Meteorizações: uma leitura da Agronomia da Libertação de Amílcar Cabral
O nosso povo é as nossas montanhas
Amílcar Cabral
“Minerando” estratos históricos de há quase meio século, encontramos Amílcar Cabral na Universidade de Londres em 27 de outubro de 1971 a descrever o estado da luta armada que vinha liderando desde 1963 no país então conhecido como Guiné Portuguesa. Após oito anos de guerra anticolonial, dois terços do pequeno país da África Ocidental tinham sido libertados da ocupação portuguesa. No interior destas “zonas libertadas” espalhadas por áreas de floresta tropical, o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) criou escolas, hospitais, tribunais e armazéns do povo. Durante estes anos, Cabral circulou entre a sede do partido em Conacri, na vizinha República da Guiné, o mato da guerrilha dentro da Guiné-Bissau e a arena geopolítica internacional onde defendia e tentava desenvolver uma nova sociedade. Na conferência de Londres em 1971 descreveu as condições da luta armada na Guiné-Bissau:
Estamos numa parte plana de África […] Os manuais de guerra de guerrilhas em geral afirmam que um país tem de ter uma determinada dimensão para poder criar o que é chamado uma base e, além disso, que as montanhas são o melhor lugar para desenvolver a guerra de guerrilhas […] Obviamente não temos essas condições na Guiné, mas isso não nos impediu de iniciar a nossa luta armada de libertação […] Quanto às montanhas, decidimos que o nosso povo tinha que tomar o seu lugar, já que seria impossível desenvolver a nossa luta de outra maneira. Assim, o nosso povo é as nossas montanhas.
A sua audiência era formada por jovens estudantes britânicos, ativistas de esquerda, emigrantes e outros apoiantes do Committee for Freedom in Mozambique, Angola and Guinea (CFMAG) sediado em Londres, que se reuniram para ouvir um relato em primeira mão de uma luta anticolonial em curso na Guiné-Bissau. A metonímia de Cabral – montanhas = povo – refere-se em parte à morfologia plana que caracteriza a superfície deste terreno específico da África Ocidental, bem como à falta de uma estrutura hierárquica no movimento anticolonial. No entanto, também revela a íntima relação que Cabral mantinha com a matéria de que são formadas as montanhas, composta de solo e rocha. Enquanto que para a guerrilha do Ché Guevara em Cuba as montanhas eram um recurso que garantia segurança aos locais onde podiam estabelecer as suas bases e consolidar o seu poder, Cabral “aplana” essa estratégia para adaptá-la às suas específicas circunstâncias geopolíticas.
Na Guiné, o PAIGC conseguiu unir o povo num movimento anticolonial organizado horizontalmente que priorizava a educação e a humildade como armas da luta militante; no qual o trabalho camponês e o trabalho intelectual eram equiparados em termos de valor, em lugar de estarem sujeitos a uma valorização hierárquica. As montanhas eram o povo tornado potente, a “multitude”. Além disso, e menos metaforicamente, este modelo – olhar para as massas de militantes e ver a força estratégica potencial das montanhas – reflete a sua compreensão do mundo em termos “ecosóficos”, i.e., uma compreensão holística da ecologia. Isso leva-nos a reconhecer a dimensão menos conhecida e, muitas vezes, negligenciada da prática de Cabral como agrónomo, e de que modo a sua pesquisa sobre o solo e a erosão influenciou a sua formação política.
Este artigo faz uma leitura dos textos agronómicos de Cabral (1948 a 1960), publicados no livro Estudos Agrários de Amílcar Cabral, juntamente com os seus discursos e escritos políticos mais traduzidos e publicados. O contexto desta leitura é um engajamento contínuo com o pensamento de Cabral que incluiu a elaboração de filmes, o ativismo artístico através da digitalização do cinema militante da Guiné-Bissau, e o trabalho com cineastas guineenses como Sana na N’Hada e Flora Gomes, entre outros. Comecei a escrever notas sobre os escritos agronómicos de Cabral em 2009, quando encontrei pela primeira vez o livro Estudos Agrários de Amílcar Cabral numa livraria em segunda mão em Lisboa, acontecimento que influenciou muitos dos meus filmes e instalações, especialmente o projeto Luta ca caba inda (A luta ainda não acabou) (a partir de 2011e ainda em curso).
No pensamento de Cabral, a história geológica não está separada da história humana, o solo não é um “terreno” inerte e estático sujeito à agência humana, mas tem uma relação dinâmica com as estruturas sociais humanas, evidente nas suas diferentes respostas às formas de extrativismo colonial. Um exemplo desta inter-relação foi a seca devastadora que assolou Cabo Verde em 1941, que ceifou a vida de vinte mil pessoas, e foi testemunhada por Cabral aos dezassete anos. Segundo a sua filha Iva Cabral, esta experiência influenciou a sua decisão de tornar-se agrónomo. Enquanto no século XX a geologia era maioritariamente entendida – pelo menos no Ocidente – como o cenário estático da ação humana, o trabalho académico recente de pensadores como Dipesh Chakrabarty reconheceu que, para apreender plenamente o desenrolar da crise ambiental referida como a causa para definir uma nova época da Terra, o Antropoceno ou Capitaloceno, é necessário questionar e pôr em diálogo os conceitos de história natural e história humana. Cabral foi presciente ao dizer: “Podemos mesmo afirmar, sem receio de contradição […] que defender a Terra é o processo mais eficiente de defender a Humanidade. Como este artigo irá explorar, recorrendo a cientistas do solo anteriores que reconheceram as consequências ambientais catastróficas do colonialismo capitalista, Cabral estava à frente da sua época.
A compreensão de Cabral do solo e a erosão não é dissociável do seu projeto de luta de libertação. Os seus relatórios sobre a exploração colonial da terra e a economia do comércio, juntamente com a sua pesquisa sobre solo e erosão, revelam a sua dupla agência como cientista dos solos do Estado e “semeador” da libertação africana. Entre 1949 e 1952, enquanto trabalhava como agrónomo para o regime colonial e simultaneamente participava na formação de um movimento anticolonial clandestino, Cabral escreveu “Em Defesa da Terra I-V”. Este artigo desenvolveu uma semântica militante da recuperação dos solos que fazia parte de um projeto de libertação. No seu discurso de 1971, em Londres, Cabral afirma: “Em 1960, eu era o único agrónomo no meu país – que privilégio! – mas agora há doze agrónomos no meu país, todos eles formados durante a luta”. Cabral entendia a agronomia não apenas como uma disciplina que combinava geologia, ciência dos solos, agricultura, biologia e economia, mas como meio para adquirir conhecimentos materialistas sobre as condições de vida do povo sob o colonialismo.
A vida de Cabral tem sido extensamente explorada em biografias notáveis, que vão desde a de Patrick Chabal a obras mais recentes de António Tomás e Julião Soares Sousa. Quando jovem estudante de agronomia, Cabral realizou pesquisa em Cuba, Alentejo, uma zona plana e seca no sul de Portugal que era economicamente desvantajosa. Isto originou as suas primeiras perceções sobre a importância de ligar o conhecimento militante com a teoria. O historiador e teórico português José Neves propôs que o interesse de Cabral pela pedologia – a formação, química, morfologia e classificação do solo – foi orientado por uma “preocupação ecológica” que não se limitava a uma atenção pela “terra, a flora e a fauna, mas também pelos homens e as suas relações sociais”. Os dados científicos recolhidos por Cabral durante o seu trabalho como agrónomo primeiramente tornaram-se instrumentais nos argumentos teóricos e políticos que denunciavam a injustiça perpetrada sobre a terra pelo governo colonial e, mais tarde, iriam orientar a sua estratégia militar. O cuidado com os solos era crucial para Cabral como parte do trabalho de recuperação (dos solos e não só) necessário no projeto de reconstrução nacional no período pós-colonial. A operação de ler o “povo” como “montanhas” no contexto da extração, opressão e exploração colonial evidencia uma compreensão visionária da condição capitalocénica da superfície da Terra. Nos seus escritos agronómicos, Cabral refere-se à edafologia – do grego ἔδαφος, edaphos, ou ‘solo, e λογία (logia) – como a ciência que trata da influência do solo nos seres vivos. A lógica deste conceito – a partir do solo – e a reciprocidade que veicula estabelece as bases para os princípios a partir dos quais articulou a luta.
Conflito Lithos-Atmos
O solo é um corpo natural, independente e histórico.
Vasily Dokuchaev
A experiência de Cabral como estudante de agronomia e a sua pesquisa na região de Cuba no sul de Portugal deram-lhe uma indicação da importância de compreender o papel do solo e de o integrar numa conceção do mundo. Na sua tese de licenciatura de 1949, “O problema da erosão do solo. Contribuição para o seu estudo na região de Cuba (Alentejo)”, descreveu esta área economicamente pobre cuja terra estava a desertificar-se rapidamente durante a ditadura salazarista (1933-1974). Este trabalho de terreno permitiu-lhe desenvolver o seu interesse pelo solo e o fenómeno da sua erosão, particularmente a partir do trabalho no campo da ciência dos solos que emergiu desde meados do século dezanove através de figuras como Justus von Liebig, Ferdinand von Richthofen e especialmente Vasily Dokuchaev. No seu estudo agronómico da região do Alentejo utilizou a definição química de solo de Liebig como um laboratório para verificar as mais variadas reações químicas, a perspectiva geológica do solo de Richthofen como uma condição patológica da rocha, e a definição de solo de Dokuchaev como um corpo natural, independente e histórico. Esta ciência emergente teve um impacto sobre o pensamento político materialista, especialmente em Marx e, mais tarde, contribuiu para os argumentos anticolonialistas de Cabral que condenavam as práticas agrícolas e extrativas das potências coloniais.
Cabral salientou a importância de não definir o solo através do seu aspecto “estático-morfológico”, mas através das suas variáveis e do seu potencial relacional e dinâmico: “O ser de que se origina o solo é a rocha. Por ação de agentes naturais, esta é fragmentada e desintegrada, formando-se o que se denomina em Pedologia ‘material originário’. É a ‘meteorização’ da rocha”. Refere isto como uma “negação” relativa da rocha, em que agentes naturais destroem a sua estrutura e a negam, criando “material originário” – a matéria resultante da destruição da rocha antes de se tornar solo. Subsequentemente, uma segunda negação no processo de meteorização corresponde ao desenvolvimento do “corpo-solo” – que ele identifica como independente, natural e histórico. “Este equilíbrio é realizado através de contradições, geradoras de sucessivas transformações. Oxidações, reduções, carbonatação, dissolução, hidrólise, variações de volume, translocação de compostos, atividade micro-orgânica”. Cabral elabora numa coevidade das forças “lithos” (pedra) e “atmos” (clima), uma zona de destruição e transformação entre elementos independentes e da qual a vida é possível. A partir disso, o solo pode ser entendido como “crosta de meteorização”.
A definição de “meteorização da rocha” como a negação de uma para dar origem ao outro, revela uma procura dialética e materialista para redefinir o solo como uma zona de conflito. Cabral observa atentamente a utilidade de abraçar conflito e contradição (negação e destruição):
Há como que um antagonismo entre o clima e a rocha. Se se admitisse finalidade nos fenómenos naturais, poderia afirmar-se que essa oposição “obriga” a rocha a transformar-se “para subsistir”. […] Nem a rocha desaparece completamente, nem cessa a ação dos fatores climáticos. O que se verifica é a sua integração em nova forma de existência de negação.
Esta observação – intencionalidade nos fenómenos naturais – pode ser lida como a vontade de admitir uma espécie de agência da rocha: a rocha/solo como portadora de uma prosa, uma narrativa, o substrato onde tudo é inscrito. Isto evoca o que Chakrabarty descreve como uma “força geofísica”; isso, escreve, “é o que em parte somos na nossa existência coletiva – nem sujeito nem objeto. Uma força é a capacidade de mover coisas. É agência pura, não ontológica. Cabral lê o solo, o corpo histórico, escutando os seus processos e depois estabelecendo um paralelismo com o que estava a acontecer no povo guineense (“as montanhas”). Como foi dito antes, a meteorização – o conflito entre lithos e atmos – envolve dois elementos numa relação de contradição. Esta pulsão geomântica, um canal para ler a terra – o seu futuro inscrito nos seus passados – dá acesso a uma epistemologia da edafosfera (a camada do solo que sustenta e cria múltiplas formas de vida interligadas) que fala de como os elementos discretos do solo contêm informações valiosas para a luta de descolonização. A metonímia é que as pessoas fazem parte do solo, o solo faz parte das pessoas. Ao afirmar que o povo são as nossas montanhas, Cabral quer dizer que as próprias pessoas são o terreno da luta, em contraste com a noção de Guevara de montanhas geológicas como instrumento que oferece refúgio aos militantes. A abordagem que adota Cabral é reminiscente da operação materialista histórica que Karl Marx realiza em Das Kapital, embora alargando a análise para incluir os fenómenos ambientais como possuidores de agência. Ele sintetiza a definição de solo numa equação em que o solo é a soma de todas as propriedades e meteorizações num determinado período de tempo:
tS={f[c(t),o(t),v(t),h(t),r(t),p(t),t, …]dt
S – propriedades do solo; c – clima; o – organismos; r – topografia; p – material originário; t – tempo; s – solo” v – vegetação; h – ser humano [dt – desenvolvimento no tempo]
Isto pode ser correlacionado com a seguinte equação: o palimpsesto do solo + inscrito ao longo do tempo = história.
Erosão Colonial
Plantar é a raiz da propriedade e da guerra.
Vilém Flusser
Depois de definir o solo como um lugar de conflito, Cabral continuou com conceitos de erosão. Agindo sob as restrições do Portugal ditatorial, a sua atividade como agrónomo era subversiva – promoveu a luta de libertação desde dentro, utilizando os recursos coloniais para informar e reforçar o movimento de libertação. Cabral define erosão, o deslocamento do solo da superfície da terra por agentes naturais como a água e o vento, como um fenómeno natural que “se realiza lenta e gradualmente no seio do equilíbrio solo-vida-clima”. Este equilíbrio natural pode ser ameaçado pela erosão provocada pela intervenção humana. Os trabalhos de Cabral que documentam a perda de equilíbrio produzida pela intervenção colonial devem ser lidos no contexto de um sistema opressivo que utiliza a censura para impor o seu poder.
A situação crítica da agricultura portuguesa levou-o a estudar a edafosfera do Alentejo, com um foco específico na principal causa da sua crise – a erosão do solo. Analisou o continente colonial e interpretou a condição do esgotamento do seu solo como resultado da exploração da terra por Portugal noutros lugares:
O panorama geral alentejano reflecte nitidamente as influências do processo histórico da província […] Das viagens marítimas de descoberta resulta a criação de um império que levou a negligenciar a agricultura nacional uma vez que as riquezas da Índia eram mais atrativas do que a incerteza de cultivar a própria terra.
E = f (c, r, v, s, h)
E – erosão, f – fatores, c – clima, r – topografia, v – vegetação, s – solo, h – humano
O solo é o corpo inscrito e a erosão é a cicatriz deixada pela violência histórica.
Embora no seu trabalho agronómico oficial as referências de Cabral a Justus von Liebig digam respeito unicamente a questões relativas à química da pedra (“o solo é um laboratório para observar reações químicas”), é provável que Cabral também tenha lido as posições políticas de Liebig sobre a discussão geoeconómica do solo. Liebig foi importante para Marx na sua análise de solo e materialismo histórico, como salienta John Bellamy Foster: “quando escreveu o Capital [nos anos 1860], Marx convencera-se da natureza contraditória e insustentável da agricultura capitalista”, devido principalmente a desenvolvimentos históricos como o esgotamento da fertilidade do solo através da perda de nutrientes e à mudança no próprio trabalho de Liebig para uma crítica ecológica da agricultura capitalista. Marx sublinhou os impactos ecológicos destes desenvolvimentos: “Todo progresso na agricultura capitalista é um progresso na arte de roubar, não só o trabalhador, mas de roubar o solo; todo progresso no aumento da fertilidade do solo por um determinado tempo é um progresso em direção à ruína das fontes mais duradouras dessa fertilidade”.
Embora Cabral tivesse lido Liebig, Dokuchaev, Marx e outros, quando mais tarde perguntaram-lhe pelas suas fontes ideológicas na sua conferência na Universidade de Londres, respondeu: “Partir das realidades do próprio país para a criação de uma ideologia para a luta não implica que se tem pretensões de ser um Marx ou um Lenine ou qualquer outro grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da luta”. Foi politicamente oportuno para os líderes dos movimentos de libertação africanos enfatizarem que as suas organizações políticas eram organizações de base, e que as suas teorias eram baseadas nas experiências das suas lutas e não em teorias políticas importadas. No entanto, foram naturalmente influenciados por pensadores europeus e pan-africanos. Cabral não emula as palavras de Liebig nem as teorias de Marx, mas chega a conclusões semelhantes baseadas num conhecimento situado.
Em vez de estudar o solo africano colonizado (a sua principal preocupação), Cabral começou com as especificidades do terreno do opressor: a crise sistémica de Portugal e a sua inerente propensão para as soluções violentas. Este trabalho sobre a erosão do solo português qualificou Cabral para ser contratado como agrónomo pelo Estado colonial nas “províncias ultramarinas”. Em 1952, Cabral foi contratado pelo Ministério do Ultramar para realizar um estudo de um ano sobre as práticas agrícolas na Guiné Portuguesa, a sua terra natal. Aqui, Cabral criou o que chamou de laboratório experimental na Granja de Pessubé e, em 1953, realizou um recenseamento agrícola: um processo de recolha de dados que lhe proporcionou uma ligação direta com a população e acesso a dados topográficos em todo o país. Este recenseamento, que incluía um estudo do estado da agricultura nas colónias de Portugal, foi solicitado ao governo português pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Como sugere o agrónomo guineense Carlos Schwarz, quando Cabral começou a trabalhar como agrónomo na Guiné estava convencido de que o processo de independência iria desenrolar-se pacificamente, da forma como decorreu em muitos dos países africanos que tinham sido colonizados por outras potências europeias. Por conseguinte, começou a trabalhar sobre um novo conceito de agricultura destinado a substituir o modelo colonial existente.
Cabral publicou uma série de artigos agronómicos, incluindo “Em defesa da terra I-IV” em 1949-1952 e “Acerca da utilização da terra na África negra” em 1954. No primeiro, Cabral procurou casos económicos globais históricos, abordando a recuperação do solo: “Exemplos de propaganda são insuficientes para resolver um problema cujas raízes mergulham na própria estrutura económica das sociedades”. No segundo, centrou-se nos principais componentes humanos da agricultura e das suas economias: “A fonte fundamental e o aspecto determinante são os próprios seres-humanos-sociais, cujas ações dependem da estrutura económica sustentada pela atividades agrícolas. Continua abordando a violência da política do solo imposta pelo Estado e as suas contradições:
O sistema cultural característico da África Negra é o denominado “itinerante” […] uma porção da floresta ou da savana é escolhida para se submeter à cultura; procede-se ao arranque ou desbaste da vegetação natural, a qual é seguidamente queimada; a terra é explorada durante certo tempo e depois abandonada; a floresta ou a savana volta a ocupar o terreno. […] O sistema itinerante exige uma grande instabilidade dos aglomerados populacionais. O homem não se fixa à terra. Ora a fixação, ao que parece, é condição essencial ao progresso de qualquer povo.
Cabral explicou como o sistema agrícola itinerante é uma solução endémica para os problemas impostos pelo ambiente negro-africano, e exacerbou a sua crítica das medidas agrícolas coloniais:
Em suma: o colonialismo introduz em África um novo sistema de produção, traduzido na économie de traite. Mantém, contudo, o sistema itinerante de cultura da terra. Ao sistema itinerante aplica ou tenta aplicar, sem atender à diferença das condições mesológicas [ecológicas], as práticas agrícolas europeias, porque está convencido da “superioridade” dessas práticas.
Cabral denunciou os efeitos de exploração da economia comercial extrativa. Baseou-se na descrição de Liebig da situação criada quando a agricultura empírica do comerciante se torna um sistema de espoliação, e as condições de reprodução do solo são minadas – “todo sistema de agricultura baseado na espoliação da terra conduz à pobreza”. Cabral reconheceu que a agricultura itinerante não permite certos desenvolvimentos culturais e infraestruturais devido à sua falta de raízes. No entanto, afirmou que:
A evolução das técnicas culturais africanas no sentido de servirem melhor o progresso dos povos afro-negros não pode ignorar que elas traduzem um conhecimento profundo do meio e das suas possibilidades […] Do facto de não se ter atendido a essa necessidade vital resultaram já verdadeiras catástrofes. Na base dessas encontra-se, de uma maneira geral, o complexo de factores introduzidos na vida do afro-negro por uma nova entidade – o colonialismo.
Como Bellamy Foster salienta, Marx estava inicialmente interessado nos desenvolvimentos pioneiros de Liebig no fertilizante artificial, embora mais tarde se tenha tornado cético sobre o seu valor a longo prazo: “Fertilidade não é uma qualidade tão natural como se possa pensar; está estreitamente ligada às relações sociais da época. Esta ênfase nas mudanças históricas na fertilidade do solo no sentido do melhoramento agrícola torna-se uma constante no pensamento posterior de Marx, ainda que eventualmente associada a uma compreensão de como a agricultura capitalista poderia minar as condições da fertilidade do solo, resultando em degradação do solo em vez de melhoramento. Bellamy Foster refere que:
É no seu trabalho posterior sobre economia política que Marx forneceu o seu tratamento sistemático de assuntos como a fertilidade do solo, a reciclagem orgânica e a sustentabilidade, em resposta às investigações do grande químico alemão Justus von Liebig – e no qual encontramos o maior quadro conceitual, enfatizando a “falha metabólica” entre a produção humana e a sua condição natural.
Cabral estava a compilar um conjunto de conhecimentos situados – as especificidades do conflito entre África e Portugal, uma potência colonial – que era reforçado pelas ideias de Marx e Liebig sobre a dimensão global da crise agrícola produzida quase um século antes.
O Portugal colonial fascista era um regime paternalista católico corporativo muito particular, caracterizado por uma ditadura sustentada pela censura e a construção retórica de fantasias sobre o poder e o alcance do seu império. Na realidade, o país estava profundamente atrasado. A taxa de analfabetismo da população era de cerca de cinquenta por cento em 1952. Neste contexto, Cabral inicialmente evitou a política aberta e desenvolveu ativamente alternativas construtivas ao sistema colonial. Um dos seus últimos atos oficiais como agrónomo estatal foi propor plantações de beterraba sacarina em Portugal. Devido ao aumento da procura europeia de açúcar, era uma opção lucrativa para o “continente” substituir a exploração das plantações de cana-de-açúcar nas suas “províncias ultramarinas” tropicais. Cabral virou o espelho para a Europa, sugerindo uma solução para a crise agrícola europeia. Era, depois de tudo, em parte como consequência da crise agrícola (como abordada anteriormente de uma perspetiva eurocêntrica por Liebig e Marx) que as potências europeias aceleraram os seus projetos coloniais, um processo consolidado pela disputa por África na Conferência de Berlim de 1884-1885.
As determinantes económicas que, na Europa, haviam constituído uma das causas da era dos Descobrimentos levam o europeu a fixar-se em África. Do simples comércio de mercadorias, entre as quais o homem negro, o europeu passa à exploração da terra. Mas não tem, como o afro-negro, o objectivo de produzir o indispensável à alimentação. Cultiva ou faz com que o afro-negro cultive produtos de exportação. […] Das contradições criadas resulta que, dia a dia, se acentua a devastação da terra africana […] Com a vida desequilibrada, tendo a satisfazer não só a novas necessidades criadas mas também às exigências da sua nova condição social, [o africano] vai-se desenraizando a pouco e pouco, emigra ou tem de emigrar, abandona ou nem tem tempo de assimilar a sabedoria que ele próprio, com base no conhecimento empírico do meio e na experiência de séculos, havia criado.[p. 248] […] O desequilíbrio da gestão do solo negro-africano estimula o surgimento de doenças que enfraquecem o organismo humano. [página??] .
Mais tarde, em 1969, já no meio da guerra de independência, num seminário com o bureau político do PAIGC, Cabral analisou diferentes modos de resistência (política, económica, cultural e militar). Um argumento que apresentou para a resistência económica foi a consciência da “nulidade” burocrática do valor do trabalho negro-africano através da manipulação de impostos, preços e salários: “Analisámos o cultivo do amendoim em profundidade e chegámos à conclusão de que é trabalho forçado”. Este cálculo demonstrou a perpetuação de um sistema de trabalho de exploração que continuou na Guiné mesmo depois de a escravidão ter sido oficialmente abolida. Cabral trabalha com as ferramentas da ciência ocidental para diagnosticar as condições dos povos da Guiné-Bissau em relação à degradação do solo. Ao chamar a atenção para esta relação, antecipou a atual migração forçada de africanos como resultado da devastação histórica do solo.
Dupla Agência Clandestina
Arranjámos contrato como agrónomo e fomos para Angola e aproveitámos para reunir camaradas, para discutir com eles o novo caminho que devíamos seguir todos na luta pela nossas terras. Debaixo do controle da PIDE, camaradas.
Amílcar Cabral
A dupla agência subversiva de Cabral torna-se evidente quando se avalia o seu papel como ativista político a par de sua atividade como agrónomo entre 1948 e 1960. Embora servir o Estado português possa ser entendido como uma submissão ao poder colonial, a “submissão” de Cabral – uma missão sob a sua nomeação oficial – era subversiva. A sua passagem do desprezo codificado para a crítica aberta do sistema agrícola colonial manifestou-se em artigos como “Acerca da Utilização da Terra na África Negra”, o que tornou difícil as ações de Cabral na Guiné Portuguesa.
Um primeiro exemplo desta abordagem subversiva militante remonta a 1948, quando Cabral acabava de integrar a CEI (Casa dos Estudantes do Império, 1944-1965) em Lisboa. Esta instituição académica tinha sido criada pelo Ministério do Ultramar para promover um sentido de “portugalidade” global entre os estudantes das colónias. Aqui conviveu com Eduardo Mondlane (que se tornou o primeiro presidente da FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique); Mário Pinto de Andrade (co-fundador do MPLA, Movimento Popular para a Libertação de Angola, e companheiro da cineasta pioneira Sarah Maldoror); Agostinho Neto (co-fundador do MPLA), e muitos outros futuros líderes anticoloniais. Os estudantes subverteram rapidamente a agenda oficial desta instituição, que se tornou um “ponto quente” para jovens intelectuais desenvolverem um discurso crítico sobre a política colonial e, mais tarde, prepararem-se para a luta armada.
A CEI publicou numerosos opúsculos de poesia e editou uma revista chamada Mensagem, centrada na poesia lusófona não europeia. A poesia funcionava como um disfarce “cultural” que permitia a estes jovens intelectuais discutirem a opressão dos povos africanos e asiáticos. Tecnicamente, a polícia política portuguesa (PIDE), nas várias rusgas que fez à CEI e nos relatórios de vigilância das atividades culturais dos estudantes, tinha dificuldade em descodificar as reflexões poéticas de uma organização política inconspícua que estava latente dentro da academia colonial.
Depois de terminar o trabalho de campo na Guiné Portuguesa, Cabral continuou a trabalhar como agrónomo do Estado, centrando-se agora nas condições fitossanitárias do armazenamento de alimentos nos armazéns dos principais portos de Angola, Cabo Verde e Lisboa. Esta investigação permitiu-lhe circular livremente entre as colónias e a “metrópole” e obter dados estratégicos sobre a dependência económica de Portugal dos produtos ultramarinos e da economia comercial colonial – informações que transmitiu aos diversos partidos anticoloniais recém-fundados em Angola e Moçambique. Em 1955, Cabral fundou o MING (Movimento para a Independência Nacional da Guiné) e transferiu o seu trabalho agronómico para Angola, Cabo Verde e Lisboa. Depois, em 1956, foi cofundador do MPLA em Angola, do PAI (Partido Africano da Independência, que mais tarde se tornou PAIGC) na Guiné, e em Lisboa o MLPCP (Movimento pela Libertação dos Povos das Colónias Portuguesas) e o MAC (Movimento Anti-Colonialista). Esta elite instruída dos colonizados preparou-se em silêncio para a revolução utilizando subversivamente as oportunidades oferecidas pelo colonizador, virando as suas ferramentas – agronomia, ciência, poesia e instituições académicas – contra o seu poder.
Em agosto de 1959, marinheiros e estivadores fizeram uma greve por melhores condições de trabalho no porto de Pidjiguiti (porto principal) em Bissau, resultando num massacre que deixou cinquenta mortos e centenas de feridos. Isto pôs termo a todas as tentativas do PAIGC de negociações pacíficas para acabar com a ocupação colonial portuguesa. Meio ano depois, em janeiro de 1960, Cabral abandonou o seu emprego de agrónomo e passou à clandestinidade, deixando Portugal para sempre para se tornar estratega político e teórico do movimento de libertação a tempo inteiro. Na primavera seguinte, em junho de 1961, centenas de estudantes das colónias africanas fugiram secretamente de Portugal para escapar ao recrutamento obrigatório para o exército colonial, a fim de combater no outro lado da mesma guerra. A CEI funcionou como o principal centro organizacional da operação de fuga. A data 23 de janeiro de 1963 marcou o início da luta armada na Guiné com o ataque de militantes da guerrilha do PAIGC à base militar portuguesa de Tite, no sul do país.
Semântica da Recuperação do Solo
Como mencionado acima, o primeiro emprego de Cabral na Guiné Portuguesa foi o de diretor da Granja Estatal de Pessubé em 1952, que ele transformou rapidamente numa granja experimental. O centro de pesquisa agrícola era uma tentativa de pôr em prática a sua visão para o desenvolvimento da Guiné após a independência. Como resume Schwarz, Cabral estabeleceu três vertentes principais para o seu programa em Pessubé:
- a primeira foi a de transformar a Granja de mera unidade de produção de legumes destinados às autoridades políticas e administrativas da praça [cidade] e um local de piqueniques e passeios recreativos, num centro de pesquisa agrícola, enquanto instrumento para melhorar e modernizar a produção dos agricultores;
- a segunda foi a de romper os muros internos em que se confinavam os serviços agrícolas, para os aproximar dos agricultores, que deviam ser os seus principais beneficiários;
- a terceira foi a da interação da agricultura guineense com as dos países vizinhos da sub-região.
O projeto de granja experimental destinava-se a mudar as práticas agrícolas, com o objetivo de emancipar as pessoas e recuperar a terra. As operações intrínsecas do centro de pesquisa agrícola, enraizadas no lema “experimentação-divulgação”, já mostram traços do que mais tarde se tornou a “teoria da cultura” de Cabral. Cabral desenvolveu a sua teoria revolucionária após emergir do período anterior de dupla agência quando, sob o pseudónimo de Abel Djassi, liderou o nascente movimento anticolonial enquanto ainda trabalhava como agrónomo para o regime português. Com o lançamento da luta armada ingressou na cena mundial como líder do PAIGC e teórico da resistência anticolonial. Os seus discursos – à população em geral, nas Nações Unidas e aos guerrilheiros e professores – articulam uma ecologia da libertação marcada pela descolonização da própria linguagem. Como explicou na Universidade de Syracuse, “não é possível harmonizar a dominação económica e política de um povo, seja qual for o seu grau de desenvolvimento social, com a preservação da sua personalidade cultural. Afirmou que “a chamada teoria da assimilação progressiva das populações nativas” não é mais do que uma tentativa violenta “de negar a cultura do povo em questão. Para Cabral, a libertação do povo africano precisava de um ato de emancipação cultural a nível das bases.
Os três princípios da granja experimental de Pessubé podem ser extrapolados para o programa agrícola que ele concebia para a futura Guiné: produção não elitista de produtos agrícolas; inexistência de muros na governação ao serviço das pessoas/agricultores, e finalmente o encorajamento – através do crioulo e do cinema – do intercâmbio de conhecimentos agrícolas e da interação entre os diferentes grupos étnicos da região.
Cabral inicialmente acreditava que o processo de libertação seria possível através de protestos não violentos e da exigência legítima de independência. Estes princípios sustentaram mais tarde a ação pedagógica permanente de Cabral pela autoemancipação empregando aquilo que o pedagogo radical Paulo Freire depois da independência descreveu como a codificação da linguagem através de um processo situado de consciencialização, uma forma ativa de consciência gerada como parte de um processo político emancipador. Infelizmente a violenta repressão portuguesa dos protestos guineenses, intensificada pelo trágico massacre no porto de Pidjiguiti em 1959, tornou claro que os portugueses não tinham a intenção de imitar outros países coloniais europeus reconhecendo o direito à independência das suas antigas colónias, provocando assim a eclosão da guerra de guerrilhas.
Muitos dos discursos políticos de Cabral aos guerrilheiros e camponeses, feitos no contexto da luta armada, insistiam na renomeação e redefinição de palavras, geografias e conceitos como um processo descolonizador de consciencialização sobre sistemas de poder, uma operação semântica que aumentou a eficácia estratégica da guerra. Por exemplo: “Na Guiné, a terra é cortada por braços de mar, que nós chamamos rios, mas no fundo não são rios […] porque até chegarmos a terra seca, é só água salgada”. A morfologia da Guiné é um aluvião sem montanhas, com setenta por cento do seu solo abaixo do nível do mar. Estes “braços de mar” não possuem um termo no léxico colonial. A consciência desta falta indica algo de errado na epistemologia colonial – só se vê o que já se sabe. A inadequação da língua portuguesa à geografia da Guiné-Bissau é prova da ilegitimidade da sua ocupação. Esta condição das marés também sugere a vulnerabilidade de uma terra permeável gravada por séculos de invasão. Outro exemplo é uso por Cabral da frase “movimento centrífugo”.
adotámos uma estratégia que se poderia chamar centrífuga: partir do centro para a periferia do nosso país. E este facto provocou uma grande surpresa nos portugueses, que juntaram as suas tropas na fronteira da Guiné e do Senegal, pensando que nós íamos invadir o nosso país, vindos do exterior.
As forças coloniais julgaram mal de onde os rebeldes ou “terroristas” (como eram chamados os militantes do movimento de Cabral na propaganda do Estado Novo) iriam atacar, e que táticas adotariam. A luta de libertação da Guiné-Bissau começou assim no centro do território, porque era uma luta do povo, e depois deslocou-se de forma centrífuga, aproveitando o seu conhecimento do terreno. Este movimento centrífugo é uma variação dilatadora do movimento cíclico cósmico, aqui uma força imensa, contida no duplo significado da palavra “revolução”, para o qual Hanna Harendt chama a atenção em relação à Revolução Francesa: “o movimento ainda é visto através da imagem dos movimentos das estrelas, mas o que é enfatizado agora é que está além do poder humano detê-lo”.
Em 1966, durante a primeira Conferência Tricontinental em Havana, Cabral apresentou o seu artigo “A Arma da Teoria”. Um ano depois, como parte de um acordo com Fidel Castro, Cabral enviou jovens guineenses a Cuba para serem formados em medicina, guerra e cinema. Quatro deles – Sana na N’Hada, Flora Gomes, Josefina Crato e José Bolama Cobumba – foram para o ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos) para aprender cinema sob a orientação de Santiago Álvarez. Mas primeiro, aprenderam espanhol e a prática do trabalho voluntário: trabalho que não é necessariamente rentável, mas ensina uma experiência do comum e é, nas palavras de Sana na N’Hada, uma prática para aprender “humildade”. Humilde deriva de húmus, ser humilde é estar ao lado do húmus, estar ligado à terra, ficar perto do solo. Este trabalho voluntário (e a sua inerente humildade) influenciou a produção cinematográfica guineense como prática cinemática ancorada na realidade, ao serviço de um processo popular revolucionário. Em 1972, os cineastas guineenses regressaram de Cuba para começar a documentar a guerra de libertação em curso contra Portugal e, após a declaração unilateral de independência, construir a capacidade de fazer imagens em movimento em e de uma nação independente.
Cabral não chegou a ver o cinema que imaginava, porque foi assassinado em 20 de janeiro de 1973. No entanto, foram dois dos cineastas que Cabral enviara para formação em Cuba, Sana na N’Hada e Flora Gomes, que produziram o documento cinematográfico do evento em que Cabral estava empenhado: a declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau em 24 de setembro de 1973. Nas colinas de Boé, a única área elevada deste país plano e pantanoso, os líderes do PAIGC reuniram os seus militantes para a primeira Assembleia Nacional Popular. Um ritual burocrático no meio da floresta declarou a República da Guiné-Bissau independente de Portugal.
Numa entrevista em 2014, Sana na N’Hada explicou o programa de cinema do Instituto Nacional de Cinema da Guiné para o país recém-libertado:
“Como funcionaria o cinema de forma legal? Estávamos a filmar há cinco ou seis anos quando fundámos o Instituto de Cinema. Agora, o que se devia fazer? Então criámos o “Programa de Promoção Rural por Meios Audiovisuais”, que significava que, com o cinema – juntamente com o crioulo – poderíamos fazer com que as pessoas de lá entendessem as pessoas de cá. Contribuiríamos para imaginar um espaço nacional.”
Embora tenha havido alguma produção cinematográfica na Guiné-Bissau após a independência, as aspirações a uma produção cinematográfica nacional não se cumpriram. Olhar para os restos deste cinema militante guineense hoje dá-nos uma visão da sua representação do processo revolucionário e da inscrição do tempo, do clima e da guerra na materialidade do celuloide agora arruinado. A erosão visível no celuloide que resta desta praxe cinematográfica militante fala de um abandono da ambição e do cuidado revolucionário na pós-colónia. A erosão neocolonial põe em perigo não apenas o solo da nação, mas também qualquer superfície que tenha registado a oposição ao poder colonial.
Enquanto as instituições nacionais de cinema e televisão que foram criadas em Angola e Moçambique após a independência promoveram ativamente o português padrão como língua nacional para encorajar a unidade política, na Guiné-Bissau o crioulo foi escolhido como língua franca entre mais de trinta comunidades étnicas diferentes. A recodificação de práticas agrícolas díspares estava ligada a uma codificação da língua e dos meios de comunicação; neste caso, o desenvolvimento do crioulo como uma nova língua transversal foi aproveitado no cinema como veículo de intercâmbio agronómico translocal.
O crioulo é uma língua derivada de uma apropriação do léxico português e da assimilação de línguas orais e étnicas (especialmente da sintaxe mandinga), e era a língua que Cabral utilizava para comunicar com diferentes grupos étnicos no decorrer da luta armada de onze anos. Um aspeto poético particular do crioulo guineense, também visível na teorização da revolução de Cabral, é o seu carácter metonímico; por exemplo, pekadur (do ptg. pecador) significa “ser humano” – uma característica humana específica torna-se o nome do todo. O crioulo reproduz a inscrição da resistência a 500 anos de encontro colonial. O cinema militante e o crioulo foram a codificação da luta no solo e na emulsão do celuloide, uma desprogramação do sistema colonial e a recuperação epistemológica do solo. A “compostagem” dos restos de celuloide – por exemplo das bobinas profundamente erodidas do filme nunca acabado Guiné-Bissau: 6 anos depois (Gomes, N’Hada, Crato, Cobumba; filme inacabado, 1979-1980), que retratava várias práticas agrícolas autóctones – pode ser vista como a meteorização da matéria análoga aos processos de erosão neocolonial, mas também como o húmus para fertilizar uma alfabetização do solo necessária para futuros gestos de descolonização.
No seu discurso em Havana em 1966, Cabral afirmou: “Observamos, contudo, que um tipo de luta, quanto a nós fundamental, não está mencionado expressamente nessa Agenda […] Queremos referir-nos à luta contra as nossas fraquezas”. Uma dessas fraquezas era certamente o uso de um modelo nacional baseado num paradigma colonial, cuja fragilidade se tornou evidente na descida para o neocolonialismo após a independência. A minha leitura dos escritos científicos, económicos e políticos de Cabral propõe entender “meteorização” como uma ferramenta operacional numa luta permanente que é o único estado possível de libertação. Cabral não defendia um futuro pós-colonial utópico livre de opressão ao qual se seguiria a regeneração, mas estava a preparar os militantes, a linguagem e o solo para um devir permanente, que mesmo assim pudesse enfrentar as ameaças ao ambiente, antecipando o que tem sido chamado época “capitalocénica” da Terra. A situação atual na Guiné-Bissau é de aquisição neoliberal do território por multinacionais, atualizando modelos extrativistas históricos para novos sistemas corporativo-colonialistas globais, tornando novamente as complexas ecologias de aluvião como uma terra nullius contemporânea. “O nosso povo são as montanhas” é/ exprime uma mentalidade anti-extrativista, uma ativação animista do solo, uma convocação de vários conhecimentos e uma negação da colonialidade. Uma recuperação do solo. As inscrições sobre e no palimpsesto do solo contam narrativas tanto da miséria como da potência libertadora do seu húmus.
Artigo publicado originalmente na Third Text I Filipa César (2018) Meteorisations.