A civilização islâmica: a última grande civilização mediterrânea. Entrevista a Cláudio Torres
Ao contrário do que diz o mito, a civilização islâmica não veio do deserto e era impensável que tal tivesse sucedido, diz o arqueólogo Cláudio Torres, o fundador do primeiro museu islâmico de Portugal. A civilização islâmica é a soma, a continuidade das velhas e milenares civilizações que convergem lentamente ao longo dos séculos para o apogeu civilizacional dos séculos X - XI. Surgiu fundamentalmente nas grandes cidades do Próximo Oriente, em Alexandria, no Cairo, em Antioquia. É uma civilização profundamente urbana, que nasce dentro das comunidades mercadoras do Mediterrâneo. E que entra em decadência por circunstâncias ainda não claramente esclarecidas.
Gostaria que comentasse a tese tão em voga do “Choque das Civilizações”: de um lado o Ocidente, do outro o Islão. Os que a defendem apontam o Islão como diferente e inimigo, embora muitas vezes não o queiram admitir.
É evidente que há aí qualquer coisa de verdade. O que o senso comum capta é outra civilização, outra religião, outra língua, outros hábitos alimentares, outras formas de estar na vida… A chamada civilização ocidental foi sempre sendo construída numa sequência, juntando as várias tendências e esmagando outras, aniquilando pequenas religiões minoritárias. Foi-as expulsando e destruindo, e foi -se formando também a partir delas. Por exemplo, dentro da civilização ocidental, como sabemos, eclodiram movimentos contestatários, e mesmo revolucionários, como a Revolução de Outubro e que, parecendo ser o seu oposto, pertenciam afinal intrinsecamente à própria civilização ocidental, sendo um resultado seu, um seu produto. Precisamente aquilo que o marxismo nos tinha explicado: as coisas nascem de dentro de outras que aparentemente são o seu contrário – é o princípio da nãocontradição. Quer dizer que dentro desta nossa civilização nasceu aparentemente o seu oposto – não o era, sabemos hoje. Foram as violentas contradições de uma época,que afinal se desvaneceram e voltamos a cair, se quisermos, num unanimismo civilizacional. A comparação com o outro, com o inimigo, com alguém que é diferente, é fundamental à própria afirmação de um estatuto civilizacional: é preciso dizer que nós somos os melhores, nós temos a sequência civilizacional do homem desde a aparição do cristianismo, somos a soma de tudo o que há de melhor dentro da história do homem; e os outros têm de ser criados, inventados. Houve um período em que se falava do perigo amarelo, mas é difícil apontá-lo já como o principal inimigo. Está ainda muito longe – talvez o seja, um dia, quando a China for a grande afirmação de uma outra civilização fortemente identitária.
A civilização ou civilizações industânicas não são um perigo: a Índia foi compartimentada pelo colonialismo, repartida em vários fragmentos. Não é hoje uma ameaça, é mais um problema para a civilização ocidental. Portanto, resta o Islão, uma civilização que procura uma identidade e que vem de um passado brilhante. Qualquer muçulmano sabe que vem do Paraíso, de onde foi expulso. Vem de uma civilização, de uma literatura, de uma ciência, de um passado de vanguarda dominante e hoje está numa situação de completa colonização. O que resta desse passado esplendoroso refugia-se hoje e apenas na religião. A diferença hoje aponta para o facto religioso. Por um lado, a religião serve de elo unificador para o mundo islâmico; sendo facilmente identificado pelo Ocidente como o inimigo da actualidade, porque de certa forma vive apenas do passado.
E os caminhos são opostos: a civilização ocidental procura o progresso, desde o Renascimento que vai buscar o seu grande motor ao avanço tecnológico, a tudo o que vem de novo, espezinhando de certa maneira o seu passado; ao contrário, a civilização muçulmana está virada para trás: sonhando com um tempo de ouro, quando atingiu o seu apogeu civilizacional, e para quem o progresso é olhado com desconfiança e mesmo hostilidade. Este confronto está a ser alimentado – sentimo-lo mais do que claramente –, está a desenvolver-se como nunca tinha acontecido nos últimos tempos, e está a criar dois blocos claramente opostos e que, do meu ponto de vista, são considerados necessários para alimentar a grande máquina de guerra, a grande indústria do novo Império. Para este, é vital criar e alimentar um inimigo. E esse inimigo tem de ser credível. O comunismo era um inimigo credível, mas demasiado intocável, por causa do equilíbrio do terror. Justificava uma corrida armamentista, mas não uma ocupação planetária. Hoje, a luta contra o terrorismo é completamente diferente: é preciso ir lá ocupar o território, instalar as suas forças militares para cingir as tais células do terrorismo – inventadas ou não – que estão organizadas à volta ou dentro do próprio mundo islâmico. É um processo de recolonização, se quisermos, que tem sido a resposta da máquina militar americana.
Diz que a civilização muçulmana olha para o seu “paraíso perdido”. No entanto, esse paraíso nasceu de uma forma inesperada, de umas tribos do deserto da Península arábica. Como é que se explica essa civilização avançadíssima que se desenvolveu de uma forma tão rápida?
As grandes religiões têm de ter os seus deuses, os seus mitos fundadores, e esse é um deles. Que a civilização islâmica tenha vindo do deserto não só é hoje completamente negado como era impensável que tivesse sucedido. A civilização islâmica é uma grande civilização mediterrânica. É a soma, a continuidade das velhas e milenares civilizações que convergem lentamente ao longo dos séculos para o apogeu civilizacional dos séculos X e XI. É a grande civilização mediterrânica que fala árabe, é muçulmana maioritariamente e é o pólo agregador e a ponta-de-lança de toda a história do homem até esse momento.
Mas o que é que leva a esta confluência?
Há várias causas que momentaneamente convergem no mesmo objectivo. Primeiro, há uma coordenação e unificação das rotas marítimas. Várias vezes, no Mediterrâneo, houve tentativas imperiais – algumas conseguidas, outras não. E houve sempre duas vertentes importantes: uma que tende para o continente, e outra para o mar. Há os grandes impérios continentais, desde Alexandre o Grande, os impérios persas e outros a Norte, a Leste do Mediterrâneo e na própria África. E depois há os impérios marítimos. Têm duas concepções completamente diferentes entre si. O que define o império continental é uma ocupação territorial, habitualmente militar. E os impérios marítimos são o seu oposto: assentam fundamentalmente no comércio. São grandes redes comerciais em que as estradas são o mar. Enquanto que nos grandes impérios continentais é preciso abrir as estradas, pôr os escravos a trabalhar, calcetar e controlar os caminhos, o mar não precisa. É por definição aberto aos grandes portos e ao intercâmbio. É por isso que esses dois mundos sempre se opuseram e são aqueles que definem no Mediterrâneo as grandes civilizações. Desde os velhos impérios fenício e grego, as talassocracias não têm território, espaços de terra. São portos pouco controlados militarmente: a sua grande força vem-lhes precisamente do comércio, é o domínio de várias famílias, de milhares de comerciantes que trocam entre si os produtos e as ideias. Portanto é muitas vezes um espaço pouco definido, dominado por ideias, por princípios fundamentais. E por princípios religiosos mais do que por religiões. É natural que a pouco e pouco o êxito de muitos anos do império romano tenha sido o de assimilar a si, principalmente à volta do Mediterrâneo, a diversidade – cada Deus local, pequeno ou grande, era assimilado ao panteão imperial. Mas a divisão do Império do Ocidente e do Império do Oriente nunca foi colmatada. O império do Oriente sempre falou grego, o do Ocidente começava a falar o latim, nas suas variações. Mas nunca foi conseguida uma sólida unificação. Em época muçulmana, é conseguido um primeiro equilíbrio através da unificação linguística. O árabe penetra profundamente em todo o mundo mercantil. Toda a gente urbana sabe falar árabe – desde a Índia até à Península Ibérica. E a outra grande novidade é a abertura das rotas do Mediterrâneo a mundos até então desconhecidos – a entrada do Extremo Oriente. As grandes rotas da Seda e do Indostão. As aberturas marítimas pelo Mar Vermelho e Golfo Pérsico. As grandes civilizações de fora do Mediterrâneo são captadas, puxadas através das grandes rotas de mercadores, das linhas de comércio – não por conquistas militares, isso é queé o facto interessante, porque elas eram perfeitamente secundárias. A conquista é feita pelas grandes rotas do comércio. É o comércio, é o mercado pela primeira vez planetário nesta zona do mundo. Temos sempre de imaginar que nessa altura há outros mundos autónomos, a China e a Índia, duas civilizações que embora autónomas entram, por essa altura, na história do Mediterrâneo. Pela primeira vez as grandes rotas do Oriente atravessam toda a Ásia e vêm desembocar a Damasco, ao Mediterrâneo. A Índia passa pelo Golfo, penetra pelo Mar Vermelho e entra também no Mediterrâneo através de vários elementos arquitectónicos, técnicos e mesmo alimentares. A grande civilização muçulmana é pela primeira vez a síntese da história do homem mediterrânico, com os seus anexos já mais ou menos integrados, através do primeiro grande império mercantil. Mercantil, não militar. As aventuras militares são sempre episódios que formam a história dos mitos, dos heróis, dos poderosos que têm de justificar a sua estirpe de poder através de feitos militares. Mas isso é a pequenina história dentro da História. O principal é que esta é uma civilização do mercado, que durante séculos vai fazendo a síntese de todas as religiões. E não podemos esquecer que o mercado é por definição propenso a receber os outros, a aceitar outras ideias, a aceitar o que o militar nunca faria ou fará. Para o militar, o único diálogo é o combate, é a morte, não há, nem pode haver, um diálogo entre dois militares que se confrontam. Ora o comerciante é o oposto. Se ele leva um produto que vai vender a um país que não conhece, a um porto diferente, ele tem de contactar com o comprador, não matá-lo. Foi esse contacto que criou a civilização mediterrânea desde sempre.
No entanto, o Islão nunca chega a dominar todo o Mediterrâneo…
Não, porque era uma civilização – mais do que uma religião – marítima, ao contrário do que ouvimos repetir. Quais areias do deserto, qual civilização do deserto? Os deuses, esses sim, vamos sempre buscá-los aos sítios primordiais, às lonjuras não habitados pelo homem, às montanhas inóspitas e às orlas do deserto. Isso é o mito. A realidade é completamente diferente. A civilização muçulmana, além dos símbolos originais de Meca e Medina, surgiu e prosperou em Alexandria, no Cairo, nas grandes cidades. É uma civilização profundamente urbana que se difundiu dentro do Mediterrâneo, no interior das comunidades mercadoras e, de certa forma, sobrepondo-se e competindo com êxito com a religião judaica e com as varias heresias cristãs que então se degladiavam. Foram principalmente estes mercadores originários da Síria, do Líbano e da velha Fenícia, conhecedores de todos os mares e portos, inicialmente judeus e depois cristãos, os grandes difusores da nova religião muçulmana. É curioso notar as diferenças entre a religião judaica e a religião muçulmana. Embora tendo a mesma origem, a religião judaica manteve-se uma elite, que defende a sua origem única, sem contaminações, e portanto recusando o proselitismo. Ao contrário, no Islão – e de certa forma seguindo a tradição cristã –, os mercadores precisam espalhar, integrar outros povos na sua religião, na sua civilização, na sua língua, porque o mundo islâmico está muito ligado à palavra e à língua. O grande mercado planetário que foi criado no Mediterrâneo tinha de ter uma língua unificada que permitisse fazer o intercâmbio e a troca dos objectos e das ideias.
Mas como é que esta civilização, que atinge um apogeu tão importante, depois entra em decadência?
Esse é um dos aspectos mais aliciantes da história do Mediterrâneo e do Islão. Temos de perceber que todo o mundo antigo, o mundo civilizado, numa certa altura convergiu no Islão. Vemos que, nos margens Norte do Mar Interior, as partes mais “mediterranizadas” passaram ao Islão – veja-se a Sicília, o sul da Península Ibérica – porque era onde chegava o Mediterrâneo e a sua civilização. Ficaram de fora os povos bárbaros. Esses estavam na orla, eram seminómadas, na maioria, e não tinham capacidade física para poder organizar-se senão invadindo ou atacando os povos fortemente sedentários da orla mediterrânica. No Norte da Europa, nas zonas menos urbanizadas, começam a organizar-se estados feudais cuja estrutura económica, fechada sobre si própria, nada tem a ver com o Mediterrâneo onde, sob o Islão, continuou a funcionar uma intensa vida mercantil. Mas pergunta-se: porque é que esse mercado intensíssimo não deu origem ao capitalismo? Esse é que é o facto interessante. O marxismo resolveu sempre mal a explicação teórica do fenómeno mediterrânico. Chamou-lhe “modo de produção asiático”… Ninguém sabe o que isso é. Quanto ao mundo económico e mental da Europa, o marxismo criou e desenvolveu uma lógica que ainda hoje não só aceitamos como achamos difícil de rebater. Mas para o Mediterrâneo não, não ficou resolvido. E hoje chamamos-lhe o quê? Uma sociedade tributária. Não é certamente a mesma em todo o lado. Mas não é feudal. Disso não temos dúvida nenhuma. Na Idade Media, o grande embate entre o mundo muçulmano e o mundo cristão é uma luta entre uma sociedade feudal solidamente organizada e hierarquizada pela Ordem de Cluny, em que o dinheiro e o comércio são pecaminosos, e uma outra sociedade a que chamamos hoje tributária, onde o mercado faz parte da sua própria fundação ideológica. É por isso que toda a história da Europa cristã é constituída por grandes estruturas feudais – o castelo, ou o mosteiro, em cujas imediações e em contradição com o poder instituído, começam a surgir os burgos, muitas vezes no sítio de uma feira, num pequeno largo onde se juntavam os mercadores. À medida que o equilíbrio dos senhorios, dos militares e dos grandes senhores da terra iam permitindo, foram surgindo e crescendo estes pequenos “quistos” que mais tarde viriam a desembocar no Renascimento. No interior da própria estrutura feudal cada vez mais fragilizada, foi surgindo e consolidando-se esta nova classe, os tais burgueses dos burgos, de onde viriam a nascer as primeiras cidades independentes dos senhores. Ora o Mediterrâneo estava cheio destas cidades. Sempre tinham existido e tinham mesmo sido reforçadas sob o Islão…
Sempre existiram as cidades…
De facto. E sobretudo uma rede intensíssima de comércio. Hoje, ao contrário dos grandes clássicos, como o Jacques Pirenne, que dizem que a expansão do Islão cercou a Europa numa espécie de cintura de fogo e não a deixou desenvolver-se, nós sabemos que, ao contrário, o desenvolvimento das cidades é indissociável do Islão. Quando analisamos, na Alta Idade Média, cidades como Londres ou Paris, notamos que eram aglomerados de pequenas casas de madeira, sem qualquer estrutura urbana. Já na Península Ibérica, no Sul, havia uma série de grandes e médias cidades com uma estrutura urbana sólida ebem organizada. Estas cidades permitiam uma intensa vida mercantil, uma permanente e constante troca de ideias e sobretudo o confronto de varias religiões. Porque em todas as cidades do Mediterrâneo coabitavam as três religiões do Livro. Nunca as minorias judaicas ou cristãs deixaram de existir e de afirmar as suas diferenças. Todas as cidades do Mediterrâneo sempre tiveram bairros diferentes com o seu centro religioso, o seu cemitério – seja a sinagoga, a igreja nestoriana ou monofisita, os católicos romanos…
É a cidade mosaico.
Exactamente. Embora seja também claro quem exerce o poder. É ele que recebe os impostos – daí considera-la sociedade tributária. Desde que pague, cada comunidade pode exercer uma certa autonomia e manter os seus costumes.
Mas há um tributo diferenciado para os que não são muçulmanos…
Sim. Mas isso tem as suas vantagens e tem os seus inconvenientes. Por um lado, a pouco e pouco, as religiões dominadas vão-se convertendo, porque passam a pagar menos. São formas inteligentes de dominação, mais eficazes. Mas, por outro lado, há os interesses de religiões minoritárias que se mantêm fortemente, por razões culturais ou por interesse também. Muitas vezes as minorias de cristãos em cidades do Islão tinham contactos de privilégio com outras cidades. Tinham a sua própria rede de solidariedades montada e autónoma. Quer dizer, havia também vantagens. Com os judeus, acontecia precisamente a mesma coisa. Eram minorias muito bem organizadas em cada cidade, com o seu bairro, a sua estrutura económica, que tinham vantagens em manter-se minoritárias porque exploravam redes próprias, monopólios assegurados em vários portos do Mediterrâneo. Este equilíbrio entre as varias comunidades e os grupos minoritários foi um pouco a chave do êxito do Islão mediterrânico. Fora do Mediterrâneo, a arqueologia mostra que em todo o Norte e Centro europeu a estrutura feudal assentava no saque. O senhor feudal precisa de ter objectos para oferecer, é essa a sua forma de dominação. Ora para o senhor distribuir, sem haver formas de produção nem manufacturas, a solução estava na guerra de saque. A estrutura económica do feudalismo, a sua própria sobrevivência, assentava na guerra contra o Sul mais urbanizado e enriquecido com produtos oriundos do comercio longínquo. Nos primeiros anos, os brocados e sedas dos senhores do Norte, dos bispos, vêm dos países do Sul, onde chegaram oriundos do Oriente. Nestas sociedades do Norte sem circulação monetária, a moeda, muitas vezes saqueada ou adquirida no Sul, serve para fundir e entesourar sob a forma de joalharia. No final da Idade Média são introduzidos circuitos de monetarização, em que o Sul serviu de modelo. As armas, curiosamente, eram fabricadas em sítios insólitos: no al-Ândalus, antes das manufacturas de Toledo, as lâminas de aço vinham de Damasco, onde tinha chegado a tecnologia indiana. Da Índia também tinham partido séculos antes os saberes da têmpera do aço em direcção da Europa Central através do Mar Negro e Danúbio. É com estas espadas que os povos bárbaros atacam pelo Norte o mundo romano. O próprio cristianismo a pouco e pouco vai entrando, a partir do século V, VI, pela Europa acima. O cristianismo é uma religião tipicamente mediterrânea, que se vai adaptando às novas mentalidades do Norte introduzindo algumas novidades como o vinho, que vai abrindo mercados fundamentais, primeiro através do Mar Negro e do Danúbio e depois pelas grandes rotas marítimas do Ocidente. O que é curioso é que começa a surgir uma nova classe social – a burguesia ligada às cidades, às orlas das cidades feudais – fenómeno desconhecido no Mediterrâneo islâmico. A partir dos séculos XIII e XIV, o mundo islâmico começa a ficar para trás, ligado a um modo de produção antigo. Não avançou, não teve as convulsões que abalaram a Europa, com a crescente afirmação dessa nova classe, até à sua tomada do poder e expansionismo planetário no Renascimento e domínio completo no século XIX. Todo este movimento inovador só viria a afectar o velho Mediterrâneo islâmico através da colonização moderna. Daí a nossa imagem do Islão mediterrâneo já ser uma imagem romântica veiculada pelos colonizadores: o passado medieval, os haréns, o exótico… Ainda hoje, numa viagem à cidade marroquina de Fez procuramos, de certa forma, o nosso próprio passado.
Mas o atraso a que a certa altura é votado o mundo islâmico não tem ver com o facto de ter começado a perder as rotas do Mediterrâneo para as repúblicas marítimas, como Veneza?
É difícil de dizer. Por exemplo, como é que podemos hoje explicar que a longa civilização do Egipto faraónico tenha desaparecido? Como é que se esfumaram no tempo civilizações tão importantes como as que floresceram durante milénios na Mesopotâmia? Estas questões, e sobretudo os agitados períodos de transição, são por vezes mal explicadas pela história. Por que é que acaba um certo ciclo e começa um outro?
Mas há períodos de transição que estão bem explicados, como o do feudalismo ao capitalismo…
Mas isso já faz parte da nossa pequena história moderna, é melhor conhecida, temos mais dados. Com as grandes civilizações do passado é diferente. É por isso que proliferam publicações esotéricas, à volta dos mistérios do passado, “das civilização desaparecidas” e tudo isso, porque realmente há uma fraca explicação histórica. Por que é que o Islão ficou para trás e não deu o grande salto em frente para o progresso tecnológico e as ciências modernas? É um dos aspectos mais interessantes da história do Mediterrâneo. O que sabemos é que nestes territórios e sociedades é sensível o fenómeno de uma teimosa e extraordinária continuidade. Há um saber usar da civilização que é difícil encontrar noutros locais. Muitas vezes são as tais dúvidas que nos assaltam: para quê mudar se está bem? O que vemos hoje no mundo são as civilizações mediterrânico-muçulmanas que foram destruídas pela colonização europeia. São, muitas vezes, países artificiais, recortados pela colonização dos últimos dois séculos. Podemos hoje culpar o Império Otomano, por ter conseguido uma grande unificação?
Era isso que eu ia perguntar…
Mas o Império Otomano é, apesar de tudo, um falso império. Um império muito mediterrânico que, finalmente, prolonga no tempo o Império Romano, e sobretudo os restos do mundo Bizantino… É um império em que apesar de uma natural centralidade, soube, como todos os outros que o antecederam, manter as diferenças. Nunca tentou unificações forçadas e brutais. Completamente diferente de outros, seus contemporâneos, como o Império Espanhol na América Latina. O Império Otomano foi uma espécie de prolongamento da antiguidade até aos nossos dias, quando, já completamente descaracterizado, caiu de podre. E no entanto, durante vários séculos, foi um império tipicamente mediterrânico, formado por cidades e não por estados. Não existiam países com o Iraque, a Síria, o Líbano…
É criação posterior…
Toda a sociedade, e sobretudo os circuitos de poder, concentravam-se nas cidades, as velhas pólis. Mantinham-se as Cidades-estado na velha ordem do Mediterrâneo. Um poder tributário da cidade. Obviamente, a recolha dos impostos era feita por um representante do Império, apoiado nas suas tropas. Cada cidade, porém, com o seu mosaico de comunidades diferentes, mantinha uma certa autonomia política e religiosa.
Mas não terá sido esse tipo de sociedade tributária que no início permitiu uma expansão tão rápida e que depois se transforma num entrave?
É possível. Muitas vezes vemos que as grandes pulsões da história do homem são feitas pela miséria e pela necessidade. As grandes emigrações… Porque é que os irlandeses e muitos outros foram para a América? Pela fome, pela miséria total. Não tinham hipótese de sobreviver. Em que medida é que essa falta de necessidades, a ausência de uma miséria absoluta e a sólida estabilidade, a capacidade de ir mantendo as civilizações a nível médio não impediu uma mudança radical, arrastando-se até à decadência moderna? Não queremos dizer que eram sociedades abastadas que viviam no luxo. Mas havia certamente um equilíbrio ecológico que permitia alimentar basicamente toda a população com uma qualidade muito maior do que possamos imaginar. A grande concentração da miséria é recente, nas cidades transformadas em megalópolis, com o abandono dos campos. Ora a cidade mediterrânica era uma pequena cidade, um núcleo humano equilibrado e não um monstro. Tinha entre os dois e os 10 mil habitantes, com a sua cintura alimentar, as suas hortas, as suas árvores de fruta, as zonas de sequeiro, as de pastoreio. É uma espécie de célula de sobrevivência. Este núcleo de civilização não encontramos no Norte feudal. O Mediterrâneo manteve-se agarrado a esta célula de civilização que foi a cidade, que praticamente só implodiu agora no século XX, com a concentração brutal dos expulsos da agricultura. Esta tendência concentracionária fez implodir uma estrutura económica que estava intacta há muitos séculos.
Mas Bagdade e Cairo não foram cidades muito grandes? Momentaneamente foram cidades imperiais. E, como todos os impérios, fazem as grandes concentrações de poder: muitas tropas, a corte… Mas essa concentraçãoé anormal. E quando acaba o império, dispersa-se outra vez. Só cidades como Alexandria ou Istambul foram sempre grandes cidades, porque foram a plataforma de circulação de grandes riquezas. Alexandria é a boca do Oriente e do Ocidente, do Mar Vermelho, das grandes rotas de toda a África. Assim como foi Bizâncio, entre o Oriente e o Ocidente. Porém, sempre foram aglomerados muito compartimentados em bairros especializados. A Roma imperial teve os seus momentos de glória com o Império. Mas na Idade Média era uma cidade secundária, alimentada apenas pelo pequeno aparato áulico do papado. Assim como Cartago, teve a sua importância momentânea. Córdoba foi a capital de todo o al-Ândalus durante uns tempos, uma centena de anos. Mas é sempre um período efémero, retomando rapidamente a sua escala.
Voltando à ciência e ao conhecimento. Há um florescimento extraordinário da ciência, da própria filosofia, do estudo, de uma convivência do livre pensamento até ao século XIV. E depois parece que há um corte. As grandes figuras, Averróis, Avicena, Ibn Khaldun, os grandes viajantes, o Ibn Battuta, são todos até ao século XIV. Depois parece que há um corte…
E há. Temos de ver que todas essas e muitas outras figuras são os últimos representantes da cultura mediterrânica. A sua base filosófica vai beber a Aristóteles, a Platão. Eles foram os herdeiros de toda a cultura milenar do Mediterrâneo. Dos grandes sábios do Egipto que hoje conhecemos mal ou que desapareceram. Toda a ciência do Egipto, da Mesopotâmia, grega, latina, está neles condensada. Não só a conheciam, como foram os seus tradutores para o árabe, de onde passou depois para as línguas latinas ou neolatinas. Eles são o repositório desse passado. De certa forma, estes sábios marcam o final da sua própria civilização e o lançamento de uma ponte para a Europa moderna. E de facto é nas cidades-estado, nas repúblicas italianas, que surge essa viragem. Ainda fortemente ligadas ao mundo do Sul, ao mundo islâmico, estão também em contacto com uma nova riqueza e muito poder que chega das extensas e fartas planícies europeias. A partir dos séculos XIII-XIV, esta Europa feudal já impulsionada pela burguesia nascente, expande-se para Sul. É o quer sucede na França e Península Ibérica. Na altura, era no al-Ândalus que florescia a civilização mais avançada da sua época. Não ha dúvida que esta civilização brilhante foi sendo integrada e assimilada pelos recém chegados do Norte, o que justifica a importância histórica da Península Ibérica nos tempos que se vão seguir. Era impensável de outra forma. A expansão europeia não acontece em Londres ou Paris e sim nas orlas do Sul, em Sevilha ou Lisboa, cidades que herdaram os saberes mediterrânicos. Mas também é preciso notar que a lógica económica dos mercados mediterrâneos estava a esgotar-se. Eram cada vez mais difíceis os caminhos da seda, do ouro e das especiarias. E a nova Europa, enriquecida com os saberes mediterrâneos precisa de expansão rápida, tem necessidade de atingir os grandes mercados do Oriente. Não é por acaso que andam todos em busca do caminho para a Índia. Os percursos do interior estavam esgotados. Havia um certo marasmo, as mercadorias chegavam a preços altíssimos. De repente há uma explosão, em que a parte mais dinâmica da sociedade, a burguesia mercantil – muitos deles antigos muçulmanos ou judeus convertidos à nova ordem – se lançam na aventura marítima, na conquista de todo o mundo. É uma época em que a Europa é inundada de grandes riquezas vindas do saque de outros continentes, levando à marginalização das antigas redes comerciais mediterrânicas e portanto ao empobrecimento dos países islâmicos.
Está a falar das repúblicas marítima veneziana, genovesa, Amalfi, etc., e depois da Espanha e de Portugal… Todos vão estrangulando…
Vão estrangulando. Estes centros de expansão comercial marítima, tinham consolidado a sua rectaguarda. É o caso de Veneza com as planícies riquíssimas do Veneto que a rodeiam a Norte. É uma espécie de gigantesco anfiteatro com águas correntes dos Alpes… Assim como Génova, apertada entre as rochas do seu porto… e que no entanto domina um vasto território, com as planícies do Pó e as ilhas da Córsega e Sardenha. De antigas cidades-estado, passam a poderosos estados modernos. A constituição destas nações ibéricas e italianas, com vastos territórios e viradas para o comercio mundial vai desviar e secundarizar os circuitos antes dominados por Alexandria, Damasco ou Bizâncio.
Isto é: enquanto há crescimento no Norte, o mundo islâmico vira-se para dentro…
Vai enquistando. E é um processo que continua até aos nossos dias. A grande expansão começara nas repúblicas italianas, e depois prossegue pelas Descoberta ibéricas. Mas a pendulação histórica tem muitas variantes. Nunca sabemos qual poderá vir a ser no futuro um outro pólo de desenvolvimento. A África, as Ásias, a própria América do Sul, são zonas que ainda não tiveram historicamente a sua oportunidade de serem pólos agregadores de civilizações. Aquilo que se vai construindo passa-se como um testemunho a outras civilizações, a outros espaços. Quanto ao Islão, à religião muçulmana, continua em expansão. E este é um facto indesmentível. É a única grande religião que mantém uma grande e rápida expansão. Pela sua espantosa simplicidade, pelos seus mecanismos de reconhecimento quase não-iniciáticos, toca muito fundo os mais desprotegidos, os mais explorados, os mais marginais. A grande marginalização que está a ser feita pela nossa civilização ocidental, a empurrar os que não vencem, a esmagar os mais fracos, a atirar para o lixo milhares ou milhões de pessoas e de povos, está a alimentar o Islãona sua faceta de protesto, de porto de abrigo, de defesa contra uma agressão cada vez mais violenta. Um Islão que era um imenso mosaico de povos, de culturas, de formas de ser, mesmo de micro-religiões, está a ser empurrado pelo autismo desta nossa civilização todopoderosa para uma agressiva resistência, como única de forma de manter alguma identidade.
Só que diante desse ataque há muita coisa que se vai perdendo. Por exemplo, o velho conceito da cidade-mosaico mediterrânica está praticamente destruído…
Pois está. Mas aí entra um outro fenómeno dramático que aconteceu já há 50 anos, que foi a criação de Israel. Não podemos acusar os judeus ou o judaísmo. Foram os grandes interesses financeiros já ligados ao petróleo que criaram o Estado de Israel. Os judeus das cidades mediterrânicas que tinham os seus bairros, os velhos melahs (que eram zonas originalmente dedicadas ao comércio do sal), foram obrigados a abandonar as suas casas e a emigrar para Israel com promessas miríficas. Esta deslocação artificial de populações e a crescente e falsa tensão religiosa alimentada de fora do Mediterrâneo é infelizmente hoje o modelo que domina toda a região. Esta luta feroz entre as populações autóctones e os recém-chegados, oriundos da América do Norte ou de países eslavos, nascidos e criados em culturas que nada têm a ver com os antigos equilíbrios locais, é hoje, infelizmente, dominante em todo o Próximo Oriente. Estamos num impasse sem solução à vista. Precisamente porque foi quebrada a velha civilização mediterrânica, onde as várias religiões e culturas sempre conviveram mais ou menos pacificamente.
A queixa permanente que se ouve um pouco por todo lado é que os árabes não se unem. E a verdade é que olhando a história, vemos sempre muitos conflitos.
O problema é que nós misturamos tudo de uma forma muitas vezes inconsciente. Não se trata de árabes, mas de muçulmanos. Falar assim da união de árabes é a mesma coisa que estarmos a perguntar porque é que os franceses, os ingleses e os espanhóis não se uniram na história, se eram todos cristãos. É completamente impossível: são civilizações diferentes. Cada cidade tinha a sua própria histórica. O que é que tem a ver um egípcio com um libanês? Muito pouco. E um egípcio com um marroquino? Nada, absolutamente nada, a não ser a mesma religião. São povos e culturas diferentes. O que hoje os une é apenas a religião, o que a está a transformar no único cimento unificador. Não nos podemos esquecer que o árabe falado em Marrocos era incompreensível no Egipto, não se entendiam porque falavam árabes dialectais. Era como aqui na Europa. Porque é que um português e um francês não se entendem? A origem é o latim, mas depois evoluíram de forma diferente. A mesma coisa sucedeu no Norte de África. Mais tarde e com objectivos políticos, começou a ser imposto o árabe clássico. Era a mesma coisa se nós na Europa tivéssemos o latim obrigatório. Teria toda a gente de aprender latim para comunicar entre si. Foi o que fez este movimento unificador religioso do árabe, que está a aumentar exponencialmente. Neste momento, toda a gente fala árabe clássico, pelo menos na classe média alta. A escolarização é feita em árabe clássico, corânico.
Publicado originalmente na revista História, edição especial de Novembro de 2003 e reeditado no Esquerda.Net.