Areia e aprumo, Timbuktu
Timbuktu, do cineasta mauritano Abderrahmane Sissako (2014) abre com o travelling mudo de um antílope fêmea que foge nas areias do deserto e encerra com o da pequena Toya, a criança agora órfã, a correr, frontalmente, na nossa direção. Ambas as sequências enunciam o fundamento do terrorismo, que resumidamente é o domínio pelo medo, a perseguição incessante, a ameaça da morte desferida a qualquer momento.
O filme, rodado na República Islâmica da Mauritânia, numa co-produção com França, estabelece a justa distinção entre o Al-Corão, Alá e o Islamismo do oportunismo sanguinário das fações radicalizadas, mesmo que a história das civilizações sempre tenha um avesso de barbárie, como lembra Walter Benjamin. E talvez, por este motivo, o filme evoca uma das cidades culturalmente mais desenvolvidas do Mali. Em Timbuktu encontra-se sediada a prestigiada universidade corânica de Sancoré que desempenhou um papel capital na islamização da África Ocidental; e personagens como Amade Baba – um dos mais brilhantes estudantes e mestre da universidade de Sancoré, escritor, erudito e político medieval, considerado o mujjadid (a encarnação da religião) do século XVI, terminando os seus dias no exílio, em Marrocos – são presenças vivas da história do Sudão ainda hoje celebradas; além da admirável arquitetura em Timbuktu, feita de argila, que tem vindo a sofrer com o Harmatão, o vento – bruma seca, como lhe chamam em Cabo Verde - carregado de poeira e de areias do Sahara.
Timbuktu foi, durante séculos, habitada por muçulmanos, cristãos e judeus transformando-se num centro cosmopolita, cidade assente na cohabitação multicultural, exemplo do entendimento étnico e religioso.
Antes de mais, o filme de Abderrahmane Sissako examina subtilmente as relações antropológicas e religa os fenómenos entre si, expondo os nexos, os contextos, as contradições sociais, as subjetividades em que participa o fundamentalismo religioso e o fenómeno terrorista. Os jihadistas que ocupam a cidade e impõem a “xaria” - um código rígido de comportamentos e interditos à população local - sustentando todas as decisões no Islão e no poder de que se afirmam investidos por Alá, são aqui tratadas como personagens na sua individualidade, nas suas aspirações e nos seus limites. A coloração chaplinesca do jihadista que aprende a conduzir uma pickup são disso um divertido exemplo; ou, na belíssima sequência do tufo de erva entre as dunas avistado pelo mesmo jihadista encantado pelo encontro com Satima, a sublimação do desejo recalcado com uma patética rajada de metralhadora sobre o vazio da paisagem.
Timbuktu nunca escolhe a via da esquematização ou do maniqueísmo e tratando da violência armada, da humilhação de um povo ocupado pela brutalidade de uma milícia, observa sobretudo as questões transculturais das paixões, da justiça e da morte; a linhagem de sangue, o direito à terra, a propriedade, os limites da lei e a dignidade cultural; numa meditação sobre o espaço de vida que resta entre o discernimento e a selvajaria. Assim, o imã explica aos jihadistas que, na mesquita, devemos descalçar-nos e usar a cabeça; Samita lembra a Kidane que usava uma arma antes de ter uma filha; Kidane, encarcerado, quer compreender as razões do amigo de infância entretanto radicalizado, a quem reconhece pelo olhar.
Este filme sublinha particularmente a importância das mulheres nos movimentos de resistência cultural e política: a primeira vendedora de peixe que se recusa a calçar luvas e oferece a faca, estendendo os pulsos; Satima que lava os cabelos e não os cobre (“ela tem muita força interior”, lembra o aprendiz ao experimentado jihadista) como no final salta para uma mota para defender o marido condenado à morte; a feiticeira e a sua gargalhada que encarna a sábia, a pária e a maldita, em contacto com saberes de uma ordem que afronta a violência armada com o espetáculo do seu teatro e com ela negoceia para a educar (o jihadista a quem ofereceu um amuleto de trapos, achando-se só, dançará, belo, potente, os pés nús a baterem na areia… tomado de uma memória cultural anterior às armas que transporta consigo); ou, por último, a mulher sentenciada com 40 chicotadas que, na execução da sentença, enquanto chora canta. O canto, a música e a dança vão irrompendo no filme, aliás, como forças de ligação social contra os rompimentos da violência. E a extraordinária rêverie da partida de futebol com uma cabra que cruza o campo enquanto os jogadores correm atrás de uma bola imaginária - posto que como a música, o canto e a dança, o desporto é proibido pela “xária” - lembra, mais do que a mímica do jogo de ténis em Blow Up de Michaelangelo Antonioni, sobretudo do onirismo das competições desportivas em A Missa Acabou ou Habemus Papa de Nanni Moretti, na figuração da alegria dos corpos, coletivamente reencontrada, vencendo a estrita secura das regras e do compêndio ideológico.
Ao longo do filme, as figuras emergem e desaparecem nas dunas como os elementos vegetais brotam da terra ou o gado submerge nas águas do rio o que desencadeará o acidente com as redes do pescador. Será a primeira morte do filme, a de uma vaca chamada GPS, a que se seguirão outras, com uma notável economia expressiva, nas águas ou na areia, acidentais ou assassinas (como o casal condenado por envolvimento sexual fora do casamento, enterrado até à cabeça e apedrejado até à morte).
Não conheço a Mauritânia e ao Mali só o avistei da fronteira, na região de Kédougou, nos confins orientais do Senegal. Ao ver este filme, lembrei-me da vitalidade das aldeias do Senegal, da importância das crianças, da coabitação entre o humano, os animais e a antiguidade das árvores, da elegância das mulheres nas ruas e nos mercados, vestidas de panejamentos e turbantes que impressionaram Matisse, como uma aristocracia que não esqueceu o aprumo que se deve; da sabedoria que alia os vivos e os mortos e a todos integra na vida ritual da comunidade; e como sociedades na história global, estas sociedades do centro-africano guardam marcas evidentes do colonialismo europeu (francês na história do Senegal, do Mali e da Mauritânia, ligação que a economia e a língua perpetuam por via da cooperação e do tráfico de imaginários como no filme os jihadista discutem Zidane e a seleção francesa no mundial de futebol), sincretismos culturais e apropriações surpreendentes – ao nosso olhar de ocidentais – com um vibrante sentido estético e uma relação constante com a transcendência. O plano de Toya sentada nas areias do deserto, erguendo o telemóvel contra o céu e o sol, procurando - num gesto arquetípico – sinal de rede, devolve-nos às nossas próprias relações enfeitiçadas com os objetos e o mundo. E quando, no final, Toya corre para nós, devolve-nos à nossa responsabilidade.
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Texto escrito no âmbito do ciclo de cinema “25 anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e o mundo em três décadas: o fim da História que nunca chegou” com programação de Francisco Noronha, na Reitoria da Universidade do Porto entre 1 e 4 de Julho de 2021.