, entre a ficção e a realidade, a epopeia de Saad, contada na primeira pessoa, desenrola-se como um diário que é simultaneamente um relato pessoal, e um ensaio sobre a condição humana. No Iraque, em plena ditadura de Saddam Hussein, a vida de Saad, estável e feliz até então, transforma-se progressivamente. Tal como Ulisses, Saad lança-se numa perigosa aventura de viagem, onde são incontáveis os obstáculos com que se confronta, na terra e no mar, que o levam a tomar difíceis decisões, muitas vezes tão opostas aos seus princípios éticos e morais. Mas ao contrário do herói grego, Saad não é protegido pelos deuses nem inicia uma viagem de regresso a casa. A sua viagem é solitária, de fuga sem retorno, de derrotas sem conquistas. O seu destino está nas suas mãos, apenas guiado pelas palavras do pai defunto, que em sucessivas aparições o acompanha e aconselha. A história é contada quando Saad já se encontra na Europa, etapa final de uma viagem violenta e caótica que o levou para uma situação de discriminação, invisibilidade e exclusão, totalmente oposta à esperança que o animava quando deixou Bagdad. Entre as recordações da infância, a necessidade de partir e a terrível realidade que encontra no seu périplo até à Europa, o texto desenvolve-se como uma caminhada, um percurso com pausas de reflexão e meditação, em que Saad se questiona, se interroga sobre o que perdeu, sobre o que procura, sobre o seu destino, marcado por tantas ilusões e desilusões. Há um confronto latente e constante entre o passado e o presente, entre os tempos felizes da infância e a dura realidade que o cerca e domina. Antes de começar a descrever o seu nascimento em Bagdad e a infância feliz e promissora, Saad apresenta-nos um doloroso veredicto sobre o que é na verdade a sua vida. A viver em Soho (Londres), num quarto precário de dois metros quadrados, ele será o último membro da família, porque aos seus olhos ter descendência naquelas condições, de que tanto se envergonha, podia ser o perpetuar de uma catástrofe (5). Saad, o migrante, o clandestino, o invisível aos olhos de todos, é um universitário, filho de um bibliotecário erudito e poeta, colecionador de livros proibidos pela ditadura, apaixonado por literatura e por mitologia greco-romana. Um pai que partilha com ele o segredo dos livros da sua “Babel de bolso”, nome que dava à biblioteca clandestina que escondia na sala. Mimado pelas irmãs, pela mãe, pela família, no espaço de poucos meses o jovem Saad assiste à morte dos cunhados num ataque terrorista, ao desaparecimento da namorada num bombardeamento, à morte do pai, por erro dos americanos, à morte de três sobrinhos por doença e má nutrição. Entre o regime de Saddam Hussein, a guerra com o Koweit e o embargo americano, a repressão é de uma violência irracional, a população vê-se estrangulada nos bens mais essenciais, sem comida, sem água, sem medicamentos, sufocada pela corrupção e o medo, num país em que “todos se tornam inimigos uns dos outros”. Em poucos anos, Saad perde as suas referências, os seus amigos, o enquadramento estrutural da sua existência. A Europa da liberdade e da democracia, das cidades pacíficas e organizadas onde as pessoas vivem felizes e tranquilas, é o horizonte em que se projeta a única possibilidade de inventar um futuro e de apoiar a mãe e as irmãs. Inspirado pelo pai e pela cultura que este lhe incutiu, partilhando a paixão pela língua e literatura inglesas que o une a Leila, para Saad a Europa é Inglaterra, a terra de Agatha Christie: “O que haverá de mais apaziguador do que um mundo onde só há crimes domésticos, requintados, artisticamente encenados, realizados por criminosos inteligentes com venenos sofisticados. Para nós, aqui, que vivemos num universo de brutos, em que a força domina, é delicioso, de um encantador exotismo” (6). Do Iraque longínquo onde a ditadura e o medo suspendem qualquer possibilidade de pensar o futuro, é na travessia até à Europa da democracia, imaginada por Saad como espaço de uma existência livre e digna, que a sua viagem revela a desumanidade de um mundo de desigualdade, de injustiça, de cegueira e indiferença em relação ao outro. Embora seja um estudante universitário, em todos os países por onde passa ele é apenas mais um clandestino, sem nome, sem pátria e sem alma, cuja ilegalidade torna invisíveis as suas competências intelectuais, científicas e culturais, reduzindo-o apenas a uma força de trabalho nos setores mais desvalorizados. Como ele próprio diz “Por vezes sou Saad, a Esperança, por vezes sou Saad, o Triste, mas aos olhos da maioria não sou nada” (7). Ao longo da viagem através do Egito, da travessia até Malta, do naufrágio na costa da Sicília onde ficará um ano, da chegada a Nápoles e da ida para França até chegar a Inglaterra, o jovem estudante de direito será traficante de antiguidades, transportador de droga, acompanhante num bar egípcio, prisioneiro e náufrago, escravo de mil e um trabalhos humilhantes dos quais depende a sua sobrevivência. Os seus princípios, a sua moral, a sua identidade são estilhaçados, derrotados, anulados pelo contexto em que se encontra e pela necessidade de resistir e sobreviver (8). Apesar das vicissitudes e humilhações que atravessa, o olhar de Saad para o mundo é de uma profunda humanidade, revelada nas reflexões e questionamentos que o acompanham ao longo da viagem, nas conversas com o pai, nos vários encontros que tem, na sua capacidade de ouvir o outro, no humor que não o abandona, confrontando-nos com a capacidade de resiliência e de esperança do ser humano. Numa trajetória marcada pela indiferença de quem com ele se cruza, Saad encontra-se também com quem faz a diferença. Em Nápoles, o oficial que o interroga ajuda-o a fugir pela janela e dá-lhe instruções como passar a fronteira a pé. Em França, Max, Odile, o Dr. Schoelcher e Pauline acolhem-no e ajudam-no a tentar chegar a Inglaterra. Numa complexa teia onde se entrelaçam o pior e o melhor da condição humana, Eric-Emmanuel Schmitt apresenta-nos, através da viagem de Saad, um testemunho concreto sobre a condição do migrante, fazendo ao mesmo tempo uma análise crítica do modo como a Europa trata a questão dos migrantes clandestinos, aos quais são dadas muito poucas oportunidades. A história de Saad coloca-nos perante uma reflexão plural sobre o caráter efémero de todas as certezas (todos um dia podemos ser Saad), sobre a nossa cegueira perante o outro, sobre as injustiças sociais e sobre a importância da fraternidade na construção, provavelmente utópica, de uma sociedade estruturada na paz e na justiça.
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