A internet é afropolitana, entrevista com Achille Mbembe
Achille Mbembe discute a história e o horizonte da comunicação e identidade digital no continente africano com Bregtje van der Haak. Mbembe sugere que o que alguns consideram a explosão da Internet é, na verdade, apenas a continuação das antigas culturas na nova era do Afropolitanismo.
A introdução do telefone móvel causou grandes mudanças, especialmente na África. Você acha que a convergência dos telefones com a conectividade com a Internet produzirá um tipo de mudança semelhante?
Com certeza! A introdução do telefone móvel no continente foi uma revolução nas formas como as pessoas se relacionam consigo mesmas. A maneira como se tratam, como se cuidam, sinaliza uma mudança na forma como os africanos contemporâneos se entendem. Como se relacionam entre si e, mais importante ainda, com o mundo – no sentido de que quase nenhum africano hoje não pode ficar sem estar conectado com o resto do mundo, o resto do continente. A internet desempenhará exatamente o mesmo papel. Ajudará a África a passar pelo tipo de evolução tecnológica que outros continentes e sociedades sofreram.
Você acha que a visão tecno-utópica de levar todo o conhecimento a todos é possível?
A tecnologia não é nada sem a capacidade de fazer sonhar. É aí que reside o poder da tecnologia. Ela é abraçada na medida em que as pessoas acreditam na promessa de herdá-la, de que ela melhorará suas próprias vidas, as tornará melhor e de se libertarem de restrições estruturais. A internet intensifica essa capacidade de sonhar e essa narrativa de libertação, antes investida em outros tipos de utopias – revolucionárias e progressistas. Narrativas de libertação, a promessa de libertação total, agora reside em duas coisas: por um lado na religião e por outro lado na mercadoria e na tecnologia. Mercadoria, tecnologia e religião estão sendo fundidas de uma nova maneira. A própria internet se tornou uma religião eletrônica a serviço da ideologia do consumo. Essa é a importância do papel fundamental desempenhado pelas multinacionais e outras grandes empresas. O perigo disso é que a política, como a entendemos anteriormente, está quase vazia agora. Como um amigo meu estava falando recentemente: “A política está se tornando um negócio para os perdedores”.
A Internet também poderia revigorar a esfera pública, a política?
Intermitentemente. É um poderoso instrumento de mobilização, para a rápida circulação de todos os tipos de mensagens, nem todas progressivas. Pode servir a qualquer propósito, mas não é suficiente para criar uma esfera pública. É muito efêmero, no sentido de que não há como prescindir do encontro face a face. Isso é absolutamente central para a política. A Internet é um meio, não é o fim. Mas vivemos em uma conjuntura em que somos levados a acreditar que é o fim. Não há mais distinção. Acho que isso não é sustentável para aqueles que gostariam de mudar a atual ordem social mundial. Essa confusão de meios e fins é extremamente perigosa e serve aos interesses dos poderosos. Mas a cultura de nossa época nos coloca em uma situação em que temos que acreditar que a distinção entre meios e fins não significa mais nada. Uma crítica política da Internet deve começar a partir daí.
Isso é o que foi totalmente eliminado nos clipes promocionais feitos pelo Google e pelo Facebook. Eles simplesmente dizem: queremos levar a Internet a todos, para que o mundo seja um lugar melhor. É uma mensagem muito simples e unidimensional.
A Internet se tornou uma religião, ela finge ser a salvação. Você se salva se apenas ficar preso à Internet, conectado, porque ela trará tudo o que é necessário para você ser feliz.
O Facebook e o Google criaram estratégias para expansão global. Você acha que existe um paralelo com os tempos do imperialismo? Agora o Google e o Facebook estão competindo pelas partes do mundo que ainda não estão conectadas às suas redes.
Sim, é mais ou menos a lógica do domínio. Faz parte da planetarização do capital, mas não funciona da mesma forma em todos os espaços. Uma das principais formas espaciais típicas da geografia de nosso tempo é o enclave (terrítorio de um Estado com distinções políticas, sociais ou culturais), o offshore (empresas e contas bancárias abertas em territórios onde há menor tributação para fins lícitos), a zona. Não existe um globo plano. É um globo segmentado, onde as pessoas estão saltando sobre grandes porções de território que não estão conectadas de forma alguma. Pode-se ver isso muito vividamente na África. Temos uma economia extrativa que está conectada a uma economia muito abstrata e financeira neste imenso espaço, que está desigualmente conectado – primeiro entre si – e depois com o resto do mundo. Parece-me que esta geografia antecipa o que o globo está se tornando.
Você se referiu à África como a última fronteira. O que você quer dizer com isso?
É o último território da Terra que ainda não foi totalmente submetido ao domínio do capital. Seus recursos minerais quase não foram explorados. É a última grande parte do Universo que ainda não foi totalmente relacionada às suas muitas partes diferentes. Imagine que, para ir de Casablanca à Cidade do Cabo, você passa quase o dia inteiro dentro de um avião. É um grande continente. Mas não temos nenhuma ferrovia de Casablanca à Cidade do Cabo ou da Cidade do Cabo ao Cairo. Não temos o tipo de rodovias interamericanas. A África é a última fronteira do capitalismo no sentido de que, mesmo para uma grande potência como a China, sua economia só pode operar por meio do fornecimento de recursos básicos do continente. E depois da China, será a África.
Muitas pessoas pesquisadas na Ásia e na África dizem que o Facebook é tão importante para eles que o resto da Internet não existe. Estamos vivendo em um mundo do Facebook?
Sim, definitivamente. O fantasma de viver em muitos planos diferentes ao mesmo tempo. Parece-me que a capacidade do Google e do Facebook está em explorar fantasias profundas e ocultas do ser humano e transformá-las em produtos que são vendidos e comprados em um mercado que é global e que desencadeia novas formas de interação que não temos visto antes.
Mas também é uma forma de publicar e divulgar ideias.
Sim, definitivamente. Mas eu estava mais interessado no tipo de eu que emerge no cadinho dessas novas tecnologias e como essas tecnologias se tornam uma extensão de nós mesmos e apagam a distância entre o humano e o objeto. Os seres humanos não se contentam mais em ser simplesmente seres humanos. Eles querem acrescentar a quem são, os atributos da coisa e do objeto.
Refiro-me à medida em que muda nossa própria relação conosco e com o que nos cerca, por causa dos tipos de tecnologias que praticamos ou trocamos; esta capacidade de multiplicação e reprodução muda algo em nossa mentalidade. Essa comunhão e fusão entre o ser humano vivo e o objeto, ou a tecnologia, está na origem de novas formas de ser que não vimos antes. Eles têm sérias implicações para aqueles que estão interessados na questão da política e da libertação. A tarefa anterior era certificar-se de que o ser humano não é um objeto. Emancipação significa que não posso ser tratado como um objeto. Quer eu seja um ser racional, uma mulher ou um trabalhador, quero ser tratado como um ser humano. Agora, se o humano começa a desejar ter alguns dos atributos do objeto, então do que se trata a emancipação?
Existe uma virada africana específica em tudo isso?
É aí que a África se torna realmente interessante porque nas cosmologias africanas, os sistemas africanos de pensamento antes da era colonial, e mesmo agora, uma pessoa humana pode se metamorfosear em outra coisa. Ele ou ela pode se tornar um leão e depois um cavalo ou uma árvore. E essa capacidade de conversão em outra coisa também foi aplicada às transações econômicas. Você estava sempre negociando com alguma outra força ou alguma outra entidade. E você estava sempre ocupado tentando capturar parte do poder investido nessas entidades para adicioná-las aos seus próprios poderes. Então, se alguém quiser pensar nesses termos um tanto essencialistas, a África é um terreno fértil para as novas tecnologias digitais, porque a filosofia dessas tecnologias é mais ou menos exatamente a mesma das antigas filosofias africanas. Este arquivo de permanente transformação, mutação, conversão e circulação é uma dimensão essencial do que podemos chamar de cultura africana. A Internet responde diretamente a esse impulso e o seu sucesso cultural pode ser explicado pelo fato de se encontrar em um nível muito profundo com o que sempre foi a forma como os africanos transacionam consigo próprios e com o mundo. E que, de fato, os africanos foram pós-modernos antes do pós-modernismo. Se você quiser ter uma ideia do mundo que está chegando, o mundo à nossa frente, olhe para a África! Você verá os sintomas e as expressões desse mundo que está à nossa frente. E a maioria das leituras do continente não foi capaz de destacar isso porque estão olhando para trás, e não de uma maneira voltada para o futuro.
Então, de certa forma, você está dizendo que o mundo digital é um mundo africano?
Absolutamente. Na verdade, o mundo da África, o mundo pré-colonial, assim como o mundo de hoje, sempre foi um tanto digital. E o que vemos agora é a reconciliação dessa cultura e uma forma que vem de fora. Mas onde estão as forças que ajudarão a domesticar essa forma e orientá-la para fins sociais, de justiça de igualdade, de liberdade e de democracia, em vez de para o agravamento das desigualdades, predação e pilhagem?
A ideia é que a África era digital antes do digital. E quando você estuda a história cultural do continente cuidadosamente, uma série de coisas vêm à tona em termos de como as sociedades africanas se constituíram e como operaram. Primeiro, elas se constituíram por meio da circulação e da mobilidade. Quando você olha para os mitos africanos de origem, a migração ocupa um papel central em todos eles. Não há um único grupo étnico na África que possa alegar seriamente nunca ter se mudado. Suas histórias são sempre histórias de migração, ou seja, pessoas indo de um lugar para outro e, no processo, se fundindo com muitas outras pessoas. Então, nessa circulação e amálgama, você compila os deuses, conquista um grupo étnico, derrota-o militarmente e toma os deuses deles como seus, ou toma as mulheres deles como suas esposas e, portanto, eles se tornam seus pais.
Em segundo lugar, a plasticidade extraordinária – a capacidade de abraçar o que é novo, o que é iniciante. A plasticidade e a vontade de experimentar o novo foram vistas em todo o continente. As pessoas não acreditarão no Deus dos muçulmanos da mesma forma que as pessoas na Arábia Saudita. O islamismo senegalês é muito diferente do islamismo do Irã ou da Arábia Saudita. Tome formas de moeda, na África Ocidental por séculos todas as moedas foram usadas. Você vai para o Zimbábue agora mesmo, você pode usar o dólar, o rand (rande, moeda sul-africana), a libra, o iene, essa multiplicidade de coisas. Continua-se transformando uma coisa em outra. Essa flexibilidade e essa capacidade de inovação constante, extensão do possível, esse é também o espírito da Internet, é o espírito do digital, e é o mesmo espírito que você encontrará na África pré-colonial e contemporânea. E o que se faz é construir o encontro, a conciliação entre essas formas e o arquivo cultural que ainda faz parte do cotidiano, com o propósito de construir uma sociedade afropolitana e comprometida com ideais de liberdade e libertação.
Como você reconcilia a ideia que acabou de desenvolver, o mundo digital como um mundo africano, com o sucesso limitado dos aplicativos africanos e da inovação tecnológica?
Parece-me que não existe nenhuma outra parte do mundo onde as pessoas sejam forçadas pelas más circunstâncias a inovar tanto como neste continente. É uma inovação constante e permanente. Se você não inovar nas formas de pensar, nas formas de fazer as coisas, não vai conseguir sobreviver. Mas como ter certeza de que essa capacidade inesgotável de inovação está a serviço de um tipo maior de criação que pode impulsionar o continente, pode ajudá-lo a se erguer e se tornar seu próprio centro?
Como ter certeza de que as instituições não atrapalham essa capacidade de inovação? A possibilidade de que a Internet possa ajudar a resolver esse dilema institucional é algo em que devemos pensar criativamente. Pode muito bem ser a cunha que ajuda a cortar o nó de supressão entre instituições e inovações.
Os chineses e indianos estão vindo aqui para conseguir algo da África, mas os americanos e europeus ainda estão presos à ideia de que precisam trazer algo …
Sim, essa é a grande divisão. A divisão do início do século 21 é justamente entre aqueles que pensam que esta é uma terra de caridade, onde você traz algo para esses pobres que mal conseguem viver, e aqueles que vêm aqui porque sabem que é o laboratório do futuro e que há coisas aqui que podem ser colhidas. O Ocidente, claro, ainda é um jogador importante, mas novos jogadores estão chegando, novas conexões estão sendo feitas para aqueles de nós que vivem em um lugar como Joanesburgo, por exemplo. É fácil ver isso. Basta pegar um vôo indo para Xangai ou para Mumbai ou para São Paulo e comparar com um vôo indo para Nova York ou Londres. São dois mundos totalmente diferentes. Por um lado, o mundo do futuro e, por outro, o mundo do passado. Para onde quer ir o continente, com quem? E quais são as forças que devem ser mobilizadas para fazer a diferença?
Você acha que o aumento da conectividade com a Internet irá dissolver as fronteiras entre o campo e as cidades, ou a cidade pertencerá às pessoas conectadas e o campo aos desconectados?
Em primeiro lugar, estamos percebendo uma redução da distância entre as cidades e as áreas rurais, uma intensificação das circulações e transações entre as duas. As pessoas estão se movendo constantemente para a frente e para trás, a ponto de ficar um pouco difícil dizer o que é urbano e o que é rural. Em um lugar como Kinshasa por exemplo, de acordo com quem está estudando a cidade, você vê uma ruralização da cidade e uma urbanização do rural.
Essa é a tendência que se intensificará nos próximos anos. Em vários países, vimos um aumento na eletrificação de áreas rurais. No sul dos Camarões, por exemplo, a maioria das aldeias está agora eletrificada. E com a eletricidade vem tudo o que estávamos falando: televisão, acesso à Internet, telefones celulares e assim por diante. O que veremos é a densificação de todos os tipos de redes, tanto humanas quanto tecnológicas, que irão remodelar todo o mapa espacial africano.
Você acha que com o aumento da conectividade, as fronteiras internas da África tenderão a se dissolver?
O que veremos é uma pluralização das fronteiras, no sentido de que ainda teremos essas fronteiras físicas, fronteiras coloniais. Mas então essas fronteiras físicas serão substituídas por todos os tipos de interações, a maioria delas virtuais. Isso já está acontecendo. Então, gradualmente, a ideia de fronteiras físicas será deslegitimada devido à intensidade do tráfego virtual que poderá levar à reformulação das entidades nacionais. Acho que o futuro está em aberto, mas a contestação de fronteiras vai aumentar, ainda mais porque a Europa está agora fora do alcance para muitos africanos. Você terá um aumento de urbanização. Se você viajar hoje de Lagos para Accra, é como uma grande cidade costeira. Em 50 anos ninguém conhecerá as fronteiras de Lagos, porque ela se expandirá fisicamente de Lagos a Accra. Portanto, a questão é política: nos antecipamos a isso? Ou esperamos que aconteça de forma caótica e desorganizada?
Mas, cultural e psicologicamente, isso contribuirá para um novo tipo de mentalidade e identidade pan-africanas?
Isso contribuirá para o surgimento de algo que chamo de mentalidade Afropolitana, no sentido de que haveria mais circulações dentro deste continente incrivelmente grande. Eu te falei sobre o 1 milhão de chineses. Em Angola e em Moçambique, nos últimos cinco anos, assistimos ao regresso de 18.000 portugueses, alguns dos quais partiram durante a colonização, outros acabaram de chegar. Você tem pessoas vindo do sul da Ásia. Marroquinos vindos do norte e se estabelecendo nas principais cidades sul-africanas. Portanto, o afropolitanismo é o movimento cultural que acompanha esses processos históricos, alguns dos quais totalmente novos. É mais do que o pan-africanismo, é algo que faz da África o ponto de encontro de diferentes movimentos migratórios.
Em alguns lugares, vemos novas fronteiras sendo estabelecidas com o uso da tecnologia, por exemplo aqui na África do Sul.
Isso é típico da era de globalização pela qual o mundo está passando. Também é típico da era do capital financeiro que, para sua reprodução, precisa constantemente se eximir de quaisquer obrigações para com uma determinada localidade, aumentando assim a importância do offshore, por exemplo.
Você acha que os regimes totalitários na África podem se transformar em regimes totalitários com assistência tecnológica?
Se os regimes totalitários na África quiserem se tornar mais sofisticados em seu controle do povo, eles podem fazer isso, mas não tenho certeza se eles têm os meios ou a inteligência. Às vezes, os regimes totalitários são bastante estúpidos.
Na melhor das hipóteses, daqui a cinco ou dez anos, onde estaremos?
Em 15 anos, teremos um continente totalmente diferente. Você terá populações que se moverão em um ritmo mais rápido do que agora: você terá mais conexões físicas entre as diferentes partes do continente; você terá uma classe média maior; você terá enclaves de pobreza, desemprego e até mesmo guerra; você terá muito mais pessoas vindo e se estabelecendo no continente, especialmente pessoas vindo da Ásia; e você terá, já que é o tema da nossa conversa, milhões de pessoas que ficarão ainda mais conectadas às novas tecnologias.
A propósito, os muito pobres se beneficiarão com esses desenvolvimentos. O maior desafio, claro, ainda será como colocar as pessoas para trabalhar. A Internet por si só não resolverá as questões políticas. Temos que reinvestir no político, ou seja, em formas de lutas, lutas sociais e políticas, visando e criando sociedades mais justas.
Artigo originalmente publicado em Conexão Malunga a 28/04/2021.