O retorno aventureiro ao cinema do Níger pelo olhar de Moustapha Alassane
Entre 27 e 29 de Junho, o ISCTE-IUL irá a acolher a quinta Conferência Europeia de Estudos Africanos (ECAS 2013). Paralelamente aos painéis temáticos haverá uma mostra de cinema africano, o ECAScreenings, e uma mesa-redonda, The State of the Art: African Contemporary Cinema in Focus. BUALA colabora com o ECAScreenings, na publicação de artigos sobre cinema ligado a África escolhidos por Pedro Osório Graça.
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A produção Auoré marca o início da trajetória do cineasta Moustapha Alassane. O filme realizado em 1962 conta a história de um casal do grupo étnico Djerma1. Alguns anos depois, o realizador produziu seu primeiro curta-metragem de animação, La mort du Gandji tornou-se conhecido como o pioneiro desse gênero fílmico no continente africano. Além de muitos filmes de animação e alguns documentários, o diretor também realizou dois longas-metragens: F.V.VA – Femmes, voiture, villa, argent (1971) e Toula, ou Le Génie des Eaux (1973).
Precedendo essa reflexão sobre uma das produções cinematográficas de Alassane, considero fundamental demarcar o contexto de seu surgimento. Situado na região norte e ocidental do continente africano, o Níger possui fronteiras com seis outros países como a Nigéria, a Argélia e a Líbia. Nessa região geográfica de África formaram-se doze Estados-nação no limiar da década de 60, com o processo de independência dos territórios africanos que foram colonizados pela França. Esse espaço territorial tornou-se conhecido como “África Subsaariana”, embora geograficamente nem todos os países tenham parte de sua área situada abaixo do deserto do Saara, é essa a designação usada pelas agências e pela imprensa internacionais para nomear uma considerável parcela de território do continente africano. Para o cientista político nigeriano Herbert Ekwe-Ekwe o uso desse termo é discriminatório, já que sugere um efeito de “redução geográfica” de um território extenso que engloba vários estados africanos, e reforça o imaginário de desolação, aridez e desesperança do ambiente desértico do Saara (EKWE-EKWE, 2010).
Como os demais países francófonos, o Níger também recebeu incentivos destinados à produção cultural do governo francês, que desejava manter laços com as antigas colônias. O surgimento de uma produção cinematográfica nesse país, no entanto, expressa algumas particularidades. Os cineastas nigerinos2 “representam o cinema africano a partir de dentro sem o distanciamento encontrado na obra de intelectuais educados na Europa” (BOUGHEDIR, 1984 apud ARMES, 2007, p.166). Oumarou Ganda, Inoussa Ousseini, Moustapha Alassane e Moustapha Diop foram os diretores responsáveis pelo impulso inicial dessa produção.
Alassane destaca-se por sua opção em seguir um percurso independente. Neste texto, procuro destacar dois filmes: Le Retour d’un Aventurier (O Retorno de um Aventureiro), de Moustapha Alassane e a produção do diretor francês Serge Moati: Les Cow-Boys sont noirs (Os cowboys são negros). O segundo filme citado foi realizado no mesmo período do primeiro e registrou momentos do processo de criação do mesmo, ou seja, podemos dizer que é um documentário making-of do filme de Moustapha.
Atuando no Institut Français de l’Afrique Noire (IFAN), no início da década de 60, Moustapha encontrou o antropólogo e cineasta francês Jean Rouch. Por meio desse contato, conheceu Claude Jutra, um canadense que atuava no National Film Board of Canadá (NFBC). O desejo de realizar filmes de animação o levou então ao Canadá, onde passou um curto período estagiando com Norman McLaren.
Jean Rouch apresentava Alassane como o homem que se responsabilizaria por fazer um novo cinema no Níger, pelo caráter experimental de suas criações (YAKIR, 1978). O cineasta antropólogo francês também convidou o jovem cineasta nigerino para atuar em uma de suas “etnoficções” (PAGANINI, 2009, FERRAZ, 2010). Na série “Petit à Petit”, dividida em três episódios, em sua versão mais longa e apresentado em uma segunda versão, com 92 minutos de duração, Moustapha Alassane fez uma pequena participação como ator.
Na interpretação de Paulin Vieyra (1975), o filme Le Retour d’un Aventurier foi influenciado pelo formato das “etnoficções” que Jean Rouch realizou alguns anos antes: “Moi, un Noir”, “Jaguar” e “Petit à Petit”. Vieyra é autor de um dos primeiros estudos sobre os cinemas africanos, obra na qual destaca as marcas do estilo rouchiano no filme “O Retorno de um Aventureiro”, quando apresenta o cinema do Níger.
Em muitos de seus filmes, Jean Rouch inventava um espaço lúdico que provocava, ao mesmo tempo, que dele se apropriava (FIESCHI, 2010). A primeira sequência desse movimento foi deflagrado no filme “Mon, um Noir (Eu, Um Negro)”, realizado em Abidjan, na Costa do Marfim, em 1957. Quando Rouch propôs a alguns nigerinos interpretarem seu próprio cotidiano na tela, temos um momento da criação rouchiana em que não se tenta abstrair a presença do aparato técnico, da câmera de filmar, “como se” esta não estivesse ali, a exemplo dos filmes etnográficos. O que ocorria era uma transformação do papel da câmera, uma afirmação de sua função e presença. Para Fieschi, Rouch transformava um obstáculo técnico em pretexto para suas experimentações, deixava de ser apenas “observador de ritos” e passou a “criador”, à sua maneira (FIESCHI, 2010).
De certo, não há como negar que a temática escolhida por Moustapha: a narrativa sobre o retorno de um jovem africano que visita o continente americano e a própria forma de elaboração da produção fílmica apresentam semelhanças com o formato colaborativo que Rouch adotou em suas “etnoficções” citadas acima. Esta influência pode ser percebida até mesmo na escolha dos nomes dos personagens que os jovens da aldeia onde a trama é filmada representam. Eles assumem identidades inspiradas nos nomes de atores e diretores americanos dos filmes de cowboys. No entanto, é o registro do processo de filmagem, tornado visível no filme de Moati, que dá pistas sobre a apropriação que Moustapha faz do gênero western ao realizar sua produção. O potencial criativo dessa apropriação se torna mais visível quando assistimos o documentário “Les Cow-boys sont Noirs”. O making-of chama atenção para a importância e as particularidades do processo de produção da obra ficcional. No western criado por Alassane, o autor constrói uma paródia sobre os filmes de cowboy que invadiam as telas dos cinemas desta região do continente africano. Em torno de 150 filmes americanos, cerca de três filmes por semana eram exibidos nas 220 salas3 de cinema existentes nesta região norte ocidental do continente do africano, muitos do gênero western. Os números citados são apresentados no final do filme realizado por Moati.
Moustapha aproxima-se de Rouch pela forma compartilhada de realizar, na medida que propõe a construção coletiva de um filme de cowboys no contexto de uma aldeia nigerina. E a partir da apropriação criativa das influências que recebeu de outros cineastas como Jean Rouch e Norman McLaren, Alassane constrói um estilo próprio.
O western costuma ser considerado um gênero cinematográfico tipicamente americano, mas a influência dos cowboys pode ser vista nas cinematografias de diversos lugares do mundo (VUGMAN, 2006). Existem recriações do gênero em países como a Itália, onde o western foi associado à cultura local, passando a ser conhecido como Western Spaghetti, tendo Sérgio Leone como seu principal realizador.
Em Le Retour d’un Aventurier, Alassane recriou localmente os filmes de cowboys. No filme, que ficou conhecido como o primeiro western africano, encenou o encontro do contexto cultural de uma aldeia do Níger com esse gênero fílmico. A narrativa cinematográfica produzida em 1966 ,“O Retorno de um Aventureiro” conta a história de um jovem nigerino que volta de uma viagem ao continente americano. O personagem principal traz em sua bagagem algumas indumentárias e acessórios usados pelos cowboys nos filmes e presenteia os amigos com esses apetrechos.
Uma das marcas autorais de Alassane está na ênfase que dá ao processo de criação, ao envolvimento do grupo de atores e moradores da aldeia no momento em que o filme estava sendo feito. Dessa forma, o diretor se apropria de algumas características do gênero western, para satirizá-las. Na produção do “Retorno de um Aventureiro” toda a aldeia escolhida como locação para as filmagens se envolveu na produção (VIEYRA, 1975). Em “Les Cow-boys sont Noirs”, há uma cena que mostra um grupo de jovens reunidos cantando as músicas que compõem a trilha sonora do filme, mostrando a forma compartilhada de produção adotada por Alassane.
O cineasta não apenas se aventurava pelos longos planos abertos do western, mas propunha realizar uma criação coletiva com os que atuaram no filme. Assumia o filme como um processo experimental para refletir sobre a forma de produzir filmes do gênero, ao fazê-los aos moldes daqueles que os espectadores africanos assistiam nas telas de cinema locais. O ponto principal da obra está nesse desvelamento do processo de produção de um filme junto com o grupo de atores e pessoas envolvidas. A apropriação coletiva do espaço da aldeia e o período de tempo em que envolveu o grupo de atores e técnicos com as filmagens torna-se mais importante que o resultado que vemos no produto final. Nesse sentido, o documentário de Serge Henri- Moati funciona como um complemento significativo nos momentos em que “Le Retour d’un Aventurier” é exibido para os mais diversos públicos.
Nessa releitura do western, Alassane produz uma bricolagem, uma reconstrução a sua maneira do próprio gênero fílmico. É nesse sentido que Alassane assume o que chamo de seu espírito bricoleur. Recorrendo ao que Levi-Strauss (1997) apresenta na obra “O pensamento selvagem”, o bricoleur é aquele que trabalha com suas mãos, faz uso de meio indiretos e com isso, pode chegar a resultados imprevistos. O bricoleur demonstra habilidades para realizar inúmeras e diversificadas atividades, mas não subordina nenhuma dessas atividades à aquisição de matérias-primas e de instrumentos, pois estes são concebidos e buscados na medida do projeto que realiza. A escolha e a conservação dos elementos dão-se em função do princípio de que “isso sempre pode servir” (LEVI-STRAUSS, 1997, p. 33).
Vale destacar que é também nas criações dos seus curtas de animação que Moustapha Alassane, apresenta algumas marcas do encontro com Norman MacLaren, quando opta pela simplicidade e pela articulação criativa a partir dos recursos de que dispunha e que estavam a seu alcance. A bricolagem de Moustapha Alassane também se apresenta no leque de gêneros cinematográficos que o autor percorre ao construir sua obra fílmica, já que ao mesmo tempo em que seguiu pelas veredas das narrativas ficcionais sobre contos orais de seu país, passeia pelos vastos territórios de aventuras dos filmes de cowboys.
A expressão artística pós-colonial no Níger
Como diz Stuart Hall (2003), uso do termo “pós-colonial” e seus desdobramentos conceituais contribuem “para descrever ou caracterizar a mudança nas relações globais que marca o processo de transição (necessariamente irregular) da era dos impérios para o momento da pós-independência ou da pós-descolonização” (HALL, 2003, p. 107) e da mesma forma que pode ser útil na identificação das relações e disposições de poder que emergiram dessa conjuntura. Assim como afirmam Stam e Shohat (2005), a teoria pós-colonial é eficiente para tratar as contradições e os sincretismos gerados pela circulação global de povos e de produtos culturais em um mundo midiatizado e interconectado, que resulta numa forma de sincretismo mercantilizado ou midiatizado (STAM e SHOHAT, 2005, p. 412).
Analisando o filme de Moustapha a partir da perspectiva de uma expressão pós-colonial, o retorno desse aventureiro começa com uma cena de discussão entre alguns jovens em sua aldeia, a conversa é interrompida pela chegada de outro jovem que vem para avisar a todos do retorno de Jimi de sua viagem ao exterior. Na cena seguinte dois jovens atacam um pastor para roubar-lhe um carneiro. O filme começa apresentando o cotidiano de uma aldeia africana, na qual reside um grupo de jovens.
A chegada de um avião da “Air Afrique” anuncia a volta de Jimi de uma longa viagem. Os letreiros iniciais apresentam que a produção foi realizada no Níger com a participação do IFAN (Institut Français de l”Afrique Noire) e do Consortium Audiovisual Internacional. A trilha sonora composta pelo músico local Amelonlon Enos mostra na letra da música a aventura de Jimi e seus amigos no cinema que irá começar. O protagonista Jimi entra em um táxi e dialoga com o motorista sobre o crescimento urbano. O carro estaciona em frente a um conjunto de edifícios residenciais. Nesse segundo momento do filme, vemos um cenário moderno que contrasta com o da aldeia mostrada nas primeiras cenas.
O protagonista Jimi finalmente desembarca em sua aldeia ao descer da carroceria de um caminhão, é recebido por alguns amigos e pela namorada que deixou antes de partir. Os amigos prepararam um almoço para recepcioná-lo e nesse momento compreendemos o motivo do furto do animal, pois era o prato que estava sendo servido a todos. Jimi abre sua mala e distribui aos colegas, as indumentárias de cowboy que trouxe. Todos se vestem e enfileirados assumem suas novas identidades: Black Cooper, John Kelly, Casse Tout, Billy Walter. A namorada de Jimi está também vestida com roupas de cowboy mas recebe o título de ‘Rainha Christina”. Alguns dos nomes que os personagens passam a usar têm como inspiração atores dos westerns americanos como Gary Copper, Clint Walker e Gleen Ford. O nome da personagem feminina foi inspirado no filme com o mesmo título, de 1931, estrelado por Greta Garbo. Já na abertura do filme “Les Cow-boys sont noirs” de Serge-Henri Moati, os jovens se apresentam dizendo o que fazem em seu cotidiano na localidade e citam seus atores preferidos dos filmes de cowboys. Um deles é cineasta do Centro Nacional Audiovisual, outro chofer de táxi em Niamey, há um mecânico, um carteiro, um funcionário público e a moça trabalha como vendedora em uma galeria de lojas do Niger.
No filme realizado por Alassane e seus amigos nigerinos observamos uma leitura distinta dos westerns americanos quando analisamos o enredo e o desenvolvimento da trama. Os africanos caracterizados e assumindo a identidade de cowboys passam a agir como tal, reproduzem o estereótipo dos homens rudes e violentos que cavalgam pelos campos abertos e áridos com chapéus e armas na cintura. No entanto, ao se travestirem de cowboys, os jovens se tornam cada vez mais violentos e começam a atacar as pessoas da comunidade provocando brigas no bar da cidade e por todos os espaços da aldeia que percorriam. Alguns dos cowboys personagens agem e são vistos pela comunidade como bandidos e selvagens que atacam a população desarmada quando essa está cuidando de suas criações nos campos. Os chefes da aldeia indignam-se e convocam o feiticeiro para auxiliá-los a resolver o conflito. Alguns jovens do grupo, principalmente aquele que trouxe as roupas da América para os amigos, discorda da postura e do comportamento dos demais percebendo que a brincadeira assumiu uma dimensão inesperada. O conselho da aldeia toma a decisão de aplicar uma lição nos jovens rebeldes simulando a morte do pai de um deles. Por fim, todos decidem que a brincadeira deveria ser interrompida respeitando a decisão do conselho comunitário local.
No fechamento da narrativa de Moustapha, é a decisão do conselho da aldeia que prevalece. Alassane constrói uma sátira ao mostrar-nos como o cotidiano vivido pelos cowboys das ficções é conflitante com a vida dos jovens da aldeia. O final que o autor escolhe para o filme cria para o novo conflito produzido pela presença dos cowboys na aldeia uma solução que nos mostra como “as diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada permaneçam profundas nunca operaram de forma binária” (HALL, 2003, p. 108). Este autor defende que não se deve designar a transição no sentido de reforçar a ideia de um “antes” e um “agora”, mas reler os binarismos como forma de transculturação, de tradução cultural que se destinam a perturbar os binarismos culturais do tipo aqui/lá.
O termo pós-colonial não se restringe a descrever uma determinada sociedade ou época. Ele relê a “colonização” como parte de um processo global essencialmente transnacional e transcultural - e produz uma reescrita descentrada, diaspórica ou “global” das grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação. Seu valor teórico, portanto recai precisamente sobre sua recusa de uma perspectiva do “aqui“ e “lá”, de “então” e “agora” , de um “em casa” e “no estrangeiro”. Global neste sentido não significa universal, nem tampouco algo específico a alguma nação ou sociedade. Trata-se de como as relações transversais e laterais que Gilroy denomina “diaspóricas” (GILROY, 1993) complementam e ao mesmo tempo des-locam as noções de centro e periferia, de como o global e o local se reorganizam e moldam um ao outro (HALL. 2003, p. 109).
Com o discurso pós-colonial as noções de uma identidade metamorfoseiam-se em um jogo conjuntural de identificações. As fronteiras antes pareciam seguras tornam-se mais porosas, nessa narrativa apresentada vemos as diferenças culturais tornam-se fluidas e se interpenetram. (STAM e SHOHAT, 2005)
A personagem feminina, a heroína do filme de Alassane não é como uma mocinha da maioria dos filmes de faroeste que aguarda ser salva pelo cowboy destemido. Ela também faz parte do grupo, como companheira do protagonista e seu nome é “Rainha Cristina”. Como mostram os bastidores registrados por Moati, ela se prepara para acompanhar os outros cowboys africanos pela savana aprendendo a usar a arma quando necessário. Em alguns Westerns americanos da década de 30, os papéis femininos se transformam, foi criada a figura da cowgirl em alguns filmes (VUGMAN, 2006). Em alguns Westerns musicais a heroína da trama torna-se parceira do cowboy e abandona a imagem de moça recatada e obediente.
Ao passo que a era pós-independência dos países africanos projetou suas próprias diásporas e movimentos migratórios para a formação de culturas fluidas. Como pontuam Shohat e Stam em “Crítica da Imagem Eurocêntrica”,
o campo de expansão dos estudos interculturais comparados como os estudos da diáspora africana e os estudos pós-coloniais reconhecem tais dispersões, movendo-se além da nação-estado para explorar os transnacionalismos palimpsésticos que foram resultado do colonialismo (SHOHAT e STAM, 2006, p. 40).
Stam (2003, 2006) discute o “multiculturalismo” enfatizando que esta é uma palavra que não possui uma essência, mas que aponta para um debate. Partindo da perspectiva desse autor, a ideia de multiculturalismo é bastante simples, dizendo respeito às múltiplas culturas existentes no mundo e às relações históricas a que se submetem, não excluindo as relações de subordinação e de dominação. No entanto, a proposta que tem defendido aponta no sentido de um multiculturalismo radical ou policêntrico. A partir dessa proposição de Robert Stam torna-se necessário pensarmos em uma restruturação assim como, em uma reconceitualização das relações de poder entre as comunidades culturais. Parte da ideia de que questões do multiculturalismo, colonialismo e raça não devem ser percebidas de forma guetizada, mas pensadas “em relação”. As comunidades não existem de forma autônoma, mas em uma rede densamente tramada de relacionalidade.
A noção de que somente as cidades multiculturais do Primeiro Mundo são diasporizadas é uma fantasia que só pode ser sustentada por aqueles que nunca viveram nos espaços hibridizados de uma cidade “colonial” do Terceiro Mundo (HALL, 2003, p. 114).
As até então nomeadas como comunidades minoritárias, são por uma perspectiva multicultural policêntrica identificadas como participantes ativas localizados no próprio centro de uma história compartilhada e conflituosa (STAM, 2003). Portanto, essa perspecrtiva se caracteriza como celebratória, ao passo que também rejeita o conceito de identidades fixas, percebendo-as como múltiplas, instáveis e historicamente situadas. E como uma última forma de caracterizar essa perspectiva, Stam diz que ela é recíproca e dialógica, pois “a totalidade dos atos de troca verbal ou cultural ocorre não entre indivíduos ou culturas essenciais, discretos e delimitados, mas entre comunidades permeáveis e em permanente modificação” (STAM, 2003, p.299).
O documentário realizado sobre o trabalho de Moustapha Alassane, que tem como subtítulo ”o cineasta do possível”, foi apresentado no Fespaco4 em 2010. Em uma das cenas do filme o animador aparece trabalhando em casa, onde possui um computador no qual está desenvolvendo o projeto de uma nova animação. É nesse espaço que atualmente, ele dedica-se a ensinar animação aos jovens da cidade de Tahoua onde reside, há 550 km de distância de Niamey.
Em várias declarações públicas, Alassane fala sobre trabalho que realizou no Instituto de Investigação e de Ciências Humanas de Niamey, criado por Jean Rouch, e ressalta que um dos desejos do etnógrafo francês era de que naquele espaço o cinema fosse reinventado. Trabalhando em parceria com outros atores, pesquisadores e cineastas africanos como Oumarou Ganda, Inoussa Ousseini, Djingarey Maïga, Moustapha dirigiu o setor de Cinema da Universidade de Niamey durante 15 anos.
São inúmeras as razões de filmar dos cineastas africanos contemporâneos, como afirmou Mahomed Bamba (2009) em um artigo sobre “Mostra de Cineastas Africanos que compõe o Catálogo do Forumdoc.BH.2009 (13º. Festival do Filme Documentário e Etnográfico). “Todos os cineastas africanos têm em comum a escolha de fazerem filmes como uma forma de engajamento social, mas também como um compromisso do sujeito-cineasta com ele mesmo e com a realidade circundante”. (BAMBA, 2009, p. 188). Dessa forma, se juntam ao cinema do mundo, realizando como autores suas obras fílmicas e dirigindo-se a diversos públicos.
Como fica então a questão da espectatorialidade quando nós no contexto de recepção diaspórica assistimos o filme “O retorno de um aventureiro”. Como afirmam Stam e Shohat (2005), o fato de a identificação espectatorial ser cultural, discursiva e politicamente descontínua (…) sugere uma série de hiatos. E o fato do espectador ser o “locus” de diferenças e contradições em constante proliferação não significa que também não ocorra um processo oposto de articulação de identificações e alianças imaginárias transnacionais e transculturais” (STAM e SHOHAT, 2005, p. 421).
Procurando traçar algumas reflexões finais sobre a trajetória deste cineasta nigerino apresentada aqui, acredito que o caráter inovador do trabalho que realiza e que coincide com o período de criação e início de uma consolidação de experiências dos cinemas africanos, se assim podemos falar, está na sua busca subjetiva da liberdade de criação.
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