A etnopoesia de Hubert Fichte, entrevista a Diedrich Diederichsen
O escritor e etnógrafo Hubert Fichte é cultuado em função dos mergulhos literários nos universos por ele descritos. Uma série de exposições, em sete países, celebra agora o literato.
Hubert Fichte era um multitalento: etnólogo e poeta, é considerado um dos primeiros representantes da literatura pop, bem como precursor de novas disciplinas como os Estudos Queer ou os Estudos Pós-coloniais. Mas Fichte era sobretudo diferente. A homossexualidade, inclusive a sua própria, era um elemento central de sua obra – uma novidade nos anos 1960 e 1970. Enquanto outros escritores protagonizavam leituras em livrarias, Fichte lia trechos de seu romance Die Palette no Star-Club, no bairro de St. Pauli de Hamburgo, onde os Beatles também se apresentaram. Além disso, Fichte fez, no início anos 1970, uma série de viagens antropológicas pela América do Sul, Caribe e África. Como quase nenhum outro escritor de sua época, ele se aprofundava na descrição de outras culturas: não pretendia apenas observar, queria também compreender.
As experiências dessas viagens fluíram também para sua ampla obra literária, mais precisamente para o compêndio de 19 volumes da série de romances Die Geschichte der Empfindlichkeit (A história da sensibilidade). Quando morreu em 1986, aos 51 anos, Fichte havia concluído 17 desses volumes, que viriam a ser publicados postumamente. O Goethe-Institut, a Casa das Culturas do Mundo de Berlim, a Editora S. Fischer e a Fundação de mesmo nome dedicam a essa extensa obra uma série de exposições. As mostras questionam o quanto o viajante europeu compreendeu de fato os lugares sobre os quais escreveu. O projeto é coordenado pelo cientista da cultura e escritor Diedrich Diederichsen em parceria com o curador Anselm Franke.
Amor e etnologia é o nome da exposição a respeito do escritor e etnólogo Hubert Fichte, morto em 1986. Uma exposição sobre um poeta, como é isso?
Não se trata de uma exposição, mas, segundo os dados atuais, de pelo menos sete exposições: uma em Portugal, duas no Brasil, uma no Chile, uma em Nova Iorque, uma em Dakar e, por fim, no segundo semestre de 2019, uma espécie de resumo de todas em Berlim. Cada uma dessas mostras remete a um texto específico do grande projeto inacabado de Fichte, planejado para 19 volumes, intitulado A história da sensibilidade. Para cada exposição, traduzimos um texto desse ciclo para o idioma da região do planeta sobre a qual Fichte escreveu. As exposições foram concebidas por curadores e curadoras dos respectivos países em questão. Embora partam de premissas muito distintas, elas têm algo em comum: o questionamento a respeito de quanto o viajante europeu entendeu de fato o lugar sobre o qual escreveu.
E o que você diria? Fichte compreendeu esses lugares, caso seja possível generalizar dessa forma?
Muita coisa parece profética: a proximidade e a intensidade com que Fichte mergulhava em outros universos impressiona as pessoas, mas seu olhar e sua compreensão tinham também seus limites, naturalmente. No fim das contas, ele também era um europeu branco.
O que se pode ver nessas exposições?
Nas exposições há obras de arte contemporânea que remetem a Fichte. Em alguns casos, de uma distância maior; em outros, em referência direta a seus textos. Isso acontece quando, por exemplo, o artista brasileiro Ayrson Heráclito pega uma câmera e grava hoje as ruas e os pontos de encontro gays em Salvador que foram relatados por Fichte em 1972. As exposições em Lisboa e Salvador foram concebidas tanto para um público afeito à arte quanto para um público interessado em história e literatura de modo mais genérico.
Qual importância teve e tem Hubert Fichte?
Fichte abandonou o antagonismo entre a escrita objetiva e a escrita poética. Sua objetividade aguçada torna-se poética, sua poesia torna-se, de repente, jornalística. Como escritor de pai judeu, gay ou bissexual, ele não se sentia exatamente bem na Alemanha do pós-guerra e combatia a caretice e o provincianismo. Fichte desenvolveu as premissas que são hoje discutidas nos Estudos Queer ou Pós-coloniais, mas isso 30 ou 40 anos antes. Ao lado da história da sexualidade e das Diásporas Africanas, interessava-lhe a economia política da pobreza e da exploração. No Brasil, ele pesquisou, por exemplo, a respeito da participação de grandes grupos empresariais alemães na ditadura militar.
Os Estudos Queer exercem no momento um papel muito importante na Alemanha. A partir de outubro de 2017, o casamento gay foi oficialmente reconhecido no país. Muito recentemente, o Tribunal Superior Constitucional determinou que, além dos gêneros masculino e feminino, deve ser possível registrar intersexuais nas certidões de nascimento. Ou seja: uma possibilidade de categorização para as pessoas que não apresentam características evidentes dos gêneros masculino ou feminino. Essas seriam medidas com as quais Fichte compacturia?
Difícil de dizer: os direitos das pessoas LGBTIQ eram, de maneira geral, muito importantes para ele. Fichte inclusive avaliava as condições sociais com base na forma como esse tema era tratado. Ele tinha, por exemplo, conflitos com alguns amigos próximos, de esquerda, por estes negarem ou minimizarem a questão da homofobia em Cuba. Mas não sei se, para ele, a questão da legalização do casamento teria sido especialmente importante. Já da superação da designação binária de gêneros no direito civil, ele certamente teria gostado.
Publicado originalmente no Goethe-Institut São Paulo.