Visões do império, a 1ª exposição colonial portuguesa de 1934 e alguns dos seus álbuns
As representações visuais integradas em dois dos álbuns editados logo depois da Primeira Exposição Colonial Portuguesa de 1934, realizada na cidade do Porto, permitem compreender o modo como o corpo se tornou, nessa exposição, um espaço de inscrição e de categorização racial e cultural, em nome da propaganda do regime. Os álbuns em questão são o Álbum Fotográfico com imagens do fotógrafo Domingos Alvão, e o Álbum Comemorativo com reproduções de pinturas e desenhos do pintor Eduardo Malta.
Hoje, ao folhearmos esses media, verificamos que neles existe uma “afirmação de intenções” (Parr, 2010: 8). E têm uma lógica. Ambas se encontram na sequência e continuidade das imagens, no modo como os rostos e os corpos desses homens e mulheres foram enquadrados, fotografados ou desenhados, assim como foram ordenados nas folhas dos álbuns. Por essa razão, estes álbuns não são livros vulgares. Não só permitem que questionemos hoje o olhar que lhes deu origem ou de quem os realizou, como possibilitam a discussão racial e de género. Neles foram representados os principais governantes do país e as elites organizadoras da exposição, mas também as populações das antigas colónias portuguesas. Se, por um lado, temos a retratística convencional, por outro, temos figurações do outro em imagens estereotipadas.
Tanto o director técnico da exposição, o oficial do exército Henrique Galvão (1895-1970), como os outros elementos organizativos pertencentes ao Movimento Pró-Colónias do Porto, organização que apoiaria financeiramente a exposição1, acreditavam que a publicação de imagens relacionadas com os povos das colónias constituía uma prova visual que demonstrava aos outros países coloniais europeus o esforço civilizador nos territórios ultramarinos. Nessa medida, os dois álbuns que aqui apresentamos foram, entre outros, resumos portáteis da exposição e da propaganda do regime, assim como documentos históricos para memória futura. Cumpridas essas funções, eles preenchem outras. Hoje, constituem através das suas representações visuais, as visões e o imaginário do Império.
Vejamos, em primeiro lugar, os contextos sócio-político e cultural da realização da 1ª Exposição Colonial do Porto, o ambiente em que personalidades, instituições e acontecimentos cruzaram o evento, mas que a visualização das imagens dos álbuns não revela. O confronto das imagens desses álbuns com as imagens publicadas na imprensa em geral, também é analisado neste trabalho.
(Autor, o artista galego Máximo Ramos Lopez Fonte (1880-1944). Esta representação anuncia a ideia de ‘primitivo’ que será acentuada ao longo da exposição. Fonte Hemeroteca Municipal de Lisboa)
António de Oliveira Salazar (1889-1970)2, através de diversos diplomas legislativos, entre eles o Acto Colonial, instituído em 1930, quando ele era então ministro das Finanças e ocupava interinamente a pasta das Colónias, fixou os parâmetros e os objectivos da política a seguir de forte centralismo ao limitar a autonomia financeira e administrativa das colónias e ao «renacionalizar» (Costa, 2014: 484-485) os domínios ultramarinos3. Reforçava, assim, a autoridade do poder central face à anterior política de autonomia administrativa republicana, apelando à união nacional perante o perigo externo que punha em causa o império, e defendia os interesses portugueses contra as possíveis intromissões estrangeiras. Neste sentido, um dos aspectos mais significativos do Acto Colonial, depois republicado na Constituição de 1933, era a consagração da Nação como “uma unidade orgânica e indivisível” e a reafirmação da soberania nacional sobre o império. Os domínios ultramarinos, referidos como «províncias ultramarinas» nas constituições anteriores, passavam então a designar-se de «colónias», as quais formariam no seu conjunto o Império Colonial Português.
Deste modo, o Estado Novo4 adoptaria uma concepção imperial que sublinhava a relação íntima entre “o conjunto dos territórios e populações portuguesas” tomados “como um todo – uma solidariedade”, enquanto partes já da “nossa pátria, corpo e alma de Portugal”. Tratava-se de uma intensa “nacionalização dos homens e das coisas”, que tinha como objectivo criar “uma mentalidade portuguesa entre os indígenas” (Alexandre,1995:45).
O exacerbado nacionalismo que essa mística imperial advogava tendia a reduzir o outro ao papel de receptáculo dos valores da civilização europeia de que Portugal seria o transmissor. Esta corrente ideológica que, desde finais do século XIX, se tinha tornado dominante nos meios coloniais, impregnados das ideias racistas do «darwinismo social», preconizava abertamente uma teoria da dominação colonial sobre os povos das «raças inferiores». Estes povos eram os “primitivos”, vistos próximo da animalidade e como sendo incapazes de contribuírem, por si sós, ao processo civilizacional (Alexandre, 1995: 46)
Colonizar e «civilizar» as populações indígenas eram, por conseguinte, as palavras de ordem:
É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente (Acto Colonial, Artº 2º).
Estes termos eram comuns ao mundo das exposições coloniais que ocorriam então pela Europa e que sucediam às anteriores exposições de «zoos humanos» do século XIX. Transformadas num processo mundializado, um dos primeiros da história antes mesmo do desporto, da música ou do cinema (Blanchard, 2011: 20), as exposições coloniais dos anos 30 eram concebidas para glorificar as realizações e os projectos das potências imperiais. O “selvagem” transformava-se progressivamente em “indígena”, em “artesão” ou “artista exótico”. Combinando o divertimento, a educação e a feira comercial, as aldeias itinerantes emblematizavam nas exposições coloniais o processo de cada país, o qual impunha através delas o seu próprio olhar sobre o mundo, legitimando assim as suas políticas ultramarinas e práticas de segregação (Blanchard, 2011: 41 a 43).
Em Portugal, foram várias as iniciativas expositivas durante a década de 30, os congressos e as conferências organizadas pelo regime relacionadas com as colónias portuguesas, onde se afirmava o discurso da «mística imperial» e do «ressurgimento nacional». Mas provavelmente foi a Primeira Exposição Colonial Portuguesa de 1934 aquela que definiu mais eloquentemente esse discurso (Figueiredo, 2000: 294).
A Exposição Colonial do Porto (1934)
A exposição seria inaugurada em sessão solene no Palácio da Bolsa do Porto, a 15 de Junho, abrindo as suas portas no dia seguinte nos jardins do Palácio de Cristal, transformado então em Palácio das Colónias5. Para a exposição, que durou três meses e meio, foram erguidos cerca de quatrocentos pavilhões, montados em cinco meses (Matos, 2006:189). Um dos acontecimentos mais simbólicos que marcou o seu encerramento foi a realização do cortejo alegórico. Esse cortejo, que integrou dezenas de carros alusivos, centenas de figurantes históricos e as populações trazidas das regiões metropolitanas e coloniais, bem como espécimes animais, percorreu as ruas da cidade desde a Foz do Rio Douro até aos Jardins do Palácio de Cristal, teatralizando episódios e figuras da história dos Descobrimentos (Martins, 2012:180).
Foram ainda organizados concursos, saraus, paradas, congressos, romagens, provas desportivas e excursões. Promoveu-se a deslocação de grupos e de pequenas comunidades de todos os pontos do país como escolas, orfanatos, quartéis, institutos e sindicatos corporativos. A CP (Caminhos-de-Ferro Portugueses) organizou mesmo uma “Grande Excursão Nacional” à cidade do Porto, transportando cerca de cinco mil passageiros em 21 comboios e a Igreja católica também se mobilizou (Martins, 2012:171). De Vigo, na Galiza (Espanha) vieram jornalistas; houve visitantes estrangeiros ilustres, como o príncipe de Gales e o ministro das Colónias da Bélgica, Paul Tschoffen; ou ainda o director do jornal Le Temps, bem como outros jornalistas. No final, as estatísticas oficiosas vieram a contabilizar o movimento de entradas, entre meados de Junho e finais de Setembro, em cerca de um milhão e trezentos mil visitantes, número que serviu a propaganda da exposição no estrangeiro.
A capital nortenha e os membros do Movimento Pró-Colónias ofereceram o espaço e as condições financeiras necessárias à realização da exposição. A Agência Geral das Colónias, órgão oficial responsável pela organização do certame, editou cartazes, guias, folhetos, postais e brochuras, muitos deles profusamente ilustrados. Emitiram-se selos e realizaram-se filmes, bem como se publicaram estudos e relatórios científicos resultantes das conclusões das conferências dos congressos, nomeadamente do 1º Congresso Nacional de Antropologia das Colónias6. Foram, ainda, produzidos outros álbuns como registos celebrativos e memoriais da exposição7 documentários históricos, agrícolas, industriais, comerciais e, finalmente, de paisagens «pitorescas», de monumentos e costumes.
É verdade que todo este denodo organizativo tinha contado com a experiência em outras exposições na metrópole, em territórios coloniais e participações no estrangeiro, particularmente na Exposição Colonial de Paris, em 1931, que Henrique Galvão visitou8 enquanto representante de Portugal. No seu currículo, Galvão contava ainda com a experiência de responsável das “Feiras de Amostras Coloniais” de Luanda e de Lourenço Marques (hoje cidade de Maputo, capital de Moçambique). Os conhecimentos trazidos permitiram-lhe ensaiar e experimentar formas novas de representação etnográfica acessíveis às massas que incluíram além das múltiplas vertentes ultramarinas, imagens da variedade regional da metrópole e províncias, tornando a exposição um momento privilegiado de invenção de tradições regionais, algumas ainda hoje tidas por legítimas e que aí foram testadas (Medeiros, 2006: 283). Podemos dizer que a exposição de 1934 preparou a Exposição do Mundo Português em 1940, onde Galvão foi o responsável pela secção colonial.
(Fonte Maria do Carmo Serén)
A preocupação ideológico-propagandística colocada nos artifícios cenográficos, nos dioramas, na luminotecnia e noutras experiências visuais modernas serviam objectivos não só informativos, mas essencialmente pedagógicos de elucidação da diversidade do Império (Medeiros, 2006: 289 a 290). Por um lado, visava-se combater o desconhecimento sobre os assuntos coloniais por parte das populações da Metrópole e, por outro lado, promovia-se a educação dos portugueses letrados e daqueles que, nessa época seriam ainda, em grande número, analfabetos. Quanto melhor conhecessem os territórios ultramarinos, mais fortes e profundos seriam em teoria os laços criados e os sentimentos de pertença a uma comunidade construída e imaginada para além das fronteiras metropolitanas. Mas se passarmos do plano mítico-ideológico aos propósitos práticos os interesses económicos estão presentes, quando o ministro das colónias, Armindo Monteiro, anunciou os objectivos principais da exposição de 1934, a sua mensagem era clara: a exposição deveria promover a imagem de Portugal como potência colonizadora, no contexto internacional da época, bem como afirmar uma orientação e um programa de organização e fixação de colonos, tal como resolveria o problema dos empréstimos que iam pagando empréstimos (Monteiro, 1934). A realização da Exposição no Porto decorre desta ideia. Na verdade, situava-se no Norte o maior volume de emigração que tinha como destino o Brasil e que se pretendia reencaminhar para as colónias, sendo nessa cidade que também se efectuavam muitas das trocas de mercadorias com as colónias.
Não admira que Henrique Galvão asseverasse que a Primeira Exposição Colonial pretendia ser, antes de tudo o mais, uma «contribuição dinâmica» à «obra nacional de ressurgimento» (Galvão, 1934) do regime. Muito antes de se tornar, nos anos 609, um dissidente e oposicionista, este oficial do exército, que tinha servido em Angola entre 1927 e 1929, fora director da revista de propaganda Portugal Colonial (1931-1937) e era um especialista em assuntos coloniais. Entretanto, tornara-se um dos introdutores da literatura colonial entre nós. No seu papel de comissário geral da exposição, ele interpretava bem, nesses anos 30, o espírito do «ressurgimento».
A iniciativa que lhe fora confiada por Armindo Monteiro e à qual metera ombros procurava mostrar a colonização portuguesa em configurações várias, nas suas vertentes científicas, comercial, pedagógica e didáctica. Nesta ordem de ideias, lançara-se o Congresso de Antropologia Colonial, com variadas conferências sobre as colónias e organizou-se o Primeiro Congresso de Intercâmbio Comercial com as Colónias. Realizou-se, também, um concurso de literatura colonial, cujo segundo prémio lhe foi atribuído pelo seu livro de contos Terras do Feitiço. No cartaz, concebido por ele próprio e editado durante a exposição, onde se comparava a superfície de Portugal e do império colonial português com a superfície dos principais países da Europa, Galvão tentava demonstrar que “Portugal não é um país pequeno”10. A exposição transformava-se, assim, naquilo que tinha sido o seu objectivo: ser «a primeira lição de colonialismo dada ao povo português» (Matos citando H. Galvão, 2006:190).
O Guia Oficial do visitante, então publicado, fornece uma imagem aproximada da organização espacial e da “viagem” organizada pelos territórios do império ali simulados. A pé, podiam visitar-se stands comerciais e restaurantes, ver as cópias de monumentos célebres como o Arco dos vice-reis em Goa ou o farol da Guia de Macau, na China. Mas as atracções mais populares eram constituídas pelo “parque zoológico”, com as suas feras vivas e outras empalhadas, ou o “Luna Park”. Era possível também ir ao “teatro” ou ao “cinema” e podia mesmo tomar-se o “comboio colonial” e o “cabo aéreo” (teleférico) (Matos, 2006: 192 a 195). Nestes meios de transporte, os visitantes podiam, por exemplo, admirar as arquitecturas, as paisagens e os seus habitantes. Nos jardins do Palácio de Cristal, centenas de “indígenas” provenientes das várias colónias eram expostos aos olhares dos «civilizados», muitos dos quais eram rurais, também eles trazidos das suas aldeias, transformados em visitantes a olhar simulacros de aldeias. Para a metrópole tinham viajado 63 guineenses; 9 timorenses; 104 soldados landins de Moçambique, pertencentes à 5ª Companhia indígena de Moçambique; e bailadeiras e encantadores de serpentes da Índia e outros representantes de Angola, Cabo Verde, Timor e Macau (Figueiredo, 2000: 298). Homens, mulheres e crianças seriam alojados nas suas habitações ou aldeias “típicas”. Estas mais não eram do que encenações etnográficas cuja diversidade «racial» e de género era oferecida em espectáculo à contemplação das suas actividades diárias.
Se as Exposições Universais foram, desde o seu início, em 1851, em Inglaterra, locais privilegiados de exibição de «selvagens» por oposição aos civilizados, as Exposições Coloniais passariam a ser as da exibição de «indígenas» face aos colonizadores. Exibindo o vencido e glorificando o conquistador, ou seja, o colono, fosse ele civil ou militar, a Exposição Colonial fala de uma dominação. Nesta perspectiva, a Exposição Colonial de 1934 do Porto, ocultava evidentemente os conflitos de «raças» da realidade ultramarina (Blanchard, 2011: 206).
Um facto a realçar é o da imprensa periódica, a qual instigara, logo após a abertura da exposição, o interesse voyeurista do público ao publicar em destaque a reprodução dos postais fotográficos do fotógrafo oficial Domingos Alvão, os quais se vendiam como souvenirs (Vicente, 2013). A erotização do olhar era assim, também, a erotização do Império (Vicente, 2013). E África era ali, efectivamente, no espaço dos jardins do Palácio de Cristal do Porto, um «continente negro» em miniatura, virgem, promessa à espera de ser explorada não só pelos olhares mas por uma colonização branca masculina.
Contudo, também surge assinalada a incapacidade do público, sobretudo dos mais jovens, em extrair qualquer conhecimento da exposição. O próprio director-técnico aludiria em entrevista em 1936 que: “Vieram com ar de festa, com o mesmo espírito alegre e desenfadado com que vão ao arraial ou ao teatro, aos touros e ao foot-ball: Diziam alguns: vamos ver os pretos (…) (Martins, 2012: 165)
O facto é que o modo como se apresentaram os guineenses, na sua indumentária, parecia veicular a sua condição mais “primitiva” e “selvagem”, mostrando os naturais da Guiné como um território de pacificação relativamente recente que ainda não tinha sido suficientemente civilizado. Os vários incidentes que envolveram algumas jovens guineenses, alvo de comportamentos impróprios por parte de alguns visitantes, levou à própria intervenção do ministro Armindo Monteiro junto de Henrique Galvão (Martins, 2012: 179)
Caberia pois ao fotógrafo Domingos Alvão a exclusividade de todos os trabalhos fotográficos da Primeira Exposição Colonial Portuguesa (Figueiredo, 2000: 296). Alvão era conhecido pelos seus enquadramentos e motivos, assim como pelo aproveitamento da luz e da pose dos modelos, mas também pelos inúmeros prémios e medalhas ganhos no país e no estrangeiro. Era, em 1934, igualmente reconhecido pelo seu empenho nacionalista nas imagens fotográficas que produzia, quer dos monumentos nacionais, das paisagens ou das pessoas. O seu entendimento do «acto de fotografar» é explicitado numa entrevista que deu ao jornal O Mundo em 1913:
“Estes meus trabalhos são, por via de regra, preparados. Caminho, encontro um trecho de paisagem, lobrigo um palminho de cara agradável e fixo o tripé. Depois (…) disponho a personagem, conjugando-a o mais harmoniosamente possível com o cenário e disparo a máquina. Outras vezes são criaturas humildes, pobres e insinuantes raparigas que eu levo comigo e a quem mando colocar em atitudes próprias a troco de um salário. Ninguém calcula o esforço enorme, esgotante, arrasador (…). São horas que se gastam para uma só fotografia. (…) Estes modelos que me auxiliam são raparigas incultas, sem educação, tão rudes como rude é o seu trabalho. Conseguir delas uma expressão delicada, um olhar inteligente e vivo, um sorriso galante, a natural colocação de braços, representa quase um milagre. É preciso ter muita paciência e sobretudo muito amor à profissão. É este amor que anima os meus trabalhos (…)”. (Barrocas, 2014: 224, 225)
Destas palavras retiramos o sentido do «simulacro» (Barrocas, 2014: 224, 225) em que transforma o corpo «rude» do modelo. Um corpo que ele domestica e transforma num outro de “colocação natural” e de “olhar inteligente e vivo”. Alvão estava habituado a fotografar camponesas do Norte de Portugal, aliando as temáticas rurais ao pictorialismo das suas imagens. O seu trabalho com o fotógrafo Emílio Biel, em cuja Casa trabalhou, fê-lo certamente conhecer o registo das «cenas campestres» tanto das fototipias de O Minho e as suas Culturas, como das fotografias de temáticas populares e cunho etnográfico contidas no álbum A Arte e a Natureza em Portugal (1902) (Baptista, 2010: 195, 196). Na obra de Domingos Alvão, destaca-se essa galeria de tipos e costumes colocados na paisagem que se aproximam mais dos bilhetes-postais, ligando-se ao mundo do naturalismo do romancista Júlio Dinis (1839-1871). Não será acidental então esta continuidade do naturalismo literário e também pictórico que, nos anos 30, se vê revigorado pela propaganda e transposto para o mundo das «imagens do Império de Domingos Alvão». Tanto assim é que, nas páginas do mesmo jornal, em 1934, vemos as reportagens da Primeira Exposição Colonial do Porto correrem em paralelo à estreia com enorme sucesso d’ As Pupilas do Senhor Reitor, romance de Júlio Dinis, levado para o écran por Leitão de Barros11.
Contudo, essa forma de registar os costumes dos indígenas, embora tenha como modelo o naturalismo etnográfico dos «costumes portugueses», adquire todavia um outro ângulo. Digamos que há uma reinterpretação do naturalismo à luz da ideologia colonial. É que, como veremos, a noção de «selvagem» não está afastada, mesmo que seja adoçada pelas expressões. As imagens que Alvão apresentou produzem um discurso que veicula significados que reforçam uma posição de domínio e sujeição racial e sexual, num momento histórico crucial da história colonial portuguesa em que o Estado coloca este «novo» médium ao serviço da propaganda colonial.
O Álbum Fotográfico de Domingos Alvão
Com o seu Stand das Tílias, na Avenida da Índia, no Porto, Domingos Alvão fez as imagens diárias para o jornal privativo da Exposição. Além dessas, realizou largas centenas de fotografias que hoje se encontram no Centro Português de Fotografia da mesma cidade. Tendo sido ele o único fotógrafo da exposição, muitas dessas imagens podem ser vistas em jornais e revistas da época. Citemos, por exemplo, o Notícias Ilustrado12, as revistas Civilização13 ou a Ilustração14, onde se apresentam os retratos da seminudez das mulheres balantas e bijagós da Guiné.
A verdade é que, ao folhearmos a selecção de 101 clichés fotográficos, que constituem a série comemorativa e que encerram, por assim dizer, os temas e constituem um resumo significativo do trabalho desenvolvido para a exposição (Figueiredo, 2000: 298) verificamos que para o álbum houve um critério de sobriedade que não corresponde, no caso das imagens femininas das mulheres guineenses, à aberta sexualização do corpo que frequentemente encontramos nas revistas e jornais.
https://www.buala.org/sites/default/files/imagecache/full/2020/09/captur..." alt="O régulo Amadu Seissé.
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(Fonte Maria do Carmo Serén. A Porta do meio, a Exposição Colonial de 1934. Fotografias da casa Alvão. Porto Centro Português de Fotografia, 2001)
O Álbum Fotográfico inicia-se com duas imagens da inauguração da exposição, a primeira é a de um soldado landim, prova de um exército português multirracial, e da bandeira portuguesa erguida a flutuar. Vem a seguir a presença do Presidente da República, o General Óscar Carmona. Depois as imagens levam-nos pelos exteriores do jardim onde se destaca o Palácio das Colónias, vendo-se em primeiro plano os monumentos ao esforço colonizador português, projecto de Ponce de Castro. Existem, igualmente, muitas imagens tiradas à noite, sublinhando a luz artificial ou os aspectos da decoração de vários pavilhões e as perspectivas arquitectónicas. Sublinham-se os trechos das “Representações das Missões Religiosas do Ultramar”, bem como do Museu de Arte Indígena e da sala de esculturas de “cabeças do Benin”. É uma espécie de itinerário etnográfico que nos leva também a visitar uma aldeia de Angola ou uma casa de um colono. O que merece, contudo, destaque são as fotografias das tribos Balanta e Bijagoz da Guiné-Bissau.
Em primeiro lugar aparecem o chefe indígena, o régulo Amadú Sissé e o seu filho Abdulai, apresentados como membros dignatários das famílias indígenas, no caso de Abdulai, vestido com roupas europeias, mostrando deste modo que já foi “assimilado” e está num grau superior de civilização. Também vemos “Rosita” ou “Rosinha”, agora chamada de “mulher balanta”, a quem o fotógrafo desta vez fotografa a três quartos, sem olhar frontal e sem o intencional erguer dos braços para mais sensualmente destacar os seus seios. Trata-se de um álbum. Havia que manter algum decoro.
(Fonte Maria do Carmo Serén. A Porta do meio, a Exposição Colonial de 1934. Fotografias da casa Alvão. Porto: Centro Português de Fotografia, 2001)
(Fonte Maria do Carmo Serén. A Porta do meio a Exposição Colonial de 1934. Fotografias da Casa Alvão. Porto: Centro Português de Fotografia, 2001)
Em seguida, vemos os homens bijagós no lago do jardim dentro de uma piroga; depois vem a imagem do pequeno Augusto, a criança, considerada mascote da exposição. Existem, igualmente, fotografias das mulheres penteando-se entre si; ou o velho Quipungo de Angola e as crianças da mesma tribo, tal como os “indígenas” de Moçambique, nos seus trajes guerreiros; ou os tocadores de marimba e o escultor de marfim moçambicanos;
e, finalmente, o retrato “cabeça de velho” da Índia; os domesticadores de serpentes; os músicos e bailadeiras hindús; a orquestra de músicos da colónia de Macau; a aldeia de Timor; e fechando o álbum, inúmeras imagens do cortejo colonial percorrendo as ruas do Porto.
(A Porta do meio: a Exposição Colonial de 1934: Fotografias da casa Alvão. Porto Centro Português de Fotografia, 2001)
Oscilando entre a captação de um natural e a transformação do corpo, tornando este um objecto de atenção, observa-se nas imagens fotográficas de Alvão um modo especial de obter a pose e colocar o corpo do outro. Enquanto as mulheres de Macau ou de Timor se apresentam nas suas indumentárias e o fotógrafo prescinde dos primeiros planos, a mulher guineense apresenta-se disponibilizada visualmente. Como já referimos anteriormente, Alvão tinha de modo semelhante fotografado as camponesas minhotas, todavia, vestidas, tirando partido dos enquadramentos, sublinhando o corpo, tirando partido da pose ou das regras de composição das suas fotografias artísticas de vindimadoras do Douro ou das personagens do romance das «Pupilas»15 (Figueiredo, 2000: 298). Rosinha da Guiné será, talvez, o exemplo maior da dupla exploração das imagens produzidas, quer do corpo, quer do feminino. No álbum, ela só tem uma fotografia mas reconhecemo-la. O olhar está baixo e é grave. Diferentemente, pela imprensa as imagens são abertamente encenadas em total controle do corpo do outro (Barrocas, 2014: 493), neste caso do corpo de Rosinha.
Era aliás a nudez das africanas que atraía o elemento masculino à exposição. A verdade é que as populações indígenas e os seus corpos nús atraíram um número enorme de visitantes e talvez tenha sido a causa principal do sucesso da exposição. O Jornal de Notícias organizaria, até, um concurso para a eleição da rainha das Colónias e, durante uma semana, ofereceria nas suas páginas imagens das concorrentes, chamando à atenção para os «corpos de ébano» das «Vénus negras» (Martins, 2012:179). Poucos dias antes do encerramento da exposição, realizou-se o desfile e conheceu-se a vencedora. De seios nus onde se via uma faixa de cetim, o jurí presidido por Henrique Galvão determinou a vencedora segundo a duração dos aplausos. O título coube à filha do soba do Quipungo (Angola) aplaudida pelo público durante sete minutos. Rosinha e outra jovem foram feitas damas-de-honor. (Martins, 2012:180).
(Fonte Maria do Carmo Serén. A Porta do meio: a Exposição Colonial de 1934. Fotografias da Casa Alvão. Porto Centro Português de Fotografia, 2001.)
O Álbum Comemorativo de Eduardo Malta
Vejamos agora o Álbum Comemorativo, prefaciado por Henrique Galvão e com ilustrações do pintor Eduardo Malta (1900-1967). Antigo aluno da Escola de Belas-Artes do Porto. Malta era já em 1934 um pintor académico reconhecido. A opção tomada para este Álbum Comemorativo foi realizar uma publicação luxuosa, que compreendia também uma tradução francesa, língua que por essa época era falada nos corredores diplomáticos nacionais e estrangeiros. Percebe-se que esta publicação se destinava a ser distribuída por determinados canais e grupos sociais e políticos, provavelmente diplomatas estrangeiros, representantes e funcionários das embaixadas, governantes e políticos internacionalmente importantes, servindo talvez de cartão-de-visita e de propaganda do país e do seu Império Colonial.
Os indicadores que legitimam esta ideia são bem visíveis no papel especial cartonado, na qualidade das estampas e nas reproduções de pinturas e desenhos de Malta, sempre separados por papéis transparentes de seda. Há um extremo cuidado na selecção dos retratos e até das ilustrações desenhadas que representam as populações indígenas. Essas imagens são certamente inspiradas das poses das imagens fotográficas de Domingos Alvão, mas o elemento erótico das representações das jovens africanas é suavizado, tal como o controlo do corpo do outro, em que a nudez surge neutralizada através do desenho a grafite.
A primeira imagem deste álbum é uma representação alegórica da nação. Nas páginas seguintes, inicia-se o álbum propriamente dito, com as imagens dos dos governantes: os retratos pintados por Eduardo Malta do Presidente da República e de Salazar, como chefe do Governo, este último pintado no ano anterior; o do então Ministro das Colónias, Armindo Monteiro; um retrato desenhado de Henrique Galvão e textos da sua autoria que são apresentados na segunda parte do álbum, em tradução francesa. Retratados através de desenhos, são também alguns notáveis do Porto, aqueles que fizeram parte da Comissão Organizadora da exposição16 nomeada pelo governo, alguns pertencentes ao Movimento Pró-Colónias. Este grupo de homens retratados de um modo distinto e por vezes snob, na sua afectação de classe, aparecem como uma elite à qual incumbia desempenhar um papel de primeiro plano, pré-figurações talvez de «novos homens», capazes de assegurar o sonho mítico imperial, dos quais se destacam Henrique Galvão como mentor e ideólogo da exposição, e de António Calem, presidente da Associação Comercial do Porto e da Comissão Organizadora (Serra, 2012: 444-447).
(Fonte Álbum comemorativo da 1ª exposição Colonial Portuguesa Porto: Litografia Nacional, 1934)
As imagens do álbum oferecem uma hierarquia rigorosamente estudada. A imagem de Oliveira Salazar, apesar de vir colocada em segundo lugar pela sua posição na hierarquia do Estado, apresenta na representação de Malta a atitude do verdadeiro chefe da nação, enquanto a do Presidente da República, é o retrato quase banal de uma figura militar. É verdade que vemos representações de segundo grau, mas através delas não nos escapa a atitude representada de Salazar, o qual concentra em si o poder daquele a quem foram entregues as finanças e o «milagre administrativo». Neste retrato de Salazar, que se encontra hoje no Museu do Caramulo17, a imagem é construída como os antigos modelos da retratística clássica, espécie de retrato pintado onde assoma também uma «grandeur» do retrato de corte e de aparato, numa adaptação à retórica estado-novista onde o Chefe devia inscrever a sua acção (Serra, 2013).
Na verdade, este parece ser o único retrato de Salazar pintado do natural. Eduardo Malta era já conhecido como retratista mundano, pintor do ditador espanhol general Primo de Rivera e da sua família, com quem conviveu em Madrid, o que lhe dera reputação nesta cidade e fama internacional. O retrato de Salazar fora pintado quando este se encontrava de férias na Serra do Caramulo. O pintor conta como conseguiu, através de um amigo, convencer Salazar, que acabou por posar em onze sessões de duas a três horas. A figura eleva-se no cenário de uma paisagem onde se distingue o lugar chamado Cabeço da Neve. A Nação está ali representada simbolicamente: a serra, o arvoredo, a igrejinha, tudo o que se avista ao longe é uma nação que se estende por todo um território que não se vê mas está lá, adivinhado na lonjura, no olhar da figura e na sua pose. O Império espelha-se numa “presença” invisível para a qual o pintor procurou, como afirmaria, “uma paisagem positiva, paisagem real mas também espiritualíssima, cheia de poesia, paisagem-desdobramento da figura-retratada”. (Malta, 1938).
Neste retrato, o autor parece ter colocado todas as suas aptidões de pintor académico e o seu “realismo espiritual”, que o aproxima das estéticas pictóricas fascistas da época. Pretendia ser uma visão moral que não excluía a manipulação da realidade (Serra, 2013). A sua configuração é a imagem do poder. A capacidade expressiva de Salazar centra-se no modo como o pintor trabalhou figura e fundo e colocou o corpo do modelo e as mãos, bem como reforçou as convenções. A figura parece suspensa e crescer na paisagem. A expressão dos olhos que fixam o observador sugerem dizer que “sabe o que quer e para onde vai”18. A paisagem aparece encenada como prolongamento do seu corpo, um “corpo-nação”. E é essa figura “sem corpo”, vivendo só para a nação, que o país se habituará a ver. Um corpo dessexualizado, um padre casto, incorpóreo, cuja invisibilidade (José Gil,1995) parece querer estender-se a todos os indivíduos e talvez o tenha feito na realidade. O modelo apresenta um aspecto artificial, a plasticidade corporal é exagerada, a pintura é pretensamente espiritualizada e objectiva. Curiosamente, o pintor haveria de declarar a dificuldade que deparou ao verificar que Salazar “tem apenas duas ou três máscaras para mudar: Esconde-se muito… Os sentimentos quase não afloram. Lembra os samurais que se treinavam em pequenos para não moverem, mais tarde, qualquer músculo de cara em momentos aflitivos ou alegres. Era de boa educação no Japão não molestar os outros com sentimentos pessoais. Salazar deve pensar assim…”.
Finalmente, o álbum inclui ainda a reprodução de dois painéis que fizeram parte da exposição. São pinturas de Malta que seriam exibidos na II Exposição do Secretariado da Propaganda Nacional dirigido por António Ferro19 em 1935. Destacam-se, à frente, neste díptico, a figura principal que é a do chefe indígena, o régulo guineense Mamadu-Sissé; ao lado dele o filho e, sentada, em posição inferior, uma das suas mulheres com um bébé. Por trás estão os que representam os “indígenas” mais próximos do exotismo tropical e do estado natural: são duas jovens semi-nuas, a da esquerda será talvez a célebre Rosinha, que viria a ser eleita «Rainha da Exposição»; ao seu lado esquerdo, talvez um feiticeiro-dançarino com as suas plumas, o rosto e o corpo pintados; e finalmente um guerreiro. Podem ver-se ainda vários símbolos e acessórios. A imagem encenada cruza imaginação, exotismo tropical e mito. Os rostos dos personagens são, porém, inexpressivos (Serra, 2012: 444-447).
Mostra-se uma escala civilizacional dentro da comunidade africana que atravessa depois todas as imagens do álbum, alargando-se a outras populações numa hierarquia que coloca no topo os grupos timorense e o grupo musical de Macau com o seu director Lu-Fu. O segundo painel junta representantes dos restantes territórios coloniais, da Índia, Macau e Timor. O fundo é encenado com um céu tormentoso, ao longe vêem-se casas timorenses. É uma paisagem irreal onde se diferenciam, em primeiro plano, aquele que simbolicamente, através do vestuário e acessórios, se adivinha como detendo o mais alto grau de civilização local: vestido de ricas roupas, segurando um sabre que repousa nos joelhos. É um timorense considerado num grau superior aos africanos, talvez porque a sua organização social fosse mais complexa. De sublinhar que, para a vinda à Metrópole e para a exposição, foram escolhidas rigorosamente duas famílias de régulos timorenses, cuja selecção parece não ter sido casual, dado que o Agente Geral das Colónias tinha vivido em Timor e era casado com uma timorense (Matos, 2006: 202).
Tal como o representante de Timor, o de Macau e da Índia apresentam um ar digno, elegante e educado. Saliente-se as cores vermelhas no traje de um provável chefe hindu que tem ajoelhado, a seu lado, um outro indiano, cujo turbante é verde. As cores da bandeira portuguesa tornam-se assim presentes numa mensagem não explícita em que se afigura uma homologia entre as cores da bandeira e a nação representada, apontando para que estes povos, contrariamente aos africanos, estão mais perto da civilização europeia. Simultaneamente, pretende-se sugerir a sua união à volta da bandeira portuguesa. O Império aparece assim na sua diversidade e unidade, ao mesmo tempo que os homens diferentes na sua cultura reúnem-se sob o signo dos seus chefes que seguem a força civilizadora dos que estão à frente do Império.
Através desta produção icónica legitima-se uma imagem integradora e de ideologia assimilacionista. Contudo, percebemos que existe nestas imagens do «outro» uma diferença marcada e inalterável entre o colonizador e o colonizado. A verdade é que as exposições coloniais fixam fortemente a imagem daquilo a que se chamou de «indígena» e o discurso colonial torna-se mais explícito face à sua presença física. Não se mostra para provar que um ser é “inferior” ou “diferente”, mas para provar que ele está no caminho da “modernidade” e da “civilização”.
A exposição foi para Galvão uma oportunidade para dar a conhecer as colónias, num ambiente tão aproximado quanto possível. Esse conhecimento centrava-se no exotismo que esses habitantes apresentavam e no seu grau de desenvolvimento face aos padrões europeus, os macaenses e os timorenses mais civilizados do que os outros, os povos da Guiné e de Angola ou de Moçambique, vistos como primitivos, e, sobretudo, as mulheres.
Se observarmos o índice das estampas adquirimos mais consciência do sentido hierarquizado e segregacionista onde figuram em primeiro lugar os governantes e as elites e, por fim, as ilustrações desenhadas das populações do Império que se iria civilizar, enunciando-se numa certa ordem os nomes que identificam a origem na sua relação com as zonas geográficas.
https://www.buala.org/sites/default/files/imagecache/full/2020/09/captur..." alt="Uma jovem Quipungo e uma mulher de Timor. Fonte Álbum comemorativo da 1ª exposição Colonial Portuguesa. Porto Litografia Nacional, 1934.
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Se estes álbuns constituíram, aquando da Primeira Exposição Colonial do Porto, o suporte mediático de um esforço de propaganda governamental em relação às colónias, hoje são os testemunhos, entre muitos outros, de uma determinada linguagem imperial. Nas pinturas e desenhos que os compõem, constrói-se uma História, mistura-se o elogio do chefe e a exaltação patriótica, ao mesmo tempo que o exotismo tropical e os estereótipos raciais e sexuais transparecem nas figuras representadas dos naturais das colónias.
Na prática, o carácter etnográfico dessas representações liga-se a um determinado olhar, marcado pela afirmação da supremacia branca masculina. Se o retrato, enquanto género artístico, serviu como um instrumento de poder e de propaganda do rei ou do ditador, no caso em apreço ele foi um elemento conexo tão importante como os media onde se integram – as exposições e os álbuns. Suportes do discurso de propaganda, os álbuns tornaram-se media importantes para a investigação não só dos processos de criação imagética mas também das narrativas construídas sobre a identidade da nação. Esta encontrava no projecto imperial a sua razão de ser e até a sua sobrevivência. Considerada a colonização portuguesa como uma espécie de vocação especial e até de missão providencial, o mito do Império só poderia provocar quiméricas visões. Enfim, mergulhar nestas imagens, durante tanto tempo esquecidas, significa resgatar o passado e, também, falar de nós próprios.
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Artigo publicado na Revista Brasileira de Mídia
http://www.unicentro.br/rbhm/ed09/dossie/04.pdf
- 1. Este movimento, organizado em 1930, era apoiado pela Associação Industrial Portuense, com sede na Associação Comercial do Porto.
- 2. António de Oliveira Salazar, político, professor de Direito e Finanças da Universidade de Coimbra, chefe do Governo entre 1932 e 1968, foi o fundador e o ideólogo do Estado Novo, a mais longa ditadura da Europa ocidental no século XX (de 1933 a 1974). Depois de fazer a sua formação num Seminário, decide seguir Direito em Coimbra. Aí revela-se o doutrinador e o político católico conservador, depositário de uma missão salvífica para o país. Escreve então em jornais católicos e torna-se professor da Universidade. Em Janeiro de 1919, no último governo sidonista, após o assassínio de Sidónio Pais, o seu nome é falado para a pasta das Finanças. Entretanto, começa a escrever no jornal Novidades, defendendo as suas ideias sobre a redução das despesas públicas e o imperativo do equilíbrio orçamental. Em 1925, é um membro activo e doutrinador do Centro Católico. A seguir ao golpe militar de 28 de Maio em 1926, resolve aceitar o convite para ministro das finanças. Depois de atravessar vários golpes e derrubes do governo é de novo convidado, quando a Ditadura militar se confronta com a ruptura financeira. Salazar impõe então condições draconianas para governar o país. Essa «ditadura financeira» era o primeiro passo para a instauração de um novo regime: o Estado Novo que transformará o poder num sentido autoritário e corporativo.
- 3. Promulgado a 8 de Julho de 1930 pelo Dec. Nº 18.750, quando Oliveira Salazar era ministro interino das Colónias, o Acto Colonial é o primeiro documento de natureza constitucional do Estado Novo. Diferente das disposições do período republicano, definia objectivos e estruturava um programa defendendo opções normalmente deixadas às contingências da conjuntura política. A sua publicação esteve directamente relacionada com a eclosão de uma revolta em Angola, em que se confrontaram, entre si, altos funcionários civis e militares do território. O poder central mostrara autoridade e definira directrizes futuras. Além disso, houve razões internacionais relacionadas com as iniciativas da Sociedade das Nações tendentes a ilegalizar o trabalho forçado nas colónias. Portugal considerou ser uma ingerência ilegítima e uma ameaça velada à própria existência do império, o que levou a uma campanha de imprensa em que se apelava à união nacional contra o perigo externo. O Acto Colonial e a posterior legislação nascem neste contexto.
- 4. “Estado Novo” é a designação com que o regime institucionalizado pela Constituição de 1933 se auto-intitulava. O período cronológico do Estado Novo pode considerar-se compreendido entre a entrada em vigor, a 9 de Abril de 1933, da nova Constituição, fruto do processo político iniciado pela Ditadura Militar saída do movimento de 28 de Maio de 1926, e o outro golpe militar que, a 25 de Abril de 1974, derruba o regime vigente e põe termo à longa ditadura de cariz fascista em Portugal. De 1926 a 1933 é a fase de transição da Ditadura Militar para o Estado Novo - a Ditadura corporativa instaurada por Salazar.
- 5. A organização da exposição começou com grande antecedência relativamente à data prevista. Logo em 28 de Agosto de 1933 o governo fez publicar o Decreto nº 22.987.
- 6. O presidente da Câmara do Porto era, na altura da exposição, o portuense António Augusto Esteves Mendes Correia, principal fundador da Sociedade de Antropologia. Mendes Correia foi, também, o fundador do Museu da Universidade do Porto e das salas de Antropologia Metropolitana e de Antropologia Ultramarina e, ainda, o organizador das Missões antropológicas à Guiné e Moçambique. No Congresso, contavam-se nomes como o historiador da arte Aarão de Lacerda, o jornalista e director do Comércio do Porto, Bento Carqueja, o arqueólogo, historiador e etnógrafo, Leite de Vasconcelos, o historiador da arte e arqueólogo Vergílio Correia, o lente de Coimbra antropólogo Eusébio Tamagnini, e o médico, professor e também pintor Abel Salazar.
- 7. Contam-se ainda álbuns como O império português na primeira exposição colonial portuguesa:albúm-catálogo oficial: documentário histórico, agrícola, industrial e comercial, paisagens, monumentos e costumes ( Porto: Mário Antunes Leitão e Vitorino Coimbra, 1934) e No Rumo do Império de Henrique Galvão, ilustrado pelo pintor Carlos Carneiro (Porto: Litografia Nacional do Porto, 1934).
- 8. A representação portuguesa na Exposição Colonial de Paris de 1931 estivera a cargo de José de Figueiredo, então director do Museu de Arte Antiga, em Lisboa.
- 9. Em 1961, Henrique Galvão organizou e comandou o assalto ao paquete Santa Maria, acontecimento mediático que visou chamar à atenção mundial para o regime de Salazar e provocar uma crise política. Galvão viria a pedir asilo político ao Brasil e morreria em São Paulo em 1970.
- 10. A este respeito ver a análise do cartaz por Eduardo Cintra Torres “ Portugal não é um país pequeno”, in http://malomil.blogspot.pt/2015/02/portugal-nao-e-um-pais-pequeno.html
- 11. Notícias Ilustrado, Lisboa: nº 356, 07.04.1934, pp.12,13.
- 12. Notícias Ilustrado, Lisboa: nº 310, 20 Maio de 1934; Nº 312, 3 Junho de 1934; Nº 313, 10 Junho de 1934; Nº 317, 8 Julho de 1934; Nº 318, 15 Julho de 1934.
- 13. Civilização, Lisboa: nº 69-70, Julho-Agosto de 1934; nº 71, Outubro de 1934.
- 14. Ilustração, Lisboa: nº 205, 1 Julho de 1934.
- 15. Trata-se do romance de Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor.
- 16. António de Oliveira Calem (presidente), Manuel Caetano de Oliveira, Ricardo Spratley, Jorge de Viterbo Ferreira, estes da Sociedade Anónima da Exposição Colonial e, ainda, António Domingues de Freitas, D. António de Lemos Ferreira, Engº Francisco Xavier Esteves, Raul de Sousa Ferreira, Mimoso Moreira. Ver Álbum Comemorativo da Primeira Exposição Colonial Portuguesa. Porto: 1934.
- 17. Eduardo Malta, Retrato de Salazar, óleo s/ tela, 1933. Colecção Museu do Caramulo. Fundação Abel e João de Lacerda, Nº. inventário FAJL 332, Doado por Dr. João de Lacerda.
- 18. Célebre frase de um discurso de Salazar: “Sei o que quero e para onde vou”
- 19. António Ferro (1895-1956). Na juventude esteve ligado à geração modernista de Orpheu. Foi redactor em vários jornais e repórter internacional. Publicou inúmeras conferências e reportagens internacionais, ficando célebre pelas suas entrevistas aos principais ditadores europeus, entre eles Mussolini e Hitler, que publicou em Viagem à volta das ditaduras (1927). Seria ele o responsável pela criação do organismo de propaganda do regime e da sua formulação doutrinária, “A Política do Espírito”, depois de ter conseguido entrevistar Salazar em 1932, que o nomearia no ano seguinte, responsável pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), mais tarde designado Secretariado Nacional da Informação (SNI), à frente do qual esteve até 1949.