Orfeu da Conceição: uma tragédia não negra
No filme Crimes and Misdemeanors (1989), escrito e dirigido por Woody Allen, há uma cena em que o personagem Lester – um bem-sucedido e pernóstico produtor de cinema e televisão, interpretado por Alan Alda – sintetiza, em resposta a uma pergunta que um jovem lhe dirige, sua teoria sobre a comédia. Lester narra que um aluno, durante aula em Harvard, lhe propõe a seguinte indagação: “Whats’s comedy?”. Sua resposta: “Comedy is tragedy plus time”. Lester argumenta que só com o passar do tempo é que se pode desentranhar a comédia, o riso, de eventos ou situações trágicas.
Qual a razão de começar esse texto sobre a “tragédia carioca” do poeta Vinicius de Moraes com a lembrança dessa passagem fílmica? Ora, não se trata aqui, obviamente, de promover a gargalhada com relação ao Orfeu da Conceição[2], mas antes, de reconsiderar, tirando vantagem do tempo transcorrido desde sua criação e de sua primeira encenação, alguns aspectos contidos na peça de Vinicius de Moraes que, hoje – e a partir de uma suspeição não digo irônica, porém menos reverente e também não leniente com as luzes da presente efeméride – podem ampliar os sentidos da importante obra, mesmo que alguns desses novos sentidos a coloquem, provisoriamente, em cheque. A contrapelo de uma disposição de cânone como coisa normativa, o que me interessa aqui é menos reproduzir o cômodo beija-mão a um modelo que sempre aprendemos a apreciar do que prestar-lhe o respeito crítico da análise.
Se para a suspicácia elitista o epíteto carioca poderia indicar “uma limitação à universalidade do trágico”[3], imagine, caro leitor, se o subtítulo escolhido à obra fosse Tragédia negra; o epíteto ou qualificativo negra para tragédia, segundo esse purismo aristotélico lido às pressas, talvez se convertera mais disruptivo e iconoclasta do que carioca, porque mais do que este último, aquele epíteto se mostraria menos adequado – numa perspectiva canônica – para suportar valores não-tópicos e atemporais do homem, valores da tragédia.
As questões que estão em causa no âmbito desse ensaio dizem respeito a dois aspectos, a saber, em primeiro lugar Orfeu da Conceição se realiza, em termos de modelo compositivo, a partir das determinações de uma “plagiotropia”[4] (êxito: signans o aspecto sensível do signo estético) isto é, Vinicius, como um típico modernista tardio, serve-se de dados da tradição tendo em vista sua transfiguração no presente. A transformação do modelo trágico e do mito grego de Orfeu – herói que inspeciona o Hades arrastado pelo amor – nesse outro Orfeu, sambista do morro carioca, imaginado pelo poeta brasileiro, diz respeito a uma transposição intersemiótica. Para Roman Jakobson a tradução intersemiótica “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais”[5]; significa a passagem de determinada informação de um sistema de signos para quaisquer outros, por exemplo, da poesia para a música, a dança, o cinema ou a pintura, ou vice-versa como complementa Julio Plaza. Trata-se de uma transação de forma e fundo entre códigos diferentes onde um faz as vezes do outro. Vinicius de Moraes, em Orfeu da Conceição, realiza aquilo que Haroldo de Campos chamou de transcriação (tradução icônica), ou seja, a partir da apropriação da narrativa mitológica grega cuja tradição é oral (signo verbal) o poeta propõe sua obra que se multiplica em diversos registros de linguagem, verbais e não verbais. Assim, Orfeu da Conceição, essa tradução lato sensu, é, a um só tempo, teatro, poesia, música, dança, cenografia, etc. Essa transação de signos garante ao Orfeu de Vinicius uma disposição para produzir outros significados sob a forma de qualidades e de aparências, tudo por analogias. Julio Plaza argumenta, ainda, que em tal operação “trata-se de fazer aparecer o segundo modelo (a tradução) similar ou equivalente ao primeiro, porém, com estrutura diferente e equivalente”.[6] Uma virtuosa hesitação entre identidades, semelhanças e contrastes. No estudo Deus e o diabo no Fausto de Goethe, precedido de uma transcriação das cenas finais do Segundo Fausto, Haroldo de Campos, ao analisar a rosácea de referências contidas no drama barroco do poeta alemão, chama a atenção para a situação de um “movimento plagiotrópico da literatura”[7] que, por uma série de sendas, liga-se aos problemas da tradução.
Esse mesmo movimento, podemos dizer, serve de base para a operação transpositiva com que Vinicius de Moraes leva a efeito a recriação do mito grego e seu viés trágico em termos de uma tragédia carioca ou negra consubstanciada nas cenas da paixão (pathos) de um sambista do morro. A antinomia clássica entre original e cópia deve ser colocada de lado, esses extremos são postos em relação crítica. A plagiotropia se constitui como um tipo de expediente em que não está em causa determinar o “autêntico” e o “falso”; o movimento plagiotrópico tem um estatuto próprio. Assim, de um lado, o passado original (mito órfico, signo de partida) pode ser lido no presente expropriativo (a peça do poeta brasileiro, signo de chegada) como uma versão possível desse presente. E, de outro lado, é como se Orfeu da Conceição realizasse na história presente das formas poéticas, por mimese ou imitação, o que estava prefigurado ou anunciado no mito grego de Orfeu. O poeta-crítico Haroldo de Campos haure sua visão de plagiotropia nos traços etimológicos, isto é, o sentido vem do gr. plágios, oblíquo; que não é em linha reta; transversal; de lado. Todavia, a partir de Marshall McLuhan, Haroldo busca também uma analogia generosa com a ideia de paródia como “canto paralelo”[8], no sentido em que paródia, desde que lida como “uma nova visão (…) seria um caminho que se desenvolve ao lado de outro caminho (para hodos)”[9]. Para uma visão mais tradicional ou convencional fica difícil reverter as acepções depreciativas relativamente ao que o senso comum entende como plágio e paródia. Por essa razão parece forçada a livre etimologia imaginada por McLuhan que “faz derivar paródia de hodós (caminho), não de odé (ode, canto)”.[10] Por romper com o princípio da originalidade, espécie de pedra filosofal do romantismo, Goethe, ao praticar avant la lettre o conceito desse movimento plagiotrópico, fazendo uma expropriação paródica em seu Fausto, foi acusado por Byron de ter plagiado a canção de amor da louca Ofélia (Hamlet, IV, 5). A resposta de Goethe à acusação é de uma objetividade exemplar: “Então meu Mefistófeles entoa uma canção de Shakespeare? E por que não poderia fazê-lo? Por que eu me deveria dar ao trabalho de encontrar algo próprio, quando a canção de Shakespeare cabia à maravilha e dizia exatamente aquilo que era preciso?”.[11]
Dentro de certos limites, e se concordarmos com essa noção de movimento plagiotrópico, Vinicius de Moraes em Orfeu da Conceição procede a uma operação análoga àquela levada a cabo por Goethe. Sua transposição do mito grego de Orfeu – no caso uma espécie de ready made, em sentido amplo, pois se trata de um signo dado – para o ambiente e a cultura do morro carioca põe de lado o fervor da originalidade e, como se fora uma tradução em sentido moderno, enquanto recusa a fidelidade à essência da tradição como que heleniza o presente do sambista negro. Vinicius desentranha para o seu tempo a parte viva do acervo e, desse modo, na verdade, a (re)inventa. Como leitor interessado (parcial) desse passado mais uma vez novo, o poeta tenta ser um intérprete de aspectos construtivos do legado literário, com vistas a transportar para a sua época o substantivo de uma tradição em movimento e onde se vê naturalmente implicado. Nesse jogo indecidível entre o próprio e o alheio, o drama de Vinicius instaura, a um só tempo, seus índices de singularidade estética sem deixar de se referir o tempo inteiro ao modelo órfico do poeta capaz de descer aos infernos para resgatar à morte o objeto de sua paixão.
O segundo tópico que me interessa discutir em Orfeu da Conceição diz respeito ao seguinte: desde uma perspectiva de desvios ou de tensões semânticas, a peça aponta hesitantemente para o alinhamento acrítico com a estereotipia (fracasso: signatum, o aspecto inteligível do signo estético) relativa ao legado cultural e religioso afro-brasileiro. Em outras palavras, mesmo que parte da sua relevância seja resultado de um corte sincrônico e formal no fluxo da tradição e que, portanto, a faria, a princípio, irredutível ao que quer que seja, Orfeu da Conceição é obra que também se define historicamente, já que se refere ao viés estético referendado pelo meio literário que, de resto, compõe esta representação especular, embora com suas particularidades, dos conflitos étnicos e sociais presentes sob o arco ideológico. Essa questão e sua ambiguidade constitutiva se originam, me parece, na imagem venal do Vinicius de Moraes cantor mitômano do amor e da fraternidade. Em Vinicius, no caso da tópica amorosa, a mulher, enquanto estilema desse formalismo sentimental de certa tradição poética, ainda tem muito que ver com a musa-mulher da poesia trovadoresca e que está nas antípodas da mulher-súcubo, demonizada, por exemplo, como feiticeira pelo pensamento medieval inquisitorial. Aliás, no Orfeu da Conceição esses tipos femininos díspares estão emblematizados respectivamente na mulata Eurídice e na negra Mira. Mais adiante tratarei da manifestação verbal desse atrito entre as duas figuras femininas no interior da peça.
A Eurídice da tragédia carioca se encaixa na figura trovadoresca da mulher que excede a todas do mundo em formosura (de que resulta o tema do elogio impossível e, por extensão, do amor impossível). O sambista Orfeu cumpre, igualmente, o rito do trovador que despreza todos os títulos, todas as riquezas e a posse de todos os impérios e pretendentes, indo parar temerariamente na mansão dos mortos para resgatar sua musa e amante. Já no tocante à figuração universalizante desse amor – que desborda as margens da parelha romântica e que se vincula, antes, a uma frátria – o mesmo eixo mitômano do caráter de Vinicius de Moraes é que o levou a cunhar esse enunciado erístico com que se define, a partir de certo momento, como sendo “o branco mais negro do Brasil”. Enunciado, diga-se, que mais irriga o senso comum do preconceito amistoso da formação brasileira do que o põe em causa.
Dar crédito a essa afirmação significa pôr a perder o debate que diz respeito às tensões da diferença. Vinicius, entre cortês e simplista, dilui o conflito frutuoso na convicção desse universal enquanto clichê de congraçamento. Compare-se a boutade do poeta brasileiro com a confissão sartreana que, por assim dizer, não faz vista grossa ao foco do problema e diz assim: “el blanco ha gozado durante três mil años del privilegio de ver sin que lo vieran”.[12] Notável a percepção do filósofo que se vê de maneira não edulcorada na prática dessa invisibilidade de narrador onisciente e que, por todos os meios, inventa, através da reificação de clichês de negação da diversidade étnica, o não branco como o adequado “homem invisível”, homem irrelevante.
Luís Tosta Paranhos defende a noção de que o “erro de linguagem”[13] – um vacilo de interpretação – está na fonte do princípio trágico. Tomando como ponto de partida essa proposição, avento a possibilidade de ler por detrás ou na origem mesmo da tragédia de Vinicius de Moraes uma espécie particular de tragicidade (na acepção de Paranhos o termo quer significar “qualidade específica do discurso trágico”[14]). Dito de outro modo, Orfeu da Conceição dá continuação ou reproduz, através de generalizações apressadas, uma mirada convencional a respeito de algumas invariantes da cultura negra. Por esse ângulo entendo a obra como um fracasso interpretativo, pois ela se constrói, em boa medida, calcada sobre uma rede de estereótipos, de implicâncias e de enganos que apontam para o desfecho trágico de nossa própria realidade onde os prejuízos de uma tensão étnica, que atravessam a história da nossa formação, são escassamente discutidos. É óbvio que, como obra de arte, Orfeu da Conceição não tem obrigação de encontrar uma solução para isso. Todavia, o ambiente no qual ela deita suas raízes se esforça em não nos fazer esquecer de sua autonomia discursiva, reforçando com isso ideias feitas e padrões fixos embutidos em muitas dessas obras que, espelham e irrigam, sim, entre outros, o preconceito naturalizado contra o negro na sociedade brasileira. E o perverso disso é que essa depreciação formada a priori, essa simplificação por via dos ardis da memória se efetiva graças à aura do artístico, do literário.
É nessa perspectiva que um conteúdo trágico, porém de outra ordem, informa a tragédia carioca/negra do poeta Vinicius de Moraes, talvez à sua revelia. Mas no caso do poeta pode-se imaginar um contraveneno ao equívoco de linguagem, que seria sua consciência de linguagem apoiada na lição estética de que não há uma coincidência entre a palavra e a coisa designada por ela. Por essa razão o equívoco de linguagem radica num crédito excessivo dado ao discurso verbal como o signo tradutor por excelência. A tarefa poética ensina que tudo é equívoco ou ambíguo, a começar pela própria linguagem. Aproveito a oportunidade para evocar um brevíssimo poema de José Paulo Paes intitulado “Lembrete cívico” que cabe à perfeição como ilustração ao dilema subjacente à linguagem e sua determinação para a nomeação, essa tecnologia impura, porosa a uma série de forças em conflito, diz o epigrama: “homem público/ mulher pública”[15]. As demarcações e os mecanismos de controle de territórios e de espaços de poder começam já no étimo, no léxico. No poema em causa, o qualificativo “público” assume acepções radicalmente opostas dependendo do substantivo que esteja a acompanhá-lo. José Paulo Paes faz uma leitura crítica da “ambiguidade” com que a sociedade, dependendo da situação, utiliza-se do referido qualificativo na construção dos seus discursos. Vale dizer, aí temos um evidente equívoco de linguagem com consequências trágicas.
“A fatalidade não está situada fora da ação do herói. Seu destino reside no desejo de liberdade de ação. Como, no entanto, esse desejo está fundamentado em erro de julgamento (válido ou não), transforma-se em fatalidade”.[16] Ou, ainda, “o fatalismo não reside no acontecimento nem na liberdade em si, mas na(s) palavra(s) pronunciadas(s) e interpretada(s) erroneamente”[17]. Sem deixar de lado uma parcela de ironia, digamos que esse pequeno conjunto de leis sobre o que põe em movimento o processo trágico pode servir de sistema de aferição para uma abordagem crítica (sincrônica e vertical) dos sobrepassos que, hoje, podemos acentuar na peça de Vinicius. Não nos esqueçamos de que, segundo Lester, “Comedy is tragedy plus time”.
“A tragédia instaura-se na sequência de tentativas de apreender os signos”.[18] A tresleitura que não se situa, espécie de decodificação sem margens dos signos à sua disposição, pode engendrar um evento trágico. Contudo, em Orfeu da Conceição, tal “tentativa de apreender os signos” ou de figurar/transfigurar alguns dos signos da cultura afro-brasileira resulta tributária das convenções da ideologia dominante. Pode-se, entretanto, relevar esse limite interpretativo do poeta invocando a moldura da época. Pode-se, inclusive, reconhecer que, para o momento de então, o texto de Vinicius de Moraes cumpriu, ao lado de outras manifestações teatrais, uma função desbravadora. Antes mesmo que Abdias do Nascimento trouxesse a público com o TEN (Teatro Experimental do Negro) a questão do mercado de trabalho para o ator negro, Vinicius de Moraes já estava às voltas com a redação do Primeiro Ato do seu Orfeu. O mesmo Abdias, na introdução do seu Dramas para negros e prólogo para brancos (1961), declara que o poeta “estava estudando profundamente o tema de Zumbi, para uma peça futura”.[19] Enfim, deve-se louvar os esforços de Vinicius na abordagem desse “tema” que lhe foi tão caro e, no qual, precisou se enfronhar dobrando-se longamente sobre o objeto de estudo com uma mirada plongèe (termo da gramática cinematográfica que designa o plano onde a câmera enquadra o ator ou um objeto de cima para baixo). Entretanto, o ponto de vista diz muito sobre o resultado de tal esforço, isto é, a obra, com efeito, não consegue falar de-dentro, o texto fica no meio do percurso. Orfeu da Conceição representa o movimento inacabado de uma subjetividade que não alcança presentificar uma outra subjetividade, já que o narrador não se sente implicado (não se reconhece) na limitação que afeta ambas as subjetividades, isto é, a limitação de só conseguirem viver na intransigência.
Os personagens de Orfeu da Conceição são e não são verossímeis, afinal o poeta parece lidar mais com estereótipos, ou com tipos. Seu ponto de partida talvez nem seja exclusivamente o da tradição das convenções dramatúrgicas onde os caracteres das personagens devem ser potencializados e sintetizados dentro dos limites do entrecho e da performance do espetáculo, não; essas convenções e tipos, Vinicius acabou recuperando-os, talvez um pouco inconscientemente, aos discursos e aos atos da estupidificação que, mais do que explicações da vida, são, infelizmente, parte inextrincável dela. Analisando a personagem no âmbito da ficção romanesca Antonio Candido afirma “que há afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança”.[20] Além disso, o crítico sustenta que, não raro, notamos, no trato direto com as pessoas, “o contraste entre a continuidade relativa da percepção física e a descontinuidade da percepção, digamos, espiritual, que parece frequentemente romper a unidade antes apreendida”.[21] Ou seja, o ente de ficção ao se movimentar nesse intervalo de afinidades e diferenças com o ser vivo presentifica em sua atuação o sentimento de verdade existencial de uma pessoa. Simula esse ser uno que o olhar ou o contato nos apresenta e, à medida que mais nos aproximamos de sua interioridade estetizada, mais notáveis são as variações de modos-de-ser e de qualidades por vezes contraditórias que exercita em resposta às circunstâncias.
Eugène Ionesco afirma que o personagem trágico não muda, se rompe ou se quebra. Seu destino experimenta uma revolução no espaço de uma, duas horas no máximo. Isso justifica em parte o desenho metonimizado, elíptico, reduzido ao essencial, das figuras em atuação em uma montagem teatral e, particularmente, no Orfeu da Conceição. É claro que as personagens vivem não no mundo real, mas na realidade cênica de um palco. Entretanto, toda essa compressão exigida pela linguagem teatral, torna mais previsível ainda os gestos e as atitudes do elenco negro da peça; são reféns, em fim de contas, não de um código estético, mas de uma superestrutura social da qual o texto de Vinicius em sua mimese involuntária não consegue escapar.
Atento à questão da verossimilhança, Vinicius tenta alcançar esse “sentimento de verdade” recriando o mito órfico no ambiente do morro carioca do seu tempo – ainda assim, as paisagens, humana e física, são descritas em pauta idílica. O apelo que faço à consideração dos personagens, em Orfeu da Conceição, como figuras em situação liminar com a estereotipia, vem da ideia de que o estereótipo se situa indecidivelmente entre o “ser vivo e os entes de ficção”.[22] Por isso eles são e não são verossímeis. Estereótipo: essa catalogação de um conceito, de um pensamento-ideia, na faixa mais estreita de seu significado. A expectativa prevalece e se projeta sobre a curiosidade pelo outro. Hábitos de julgamento, generalizações falaciosas. Lugar-comum, modelo, padrão básico.
Luiz Tosta Paranhos se refere ao interesse de Vinicius pelo “ambiente do favelado”[23] usando como exemplo uma das parcerias do poeta com o músico Tom Jobim e cita o trecho de “O morro não tem vez”: “Quando derem vez ao morro/ toda a cidade vai cantar”. Paranhos arremata: “Sem dúvida, Orfeu da Conceição é uma abertura de caminho para a voz do morro”.[24] A relação direta estabelecida entre “ambiente do favelado”, metáfora social e cênica das personagens (negros) da peça, e a tragédia carioca por meio da qual é transmutado o mito grego de Orfeu não escapa ao modus faciendi das convenções de classe. Por via de consequência fica evidente uma visão patriarcal do poeta que, apesar de representar, por assim dizer, uma voz do asfalto (voz de branco bem-intencionado?), alcança, mercê de uma analogia também órfica, a condição heroica de antena dessa raça de que não é filho e, assim, falar do que inere a esse mundo, mas tão-só a partir de uma ótica onde a coisa é lida pelos seus efeitos. Subjaz à nota do estudioso a noção de que Orfeu da Conceição, além de cumprir os requesitos de obra estética, atina, subsidiarimente, para o aspecto social apresentando a “problemática do negro”. Mas apresentando-a, afinal, para quem?
E o que é, enfim de contas, essa “problemática do negro” senão algo que à força de tanta reiteração (ardis de séculos de representações e simbologias no mínimo duvidosas) nos faz ratificar sua existência como fato consumado. Aprendemos a reagir infantilmente à África-tipo, feérica, selvagem e bela, e suas sinédoques – o escravo, o negro liberto, a mucama, o sambista e a cabrocha – às vezes temendo-as e outras vezes cedendo ao elogio de fachada. O mito fundante da democracia racial está na raiz da nossa imagem como nação. E sequer suspeitamos de que nossa tradição, graças também ao engenho de muitos autores e intelectuais, acabou inventando um “problema” na tentativa de fazer um outro invisível aos olhos de todos. Ou seja, o que sempre tivemos e ainda temos mesmo – deixando de lado superciliosos eufemismos – é uma imensa “problemática do branco”. Desse branco que segundo Sartre, cabe mais uma vez lembrar, gozou durante três mil anos do privilégio de ver sem que o vissem. O filósofo complementa, “el hombre blanco, blanco porque era hombre, blanco como el dia, blanco com la verdad, blanco como la virtud, iluminaba la creación como una antorcha, sacaba a luz la esencia secreta y blanca de los seres”.[25] Não obstante a boa vontade ou as boas intenções de Vinicius de Moraes, infelizmente, não se percebe em Orfeu da Conceição o olhar do negro que, quem sabe, permitira ao onisciente homem branco um tipo de observação que o fizesse olhar, em primeiro lugar, para dentro de si.
Páginas atrás fiz referência ao embate simbólico entre as personagens Eurídice e Mira, isso porque na peça elas não se encontram em nenhum momento. Entretanto, o antagonismo vem à tona essencialmente nas imprecações de Mira ou em seus diálogos sempre beligerantes com Orfeu que a abandona para desposar Eurídice. A não aceitação, por parte de Mira, da nova paixão de Orfeu é atravessada pela aceitação da naturalização do preconceito ou sua inconsciência no próprio discurso revoltado de mulher abandonada que ela reifica. Mira se dirige a Orfeu e diz, por exemplo, o seguinte: “Talvez você precise/ De alguém pra refrescar sua memória/ Alguma suja, alguma descarada/ Alguma vagabunda sem vergonha/ Alguma mulatinha de pedreira/ metida a branca”.[26] Quando Mira percebe que, de fato, perdeu seu amado Orfeu para Euridíce decide apelar à desqualificação da outra pela cor da pele, “mulatinha metida a branca”, mas sem esconder o despeito, a inveja. Ao contrário de Mira que é negra, Eurídice resta imantada com os epítetos “morena”, “mulata”. O preconceito introjetado na rival Mira a faz reagir violentamente porque Eurídice teria a vantagem de ser “mais clara”. Eurídice suplanta em beleza as pretendentes de Orfeu por esse detalhe, por esse dégradé para o mais claro. Cabe lembrar aqui o baixo índice de tolerância do senso comum com relação ao negro como possibilidade de autoimagem. Em contrapartida estamos familiarizados com a maior tolerância desse mesmo senso comum com relação à morenidade enquanto clichê identitário da “brasilidade”. A idealização de trovador medieval com relação à figura da mulher em Vinicius o impediu de visualizar a musa de Orfeu como uma mulher negra, mas a rival, essa Mira vingativa e ciumenta, espécie de Othelo de saia rodada, essa, sim, é negra sem meios-tons. Na versão cinematográfica esses papéis, caracteres e atributos físicos se mantêm idênticos aos da peça de Vinicius de Moraes. A Eurídice brasileira, menos negra que mulata, menos mulata que morena, serve ao modelo da senhora que enseja o amor leal, inatingível, sem recompensa (porque ela deve ser a dama sans merci).
Por sua vez, o temperamento de Mira nos é apresentado como sendo tão vil e irascível que chegamos a achar plausível que suas palavras tirem do sério o poeta do morro e os dois acabem entrando num pugilato; repete-se a tradicional cena da lição aplicada à mucama abusada e respondona. Vejamos a cena em questão:
MIRA
Vendido! Porcaria!
Filho duma cadela! Vai pro mato
Pegar a tua Eurídice!
(A essas palavras Orfeu avança sobre ela e agride-a a bofetadas. A mulher reage e os dois lutam violentamente por um instante. Numa separação momentânea, Mira, atemorizada, recua). [27]
Outros dados importantes para uma releitura crítica dizem respeito aos indisfarçáveis ecos de um cristianismo demiúrgico na construção desse Orfeu negro. Rival das divindades. É bem possível que Vinicius tenha incorporado essa informação, esse lastro de fé religiosa, com intencionalidade. Em determinado momento ouvimos Orfeu quase orar:
Cada homem no morro e sua mulher
Vivem só porque Orfeu os faz viver
Com sua música! Eu sou a harmonia
E a paz, e o castigo! Eu sou Orfeu
O músico! [28]
Entretanto, talvez por isso mesmo transpareça na superfície textual da peça certa dificuldade em atinar para as singularidades de um outro fenômeno ou parti pris religioso. Vejamos mais clichês supersticiosos sobre a religiosidade afro-brasileira enredados ao texto de Vinicius de Moraes.
ORFEU
Orfeu é muito forte! Orfeu é rei!
Vá embora, Senhora!.
(Põe-se a tocar furiosamente em seu violão, em ritmos e batidas violentos. Os sons, à medida que se avolumam, vão criando uma impressão formidável de magia negra, de macumba, de bruxedo). [29]
Notar a imagem, persistente ainda hoje, que consagra as manifestações rituais e as mitologias religiosas de origem africana como coisas que têm parte com o demônio, com o cujo. Para o senso comum o compósito “magia negra” se insere numa área semântica indicativa de feitiço cuja intenção é causar danos, propondo-se a destruir ou ferir outrem.
Segundo Ato – cena no clube d’Os Maiorais do Inferno. Transposição livre para o mundo do morro carioca da descida de Orfeu à mansão dos mortos, o Hades grego, em busca de Eurídice. Destaque para dois tópicos: na cena em tela, embora o clube “Os Maiorais do Inferno” simbolize uma agremiação carnavalesca, tudo o que acontece em seu interior evoca um culto religioso de viés sincrético-fetichista, a princípio ou pretensamente, afro-brasileiro. Essa metamorfose (que para todos os efeitos é interessante e diz algo sobre as múltiplas fontes da cultura negra que costumam ser conjugadas de modo simplista), no entanto, transfere à religiosidade afro-brasileira acepções batidas e rebaixadas, e repisa a ideia feita preconceituosa onde esses cultos e sua signância ritualística são interpretados mais uma vez como “coisa do demônio”, vertigem infernal, isto é, rente ao imaginário que situa tal manifestação nas antípodas do céu católico. Enfim, o que vemos se desenrolar diante de nossos olhos não passa de uma representação distorcida e definitivamente clichê dos signos que dizem respeito ao aspecto filosófico, espiritual e místico da cultura afro-brasileira. Estereotipia. A versão fílmica francesa Orphée Noir (1959), dirigida por Marcel Camus, por sorte não cai nessa armadilha – aliás, diga-se, de passagem, que esse é único ponto relevante da obra. O diretor teve consciência suficiente para não identificar o rito afro, espécie de macumba estilizada (onde através do transe e da possessão Orfeu estabelece contato com a mansão dos mortos) com esse inferno católico, cristão, a que Vinicius de Moraes sucumbiu acriticamente. No Orfeu da Conceição a descrição da cena do clube tem coisas do tipo: “Num trono diabólico”; “Esse casal [Plutão e Proserpina] mefistofélico”.[30] Em uma das rubricas dramáticas o poeta escreve que o maioral e sua consorte devem “se caracterizar pelo tamanho e pela gordura, gente gigantesca”.[31] É interessante relacionar essa observação do narrador com uma passagem da Divina Commedia, o sacrato poema; refiro-me ao Canto XXXIV que narra a saída de Dante e Virgílio do Inferno. Os poetas deixam o reino ínfero subindo pelo corpo de Belzebu, esse verme imenso que perfura a terra, e seu tamanho é tão descomunal que ele sequer percebe as minúsculas criaturas agarradas ao seu pelame. Retomando o fio de Orfeu da Conceição na cena do clube d’Os Maiorais do Inferno, temos ainda o séquito do casal mefistofélico Plutão e Proserpina, séquito que dança, canta e bebe num transe contínuo, estão possuídos. A possessão, segundo a visão cristã, exige o antídoto do exorcismo, mas nos cultos afro-brasileiros a possessão é o momento exusíaco da interlocução entre o homem e o orum, o reino dos mortos da mitologia iorubá.
Interpelando energicamente a Orfeu que entra no recinto dos Maiorais do Inferno, brandindo o punho Plutão vocifera: “Em nome do Diabo, responde, quem sois tu?”.[32] Nas rubricas dramáticas nos deparamos com as intencionalidades de forma e fundo do narrador. “A função narrativa [que] no texto dramático se mantém humildemente nas rubricas (é nelas que se localiza o foco), extingue-se totalmente no palco, o qual, com os atores e cenários, intervém para assumi-la”.[33]
Também no Segundo ato, que se passa todo no clube d’Os Maiorais do Inferno, um detalhe a ser investigado: ao contrário do que acontece no Primeiro e no Terceiro, neste Ato os personagens falam em prosa e não em versos; os versos sofreriam uma espécie de interdição, uma proibição de soarem no recinto presidido por Lúcifer? No romance Dom Casmurro, de Machado do Assis, o volátil personagem Marcolini, um cantor de ópera já aposentado, explica/representa a criação do universo, do mundo, como uma ópera onde “Deus é o poeta, [e] a música é de Satanás”. E como letra de música (leia-se: o samba do Orfeu negro) não é bem poesia, é lícito dizer que a letra tem mais relação com o profano do prosaico e do coloquial (e sua corporeidade coreografada) do que com o sagrado que, em seus estados mais remotos, relacionamos à poesia e ao inefável.
No início do Terceiro Ato entra em cena o Coro que canta a paixão de Orfeu (na acepção relativa à derivação por metonímia que trata do martírio de Cristo, dos santos); não é difícil vislumbrar traços hagiográficos (traços ambivalentes, o devotamento tanto à arte, quanto ao amor à Eurídice como sacrifícios do intelecto) na trajetória do herói, vejamos o que dizem duas das vozes do Coro: “Quarta voz – E muito padeceu/ Sob o poder maior da poesia…/ Quinta voz – E foi pela paixão crucificado…”.[34] Mais adiante o Coro, em uníssono, entoa: “Desceu às trevas, e das grandes trevas ressurgiu à luz, e subiu ao morro onde está vagando como alma penada procurando Eurídice…”.[35] Notar, nesse momento, a frequência da conjunção aditiva e que, na escrita dos evangelhos, sabe a uma marca de estilo. Assim, a metáfora alusiva à santidade de viés cristão de Orfeu se materializa na própria estrutura da linguagem que evoca, nesse trecho, analogamente ao texto bíblico, a construção por justaposição do discurso poético-dramático. Em outra situação e décadas antes de Vinicius de Moraes, Cruz e Sousa escreveu o poema “Cristo de bronze” (incluído no livro Broquéis, 1893). Sob a metáfora do sarcasmo Cruz e Sousa põe em questão uma glamorização desmedida associada ao pathos desses “Cristos ideais, serenos, luminosos”, adornados com pedrarias, ouro, marfim e prata. Em contrapartida, o poeta negro – ou o seu ego scriptor – chama a atenção para o Cristo de bronze que, em sua ótica, funciona como contrametáfora a valorizar um “Cristo humano, estético, bizarro,/ Amortalhado nas fatais injúrias…”. [36]
Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.
Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.
Cristos de pedra, de madeira e barro …
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injúrias …
Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias! …
Não me parece inviável uma leitura onde se considere que os termos “tragédia carioca” podem dizer disfemicamente ou que representem por ausência, por apagamento, os termos “tragédia negra”. No prefácio ao seu drama Vinicius reconhece a dívida com relação à cultura afro-brasileira, mas a refere apenas no último parágrafo, talvez porque julgasse ocioso referir o lastro da cultura negra já que esse assunto seria, por assim dizer, visível a olho nu. De outra parte, tal agradecimento, quase como uma nota de pé de página, acaba por ser, em fim de contas, coerente com a tradição, ainda mais se aceitarmos o critério do poeta Oliveira Silveira (1941-2009) que, segundo suas considerações, experimentos como Orfeu da Conceição entrariam na conta de obra de cunho negrista. Cito alguns exemplares dessa vertente negrista: os poemas negros de Urucungo de Raul Bopp; “Irene no céu” de Manuel Bandeira; “Essa Negra Fulô” de Jorge de Lima. Tais obras, na perspectiva crítica de Oliveira Silveira, são antes objetos verbais que atendem a uma temática negrista, isto é, experimentos eventuais de linguagem no percurso textual desses autores que, a rigor, se prestam a simpatizantes (antipatizantes alguns) do “assunto”. Em outras palavras: brancos escrevendo sobre negros ou sobre elementos da cultura afro-brasileira com vistas à ampliação do repertório e do seu discurso de poder, no sentido em que esse discurso, talvez por ser estético, restituiria a eles (os objetos, o assunto da vertente negrista) a “dimensão humana” supostamente usurpada, ao longo do tempo, por uma série de eventos históricos e sociais.
Portanto, do ponto de vista da diluição da ideologia subjacente ao tecido verbal e sob certos aspectos, Orfeu da Conceição, para o paladar de uma específica recepção contemporânea, pode ser interpretado como um poema dramático ultrapassado. Em seus versos, formas clássicas de preconceito racial e religioso com relação ao negro e à cultura a ele associada vêm, como vimos, à superfície da linguagem em vários momentos.
Nesse sentido, a intenção pretensamente generosa de, como escreve Vinicius no prefácio à peça, prestar “uma homenagem ao negro brasileiro” por “sua contribuição tão orgânica à cultura deste país – melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver”, estilo que permitiu ao poeta “sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca”[37]; enfim, não obstante todas essas, por assim dizer, atenuantes de fundo, a intenção de “fazer justiça”, por meio da voz dramática, tem algo de patético, pois a conjunção intuída entre os divinos epítetos grego e negro se revela, ao fim e ao cabo, tão vincada de superstições e clicherias com relação ao seu objeto estético que acaba por obliterar a possibilidade efetiva de algum desvelamento a partir da recriação dos signos sincréticos, mitológicos e poético-musicais mobilizados na fatura da obra.
Encerro o ensaio com uma confissão de Vinicius de Moraes que, de algum modo, faz menção aos seus esforços de olhar sua circunstância, seja intelectual, seja sociocultural, a partir de diversa perspectiva. Na advertência a Vinicius de Moraes – antologia poética, lê-se a seguinte confissão do autor a propósito da mudança apresentada em sua linguagem a partir da década de 1950 e que se opõe “ao transcendentalismo anterior”, revela o poeta que essa nova linguagem alcançada indica “a luta mantida pelo A. contra si mesmo no sentido de uma libertação (…) dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação”.[38] Se dermos crédito à confissão de Vinicius de Moraes, podemos concluir que a peça Orfeu de Conceição está no bojo desse movimento de revisão crítica e recusa dos enjoamentos e interdições que informavam o poeta em seu processo de amadurecimento, seja na dimensão existencial, seja no aspecto da sua condição de artesão da arte da poesia. Vinicius de Moraes tentou um salto tigrino do tom elegíaco, entre metafísico e decadentista, para a concretude corporal do samba e seus filosofemas presentificados na superfície das palavras da canção popular. Em Orfeu da Conceição esse salto tigrino, essa ruptura com sua angústia de origem e formação, não se completa. É no seu cancioneiro que Vinicius de Moraes vai alcançar, mais tarde, os melhores resultados em função de tal mudança de rota.
Notas
[2]O MITO DE ORFEU (Excerto de “La leyenda dorada de los dioses y de los heroes”, de Mário Meunier).
“Orfeu teve desgraçado fim. Depois da expedição à Cólchida, fixou-se na Trácia e ali uniu-se à bela ninfa Eurídice. Um dia, como fugisse Eurídice à perseguição amorosa do pastor Aristeu, não viu uma serpente oculta na espessura da relva, e por ela foi picada. Eurídice morreu em consequência, e desde então Orfeu procurou em vão consolar sua pena enchendo as montanhas da Trácia com os sons da lira que lhe dera Apolo. Mas nada podia mitigar-lhe a dor e a lembrança de Eurídice perseguia-o em todas as horas.
Não podendo viver sem ela, resolveu ir buscá-la nas sombrias paragens onde habitam os corações que não se enterneceram com os rogos humanos. Aos acentos melódicos de sua lira, os espectros dos que vivem sem luz acorreram para ouvi-lo, e o escutavam silenciosos como pássaros dentro da noite. As serpentes que formam a cabeceira das intratáveis Eríneas deixaram de silvar e o Cérbero aquietou o abismo de suas três bocas. Abordando finalmente o inexorável Rei das Sombras, Orfeu dele obteve o favor de retornar com Eurídice ao Sol. Porém seu rogo só foi atendido com a condição de que não olhasse para trás a ver se sua amada o seguia. Mas no justo instante em que iam ambos respirar o claro dia, a inquietude do amor perturbou o infeliz amante. Impaciente de ver Eurídice, Orfeu voltou-se, e com um só olhar que lhe dirigiu perdeu-a para sempre.
As Bacantes, ofendidas com a fidelidade de Orfeu à amada desaparecida, a quem ele busca perdido em soluços de saudades, e vendo-se desdenhadas, atiram-se contra ele numa noite santa e esquartejam o seu corpo. Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas.” In: MORAES, Vinicius de. Orfeu da Conceição (tragédia carioca). Rio de Janeiro: Editora Dois Amigos, 1956. p.: 11
[3] PARANHOS, Luís Tosta. Orfeu da Conceição: tragédia carioca. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p.15
[4] CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 75
[5] JAKOBSON, Roman. apud: PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva; (Brasília) : CNPq, 1987. p. XI
[6] PLAZA, Julio. op. cit. p. 90
[7] CAMPOS, Haroldo de. op. cit. p. 75
[8] Idem ibidem, p. 75
[9] Idem ibidem, p. 75
[10] Idem ibidem, p. 75
[11] GOETHE. apud: CAMPOS, Haroldo de. op. cit. p. 75
[12] SARTRE, Jean-Paul. La República del Silencio. Buenos Aires: Editorial Losada, S.A., 1968. p. 145
[13] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 27
[14] Idem ibidem. p. 17
[15] PAES, José Paulo. Um por todos (poesia reunida). São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 45
[16] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 26
[17] DOMENACH, Jean-Marie. apud: PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 26
[18] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 26
[19] Idem ibidem. p. 57
[20] CANDIDO, Antonio [et al.]. A Personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 55
[21] Idem ibidem. p. 55
[22] Idem ibidem. p. 55
[23] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 62
[24] Idem ibidem. p. 62
[25] SARTRE, Jean-Paul. op. cit. p. 145
[26] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 35-36
[27] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 37
[28] Idem ibidem. p. 42
[29] Idem ibidem. p. 42
[30] Idem ibidem. p. 51
[31] Idem ibidem. p. 51
[32] Idem ibidem. p. 57
[33] CANDIDO, Antonio [et al.]. op. cit. p. 29
[34] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 66
[35] Idem ibidem. p. 66
[36] SOUSA, Cruz e. Obra Completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008. v. 1 (612 p.), pág. 391
Ri o Cristo de bronze das luxúrias! …
[37] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 3
[38] MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977. p. x