Django Unchained (2012) de Quentin Tarantino
Quando Quentin Tarantino decidiu fazer explodir um cinema com Hitler e companhia lá dentro em Inglourious Basterds (Sacanas sem Lei, 2009) pelo menos três coisas se tornaram evidentes. Um: o seu gosto romântico pelo pós-modernismo e pela citação reclamava linhas de fuga. Dois: este seu acto simbólico parecia ser a ponta do iceberg no que diz respeito à construção de uma verdadeira máquina de redenção histórica para o seu cinema. Três: essa cavalgada pela história nunca poderia dispensar o cinema (como palco, mas sobretudo como estrutura de coincidência para essa dita redenção). Três anos passados e dos judeus passámos aos negros, do holocausto ipsis verbis ao holocausto da escravatura, nos períodos da Guerra Civil americana. E para aqueles que vêem em Tarantino um mero artesão do pastiche, Django Unchained (Django Libertado, 2012) parece encher as medidas, ao mesmo tempo que dá azo a que muitos o considerem um dos seus filmes mais formulares. A saber: com directa homenagem a Django (1966) de Sergio Corbucci, um western spaghetti, e com inspiração em Mandingo(1975) de Richard Fleischer, o filme transforma um escravo (Jamie Foxx) em bounty hunter e cowboy (juntamente com Christoph Waltz) em busca da sua amada. E nessa operação de transformação o que étrademark exterior de Tarantino está lá e entra pelos olhos dentro: as witty remarks, a estratégia de inversão dramática (como no final da cena com o deputy), a construção da tensão e escalada em violência, os cameos (Franco Nero, o Django de Corbucci surge numa das sequências), a junção, já dissemos, pós-moderna de registos (há óculos de sol e canções de rap nesta travessia esclavagista), acoolness das suas personagens e por aí fora.
Contudo, a citação, a homenagem, nunca deixam esconder o que realmente transporta Tarantino para um patamar elevadíssimo do cinema norte-americano. É que nessa espécie de distração estilística há uma batalha feroz a ser travada entre a história e o cinema. Spike Lee diz que não vai ver o filme, que os seus antepassados devem ser tratados com respeito e que a escravatura não deve ser assunto de western spaghetti. Por sua vez, Tarantino odeia John Ford e não lhe perdoa por ter sido um dos membros do Ku Klux Klan no épico de D. W. Griffith, The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915). Aliás, Tarantino desconstrói isso numa cena a propósito do dito Klan.
Neste circuito de ódios, no fundo todos parecem falar do mesmo: qual a melhor postura a ter ante uma ferida histórica ainda aberta? E da sua relação com um suposto fetichismo da violência o cineasta diz estar saturado. Mas isto porque percebe a sua perversidade, ou seja, a violência parece ser um escudo que ajuda a transportar a ambição histórica de Django Unchained para o terreno do “politicamente incorrecto”. Isto é, a ideia de um mau comportado tolerado pelo sistema [é o que acontece com essa espécie de distração e auto-censura de Bigelow que mascara o seu Zero Dark Thirty (00:30 a Hora Negra, 2012) com um palavroso procedimento de investigação]. Ora, Tarantino não quer isso. Quer antes aproveitar o lado fantasioso sério do cinema para exorcizar a culpa ocidental, para matar racistas e pôr negros a chicotear brancos. Porque pensa que merecem. Porque sabe que nós sempre teremos Paris, mas também sempre teremos Candyland. É isto, ou pouco mais do que isto.
E como no filme sobre os nazis, esse flashback regenerador em relação ao passado não poder ser feito a não ser no cinema. Mais uma vez estamos no centro da relação história/cinema pois não há género tão racista quanto o western. Há assim também que reabilitar a história do cinema. Tarantino fala mesmo da forma como matavam índios como zombies (mas começámos já como Griffith como sabemos). Nowestern, os seus heróis traziam consigo um endireitamento civilizador, branco, naif, até serem apanhados por técnicas de discriminação bem mais eficientes do que duas pistolas à cintura. E aí o western desapareceu na névoa dos problemas interiores dos seus anti-heróis. Este ressurgimento em Django Unchained parece assim trazer uma idade de vitalidade e inocência para a reacção ao domínio branco. E é nessa impossibilidade da missão de Tarantino que encaixa a verdadeira dimensão da violência. Como no western, como em Tarantino, ela é sempre parte do tarefa dramática (a busca da amada do herói) mas parte também da tarefa bem mais profunda de trazer até nós uma realidade feita de planícies e sangue. De atitudes nobres e selvagens. É esse o propósito da violência em Tarantino: um testemunho da história e uma marca de divertimento do seu cinema. Entre a gravidade e a leveza.
Tarantino sabe que, tal como o Dr. Schultz ensina Django a representar e a nunca sair de personagem, também ele próprio tem de construir o seu espaço para essa leveza e essa gravidade. Nesse espaço, depois de bem delimitado na sua impossibilidade (um western hoje, com um cowboy negro hoje), o realizador consegue ir por caminhos extraordinários. Extraordinariamente belos do ponto de vista da história do cinema (penso no comovente papel de Samuel Jackson) e extraordinariamente pesados do ponto de vista da irracionalidade humana (as cenas das lutas, dos cães…). E este é um caminho tortuoso e digno.
publicado originalmente em À Pala de Walsh