considerações sobre "A Costa dos Murmúrios"
Entrevista de Andreia Azevedo Soares
Quando nasceu a vontade de fazer este filme?
Li o romance da Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios, no início dos anos 90 quando ainda não pensava em realizar. O livro tocou-me por razões muito pessoais: tudo se passava em sítios que eu conhecia, num ambiente em que eu vivera, o dos militares portugueses em África e das suas famílias, durante a guerra colonial. Vivi em Moçambique entre 1965 e 1975, dos 2 aos 12 anos, na actual Maputo e depois na Beira, já que o meu pai era militar, da Força Aérea. Só voltei a Moçambique em 96 e sofri um choque ao deparar com uma sociedade destruída e tão difícil de compreender, com um povo desfeito, uma dignidade que lhe tinha sido tirada, roubada… A minha história pessoal está para sempre ligada àquela terra, que foi afinal o local da minha infância, e penso que, por isso, é difícil não querer, com toda a força, responder à pergunta “o que foi que correu tão mal nisto tudo?”. Correu mal para todos, para os africanos, para os portugueses, para todos os que sofreram com o absurdo que foi o colonialismo. Este “absurdo” marcou muitas pessoas da minha idade e fez com que muitos de nós ficássemos para sempre sem pertencer realmente a lugar nenhum. O meu percurso mais íntimo está relacionado com factos históricos, com a guerra colonial, com a revolução de 1974 em Portugal, com o regresso de África, acontecimentos que marcaram e mudaram muitas vidas. Ainda hoje há coisas que me fazem chorar imenso, sem saber porquê, como ver pessoas a fugir, imagens de refugiados, gente a ter que sair das suas terras. Deixam-me desfeita. Acho que isso tem a ver com esse período, com uma perda que não é só emocional, é geográfica também. Em Moçambique, ainda por cima, a mudança foi dramática. Queres revisitar o sítio onde colocaste fisicamente as tuas memórias mas nunca o encontras… Parece que alguma coisa da tua vida ficou para sempre escondida, nas pregas da História, e isso é um pouco angustiante. Acho que foi esta necessidade de procura, que já está presente nos meus documentários anteriores, que me fez adaptar A Costa dos Murmúrios. Percebi que aquilo que queria procurar estava ali, naquele tempo e naquele lugar.
Em que medida é que a Costa dos Murmúrios, que não é uma história tua, é uma história autobiográfica para ti?
No fundo é, mas só no sentido em são as minhas experiências pessoais, as minhas emoções e recordações – muito mais que uma lealdade cega à adaptação do livro –, que me serviram de referência para o filme. Por exemplo, agora quando vejo filme parece-me claro ser mais um filme sobre a violência do que sobre a guerra. Porque senti a guerra, e ainda a sinto, como uma espécie de violência em ricochete, uma violência em eco… O que chegava ao mundo a que eu pertencia, que era o mundo das mulheres e das crianças, era uma violência quase “doméstica”, vinda neste caso dos homens que tinham estado na guerra e que, ao voltar, exerciam essa violência sobre tudo o que os rodeava, de uma forma inconsciente. A violência sobre as mulheres era muito comum, por exemplo.
Era estava sempre latente, sentia-se imenso e era algo muito ofensivo. Outro exemplo da utilização de referências pessoais está no facto de o filme ser tão fechado, tão interior.
De facto, sempre vivi mais nas cidades, muitas vezes apenas com a minha mãe e a minha irmã e, sozinhas, não íamos propriamente passear para a savana… Fora as praias, que eram na altura o local exterior de eleição para os passeios das famílias, o resto parecia-me tudo muito interior, fechado, escuro. Era tudo muito opressivo, pois também nessa altura começaram a morrer muitos militares e, no hotel onde vivíamos, havia sempre um ambiente de morte. Lembro-me das jovens viúvas a chorarem nos quartos escuros, consoladas por outras mulheres e observadas por grupos de crianças incrédulas…
Os povos parecem ter formas diferentes de reagir aos períodos traumáticos da sua história. Os americanos, em relação ao Vietname, exploraram desde o início esse tema cinematograficamente, como uma psicanálise pública, um exorcismo nacional. Ao contrário, em Portugal, a guerra colonial sempre foi um tema escondido, abafado, ignorado pelo cinema.
Só muito recentemente esse período histórico e a relação com as ex-colónias voltou aos ecrãs, quase sempre tratado por uma geração mais nova, que consegue olhar para isso de outra forma. Porquê?
Acho que isso não se passa apenas em Portugal, os franceses sofrem exactamente do mesmo problema… Os americanos são assim, são capazes de encenar os seus dramas com grande facilidade, são pragmáticos. Mas mesmo que alguns filmes sejam interessantes, capazes de dúvida e reflexão, a maioria não reflecte sobre nada, limitando-se a expor e representar a situação. Os americanos diferem de nós porque não sentem culpa. Nós sentimo-la realmente. Não só a culpa do colonialismo, também a culpa da incompreensão. Eu própria, que me sinto bem em África, sinto que historicamente se passou algo indelével, que não há como apagar. Isso reflecte-se na incompreensão daquela sociedade, dividida até hoje entre aqueles que vivem nas cidades com um determinado nível cultural e económico e fora delas toda uma gigantesca população cujo funcionamento social e cultural nos escapa.
Para falar de África é sempre preciso, primeiro, explicar África, o que é uma pena e muito redutor. Quando queremos falar de África, tratar determinados assuntos, temos que lidar sempre com a terrível culpa de não estar a fazer justiça a nada porque estamos a falar de uma coisa que não é verdadeiramente África mas aquilo que nós conseguimos perceber de África, que é muito pouco. A única maneira de lidar com isso é sacudir essa culpa e pensar que se falarmos de sentimentos e emoções universais, as nossas hipóteses de sermos injustos são mais reduzidas…
Em Portugal, não temos grande tradição de expressão dramática nem facilidade em nos representarmos a nós próprios, talvez pelas nossas características identitárias altamente confusas. Após a revolução, a reflexão sobre o que se tinha passado a nível colectivo era: “então foste para a guerra matar o nosso irmão negro, devias era ter fugido para França…” Ora, a maior parte das pessoas que tinham combatido em África vinham de meios muito pobres, nem dinheiro tinham para comer e, provavelmente, nem sabiam para que lado era França… Esta interpretação histórica culpabilizante fez com que durante anos ninguém tenha conseguido falar sobre esse período histórico.
Agora, com o desenvolvimento cultural do país mas, principalmente, com o tempo que sara muitas feridas, começaram a surgir pessoas a falar desse tempo, não tentando propriamente reconstituir as coisas de uma forma global ou encontrar uma verdade absoluta sobre coisas, mas através de reflexões mais íntimas e emotivas. E hoje começa-se a criar uma aceitação desse imaginário colectivo. É composto por várias pequenas coisas e cada uma delas é uma verdade.
Esta história da Evita que abre os olhos e descobre um noivo que afinal é outro naquele contexto, não só ele como o mundo também é outro – a cena em que Evita chora na cama num plano de pernas para o ar, metáfora de um mundo que também está de pernas para o ar – é um filme sobre a descoberta do quê?
É sobretudo um filme sobre a violência de uma perda. A perda da Evita é sobretudo uma perda identitária, não sabe quem é, ali. O filme acabou por ser o percurso desta mulher que quer tentar perceber e vai cada vez mais e mais longe. Não se aproxima de dentro, ela vai sendo sobretudo influenciada por coisas que lhe são exteriores. E esse percurso acaba de uma forma que não é conclusiva, aliás, não queria e não gosto desse tipo de resolução, num último movimento de libertação. Não se pode dizer que a morte do Luís, no final, seja conclusiva porque ele já estava morto antes. Quando ele morre, ela diz em off “… encontraram o corpo do Alferes Luís Galex…” que é a alcunha de guerra de Luís. Ele é, para ela, alguém que tinha desaparecido há muito tempo ou que nunca lá tinha estado, aliás.
Para mim, é a coisa mais humana e lógica que existe. Talvez não haja uma solução, as coisas vão passando e depois encontram-se outras, é só mais um percurso. Essencialmente, o que achei importante era a questão do regresso à história do personagem da Evita. Para mim, a Evita é sobretudo um olho. Ela fala pouco aliás, não é activa, assiste. Queria que ela fosse uma personagem intemporal, sem características que associamos às mulheres dos anos 60, como a submissão por exemplo, podendo ser qualquer uma de nós, hoje. É uma mistura do que foi e daquilo que é hoje, ao relembrar isso. Por isso é importante que ela não se relacione verdadeiramente com nada, nem com as mulheres do Stella Maris, nem com o jornalista que pertence a mundo que ela não conhece e que até a repugna um pouco, nem com o marido que também já está longe. O ser um personagem intemporal representa também o nunca sabermos se ela está lá ou não. Há sempre uma grande dúvida sobre os factos e sobre a sua própria capacidade de os reconstituir, muito tempo depois.
O livro contém dois relatos. O primeiro é um conto curto chamado “Os Gafanhotos” e a segunda parte é A Costa dos Murmúrios, na qual acabei por me concentrar. São muito diferentes. O primeiro tem um registo quase onírico, é uma visão da história muito misteriosa, e o outro é a sua explicação, num tom mais realista. É uma revisitação do primeiro livro, de um ponto de vista actual, de alguém que está a olhar para aqueles factos à distância, a ponto de já não se reconhecer a si própria. Quando comecei a construir a linha narrativa do filme, fui obrigada a fazer uma escolha já que o tom de um e outro eram incompatíveis, caso não fosse explícito existirem duas narrações diferentes. Assim, “Os Gafanhotos” ficaram apenas na voz off da personagem de Evita, que fala com um interlocutor invisível, que se crê ser o autor da história da qual ela era a protagonista.
A guerra, vista por esta perspectiva, é também uma demonstração de como não há guerras assépticas que se passam num determinado sítio, afinal invadindo tudo em redor, contaminando toda a gente?
Claro que contaminam tudo e todos e num raio temporal muito grande. A questão da guerra é estranha para mim, porque não a vejo senão ligada à questão humana. No fundo, o que me custa mais é a infalibilidade dessa característica humana. A guerra é sempre absurda. Nessa época, apesar de tudo eram conduzidas por ideologias, hoje cada vez mais os verdadeiros interesses se tornam difíceis de identificar. Mas a natureza mais profunda da guerra parece não se despegar de nós de maneira nenhuma.
O personagem da Helena é um negativo de Evita levado às últimas consequência?
Na realidade, eles são todos os mesmos personagens. Foi sempre a minha ideia, desde o início. Tanto Evita como o seu marido, o Luís, são figuras passivas. E há dois personagens activos, Helena e Forza Leal. Luís e Evita são afinal as suas sombras e é esta última, uma sombra, que nos leva através desse percurso. Se Evita não fosse pura e simplesmente a representação de qualquer coisa, seria igual a Helena. Como personagem, Helena é exagerada, com um dramatismo intrínseco, nem sabemos bem se estará um pouco louca… Mas quando Evita olha para Helena, vê-se a si própria, vê o que não quer ser. Helena tenta mostrar a Evita a evidência das suas similitudes, tenta colar-se a ela, arrastá-la para um local sinistro… Luís e Jaime Forza Leal são também a mesma pessoa. Forza Leal é o interior de Luís, e de Luís só resta uma espécie de corpo sem alma, um recipiente vazio.
A fotografia é belíssima: o filme começa absolutamente claro, etéreo, livre, no espaço aberto do terraço, e depois vai escurecendo, pesando, fechando-se até chegar àquele cubículo, lugar de morte. Como foi o processo de trabalho, filmando em HD?
Tudo foi muito pensado e preparado, todo a evolução visual do filme, a nível de luz, dos décors, etc. Claro que numa pequena produção cheia de contingências económicas é difícil ser perfeito e manter essas premissas, mas acho que se conseguiu. A ideia foi sempre começar com um ambiente mais caloroso, mais claro, mais aberto ir parar a algo muito mais claustrofóbico. Entre o escrever, montar a produção e o filmar, este filme demorou quatro anos. Tivemos três meses de preparação antes da rodagem e sete semanas de filmagens, das quais três em Moçambique. Grande parte da preparação foi passada a falar com a Ana Vaz, responsável pela direcção de arte, e com a Lisa Hagstrand, que fez a fotografia.
A opção do HD foi determinada exclusivamente pela vontade de me libertar das restrições de película. Nunca tinha filmado em HD e a Lisa também não, por isso foi uma aprendizagem para ambas. Durante os ensaios, eu fazia a câmara e a Lisa ia iluminando tendo como referência o monitor, pois o visor da câmara é a preto e branco e, na realidade, confesso que não vê grande coisa… Depois, na altura de filmar, trocávamos de posição. Eu ficava no monitor e ela operava a câmara.
No início, pensei que o filme terminaria com Evita, após reconhecer o cadáver do marido, caminhando pela praia. Mas era necessário que o filme acabasse fechado, daí a noite, os planos de janelas. Já acabei outros filmes assim, para mim as janelas são uma imagem muito simbólica: são coisas que se passam para lá de nós e que vemos assim… é uma sombra que passa, uma luz que se acende, outra que se apaga. Sabemos que existem “outros” mas a nossa capacidade de nos aproximarmos de qualquer coisa mais íntima é limitada. Porque, afinal, a verdadeira compreensão do outro é sempre impossível.
Artigo original publicado no Mil Folhas - Público, 24.06.2002
(Dossier de imprensa, cedido pelo ciclo África é Já Ali)