Terra Sonâmbula

A Terra Sonâmbula (2007), de Teresa Prata (Moçambique, 1969), surge a partir do romance de Mia Couto. Terra Sonâmbula mostra-nos Moçambique, em pleno pós-guerra. Depois de uma devastadora guerra civil, tudo se torna primário, até a maneira como os humanos se desenvolvem e se recriam. Recriam-se entre perigos provenientes da própria guerra civil e entre carências provenientes, não apenas da guerra, mas também, da defeituosa descolonização que destruiu qualquer estrutura familiar existente. Tudo é simbólico, tudo é pertinente numa terra, aparentemente, de ninguém, sem ninguém. Nesta terra onde um autocarro, machibombo, queimado, cheio de corpos carbonizados pelo fogo que o destruiu, serve de asilo para as duas personagens principais do filme, Menino e Tio. À volta deste autocarro, ambos vivem com o sentido de sobreviverem às bombas que minam os campos, à fome e ao morticínio iminente. Nesta terra onde o papel escrito serve para fazer fogueiras e não para ler ou mesmo para sonhar através das palavras.

A estória começa quando Menino e Tio, fatigados de andar pelas estradas de terra batida do interior Moçambicano, correndo para uma periferia longe do ruído das minas e das bombas, encontram um machibombo, um autocarro perdido e carbonizado depois de ter sido pilhado por marginais. Neste autocarro carbonizado encontraram corpos desfeitos pelas chamas e cravados de balas. A morte estava encontrada, ainda não sentida. Estamos no meio de uma viagem que combate o medo da morte. No entanto, a morte é tão próxima que, para lhe fugir, Tio sugere refugiar-se nela. Contudo, não foi apenas a morte que encontraram neste machibombo: Menino encontrou o mote para vários quadros que nos são apresentados ao longo do filme. Quadros da vida morta junto ao autocarro. Junto deste corpo havia uma mala cheia de cadernos escritos. Parte destes escritos eram páginas de diários que contam estórias dentro da estória. Neste diário conta-se a história de um homem que aspira ser mais que um simples aliterado sem aspirações, que estuda e trabalha. Um dia perde a família depois de um ataque que os mata a todos. Então, parte em busca de um novo futuro, sem passado. A forma como tal acontece é reflexo da procura do Menino para encontrar o passado que não tem. Este diário torna-se fundamental para a narrativa do filme. Desde o encontro de uma rapariga por quem se apaixona, até ao encontro de uma personagem mais velha que olha por ele. Estes relatos que Menino encontra todas as noites antes de dormir despoletam nele a necessidade de encontrar a sua mãe. A sua imaginação provoca inclusivamente um alheamento ao que, para Tio, é fundamental para a sobrevivência de ambos.

Menino foi colhido por Tio. Não se recorda da sua infância, dos seus pais, devido a uma doença que o deixou sem memória, sem passado. A sua vida começou depois de ser encontrado por este homem mais velho. Nada do que aconteceu para trás é passível de ser resgatado. Menino procura aventura, não encontrada na memória da infância perdida para a doença. Tio procura tranquilidade na agitada corrida pela sobrevivência.

Um dia, Menino deixa o machibombo e, com o seu cordeiro pelo laço, caminha estrada fora, em busca do que lê, do que sonha, de alguma coisa que não sabe bem o que é. Nesta investida, o cordeiro foge de Menino e é morto por uma mina que estava enterrada. Contudo, Menino continua a ler o diário, onde encontra, a cada página, esperança de viver, de conseguir descobrir que foi, quem é. A morte do cordeiro é-nos dada como sacrifício, protegendo Menino da morte, tal como o próprio contador da História. Este morreu, Menino encontrou-o e nele descobriu a sua esperança. A esperança de se encontrar. O que restou a Menino e a Tio foram os seus corpos, alimentados pela esperança.

Ficha do filme
Título original: Terra Sonâmbula
Realização: Teresa Prata
Ano:2007
Argumento: Teresa Prata (adaptação da obra de Mia Couto)
Intérpretes: Nick Lauro Teresa, Aladino Jasse, Tânia Adelino, Cândido Andrade, Valdemar António, Aron Silva Bila, Ana Magaia, Laura Soveral  
Fotografia: Dominique Gentil.
Produtor: António da Cunha Telles e Pandora da Cunha Telles
Edição: Jacques Witta e Paulo Rebelo.
Música: Alex Goretski.
País: Portugal/ Moçambique/ França/ Alemanha
Duração: 98min

integrado no ciclo África Já Ali

por Rui Manuel Vieira
Afroscreen | 20 Setembro 2010 | cinema africano, moçambique, Terra Sonâmbula