Dambudzo Marechera - Memórias da Casa da Fome
Enfant mais que terrible da literatura do Zimbabué, outsider da vida e da escrita, Dambudzo Marechera cresceu na miséria mais negra e viveu uma tempestuosa existência afligida por perseguições políticas, fome, clandestinidade, exílio, brigas de bar, drogas, doença… Morreu só, com Sida, aos trinta e cinco anos, e tornou-se o ídolo de milhares de jovens compatriotas que estamparam o seu belo rosto em t-shirts, copiaram as suas excêntricas indumentárias, decoraram os seus poemas e partilharam o seu desencanto pelo Zimbabué pós-Independência. Autor dos mais controversos da anglofonia africana, deixou publicada uma curta obra em que se destaca The House of Hunger, um “romance de culto” onde, como notou Doris Lessing, “a sua raiva explode numa fusão de lirismo, perspicácia e obscenidade”.
“Penso que sou o doppelganger que a literatura africana ainda não tinha encontrado até eu aparecer”, definia-se com a imodéstia habitual o escritor zimbabueano Dambudzo Marechera. “Nesse sentido, questiono qualquer pessoa que me chame escritor africano. Ou és escritor ou não és. Se és escritor de uma nação ou de uma raça específica, então vai-te foder!”
A sua obra, toda paixão e excesso, transpira a cada linha a infância sobrevivida num bairro da lata africano. Terceiro de uma família de nove filhos, Charles Dambudzo Marechera nasceu a 4 de Junho de 1952 em Vengere, o maior subúrbio negro de Rusape, uma cidadezinha rural na via férrea Harare-Mutare. Nesses dias, ainda Harare se chamava Salisbury, Mutare grafava-se Umtáli e o nome do território era Rodésia do Sul, um dos últimos redutos do Império Britânico a ceder à vaga anti-colonial do pós-guerra.
A mãe, Masvotwa, era criada dos meninos numa família branca e o pai, prematuramente desaparecido, exerceu variados misteres ao longo de uma vida acidentada, marcada pelo alcoolismo e a prisão. Com enormes sacrifícios, os pais lograram contudo manter os miúdos a estudar. Reconhecidas as suas invulgares capacidades, Dambudzo iniciou aos cinco anos os estudos primários na pequena escola da missão local. Colegas de classe recordam os irmãos Marechera como “pessoas excepcionalmente inteligentes” e evocam Dambudzo como um rapazinho “tímido e envergonhado”, franzino e débil de saúde, muito míope e atormentado por uma acentuada gaguez. Ficou gago em criança, quando o forçaram a olhar o cadáver desfigurado do pai, e assim se manteve toda a vida, só deixando de gaguejar quando declamava os seus poemas em público, apaixonadamente.
Fugindo à sinistra realidade do gueto, lia muito. “Para esquecer a fome”, como explicaria mais tarde. As suas primeiras leituras foram os velhos livros deitados fora pelos meninos brancos, que Dambudzo e os amigos resgatavam, esgravatando na vizinha lixeira municipal: banda desenhada, Mickey Spillane, Tarzan…
Com a morte do pai, as condições agravaram-se até à miséria mais extrema. Incapazes de pagar a renda de casa, os Marechera foram despejados pela polícia, que arrombou a porta e atirou com os trastes para o meio da rua. Com os filhos atrás, Masvotwa errou durante algum tempo, pernoitando aqui e ali, até se abrigar numa miserável cabana de paus e lama construída no subúrbio de Tangwena, ainda mais sujo, mais pobre e mais brutal que Vengere. “A maior parte das pessoas que lá viviam ou eram mulheres alugando quartos para prostituição ou eram chulos”, recordaria um companheiro de infância.
Para fazer frente à situação, a mãe passou a lavar roupa para fora e a prostituir-se. Com o tempo, também uma das irmãs começou a trazer homens para casa, depois da escola, e a fechar-se com eles enquanto os irmãos esperavam diante da porta. “E então”, escreveu Dambudzo anos depois, “ouvíamos o som das moedas e sabíamos que no dia seguinte havia matabicho”.
Acossado pela fome, estudava, estudava… Em 1966, ele e o irmão mais velho, Michael, foram admitidos na Escola de Saint Augustine, uma das mais prestigiosas instituições de ensino para negros, de onde saíram destacados intelectuais e políticos zimbabueanos da actualidade. Situada muito perto da fronteira moçambicana, na magnífica serrania raiana de Penhalonga, a escola era gerida por missionários anglicanos de vistas largas em política e literatura, que punham os rapazes a ler James Joyce, George Orwell, D.H. Lawrence…
Os excelentes resultados académicos, que lhe valiam bolsas de estudo, cedo foram acompanhados de problemas disciplinares, com Dambudzo a exprimir enfaticamente o seu desagrado pelos programas escolares coloniais. Referindo-se à contradição entre os materiais didácticos e a vida verdadeira, um dos seus professores recordaria que “isso o frustrava e frustrava os professores”, dando às vezes ocasião a “autênticas lutas” na turma.
A outra luta, essa, prosseguia ali ao lado. Os sucessos da guerrilha da Frelimo, do outro lado da fronteira, começavam a despertar o interesse dos alunos de Saint Augustine, que devoravam os panfletos que iam conseguindo arranjar. No contexto obsoleto da Rodésia, o exemplo moçambicano era um farol para a politização de todas as revoltas de uma juventude à procura da sua dignidade. A adopção de uma nova tabela salarial para o sector docente, em 1971, foi sentida como racialmente discriminatória pelos estudantes negros das universidades e das várias escolas secundárias, e desencadeou uma vaga de protestos. Marechera teve o seu baptismo de militância política e o caso só não assumiu maiores proporções porque os missionários conseguiram evitar a “caça aos agitadores”.
Em simultâneo com a descoberta da política, Dambudzo Marechera fez outra, crucial. Ao vasculhar nos livros da biblioteca escolar deparou com um exemplar de Weep Not Child, de Ngugi wa Thiong’o. “Nesse tempo, pensava que os pretos não podiam ser escritores”, recordou. “De súbito, soube o que queria fazer da minha vida – escrever histórias, poemas, peças. Escrever!”
Ao mesmo tempo que devorava textos, começou a escrever, inicialmente marcado por D.H. Lawrence, o seu “esqueleto no armário”. Mais tarde viria a assumir também as influências de James Joyce, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Kurt Vonnegut, Charles Bukowsky…
Recomendado pelos professores de Saint Augustine, Dambudzo Marechera foi admitido na Universidade da Rodésia, em Salisbury, em Março de 1972. Por esses dias, a vida académica estava acentuadamente polarizada entre estudantes brancos, por um lado, e estudantes negros e asiáticos, por outro, e as relações entre as partes era tensas e marcadas por frequentes atritos. Recém-chegado, Dambudzo aderiu à agitação estudantil com entusiasmo, preservando contudo um feroz individualismo que o levou a realizar uma “manifestação de uma pessoa” nas ruas da cidade.
No ano seguinte, o projecto de criação de uma universidade só para negros desencadeou manifestações no campus de Salisbury, que as autoridades brancas reprimiram com mão pesada, expulsando Marechera e cinco colegas. “Não são abstractos; deixam-te viver suas ideias até gritares/ Não!/ Porque só te ensinam a aveludada luva que as garras esconde.” (Raise Hell & You’ll See the Reality) Receando ser preso, optou pela clandestinidade, que parcialmente viveu escondido em Saint Augustine. Meses depois, integrado num grupo de uma vintena de activistas, conseguiu autorização de residência no Reino Unido e obteve uma bolsa para prosseguir os estudos de Literatura Inglesa no prestigioso New College de Oxford.
Smog
Apesar dessa oportunidade, que teria maravilhado a maioria dos estudantes africanos, Marechera viveu os dois anos que permaneceu em Oxford em permanente conflito: com os professores, com os colegas, até com os empregados. Na origem dos diferendos tanto podia estar uma discussão literária como uma altercação de bêbedo. “Era uma figura muito solitária”, notou um alto funcionário académico, “em parte por o seu comportamento ser tão imprevisível e difícil”.
Envolveu-se frequentemente nas actividades políticas dos estudantes expatriados que frequentavam o Africa Center, mas era muitas vezes visto com desconfiança pela atitude arrogante, pelas posições anarquistas e, mais prosaicamente, pelo hábito de pedir emprestado dinheiro que nunca devolvia.
Frequentava mais os pubs que as aulas, bebia e fumava marijuana “mais ou menos continuamente enquanto a lucidez e o dinheiro o permitiam”, experimentava LSD, vivia de noite e punha o campus em alvoroço tocando discos de Wagner no volume máximo a altas horas da madrugada. “Leio todo o dia, erro toda a noite. Não tenho/ mais nenhum fim.” (The Footnote to Hamlet)
Em resultado desse comportamento, culminando com a noite em que, muito bêbedo, iniciou um incêndio ameaçando queimar a secular universidade, as autoridades académicas pressionaram-no a consultar psiquiatras. Embora Marechera tivesse um historial de perturbações psíquicas, os médicos declararam-no “mentalmente são” mas prescreveram-lhe acompanhamento adequado. Face à sua recusa, foi expulso de Oxford.
Sem dinheiro, ameaçado de repatriamento para a Rodésia, onde temia ser preso, iniciou uma vida de vagabundo. Arranjou uma tenda e instalou-se à beira-rio, ali escrevendo uma parte do texto do que viria a ser a sua obra principal, The House of Hunger. Em Fevereiro de 1977 enviou uma versão à Heinemann, em Londres. Entusiasmada, a editora apressou-se a garantir os direitos do livro, embora solicitasse ao autor várias alterações no manuscrito. Com o dinheiro avançado pela editora, Marechera resolveu viajar, começando pelo País de Gales, onde logo veio a ser preso por posse ilegal de cannabis. Libertado ao cabo de dois meses na prisão de Cardiff, mudou-se para Londres, ali permanecendo até regressar a África. Na versão final, integrando uma novela e contos, The House of Hunger foi lançado em Dezembro de 1978, e o acolhimento foi entusiástico. “Este livro é uma explosão”, escreveu então Doris Lessing. “Marechera tem o que é preciso para fazer um grande escritor”.
A admiração foi partilhada pelo júri do Prémio de Ficção do The Guardian, que, no ano seguinte, lhe atribuiu o galardão, a meias com o escritor irlandês Neil Jordan. No cocktail de entrega do prémio, Dambudzo Marechera compareceu de poncho vermelho e chapéu de aba larga, com um amarfanhado volume de Os Cantos de Ezra Pound debaixo do braço. Bebeu imoderadamente, insultou os convidados (editores, críticos, jornalistas…) e pôs-se a atirar a baixela à parede.
Recusando-se a exercer qualquer outra profissão que não fosse a de escritor, Marechera foi sobrevivendo em comunidades de okupas e escrevendo na cozinha de amigos. Trabalhando febrilmente, submeteu três novos manuscritos à Heinemann durante o ano de 1978, ao mesmo tempo que assediava a editora com incessantes pedidos de dinheiro. Depois de banido dos escritórios, tentava lá entrar usando variados disfarces, de fotógrafo do Guardian a velha senhora, com uma peruca de vovó. Noutra ocasião apareceu em traje de caçador e pediu cinco libras emprestadas para chegar a Oxford. Quando o editor James Currey lhe sugeriu que fosse à boleia, exclamou: “O quê? Assim vestido?”
Regresso a casa
Convidado a um festival literário na Universidade Técnica de Berlim Ocidental, foi detido à chegada por imigração ilegal, o que ajudou a popularizar a sua imagem junto do público alemão. A estada berlinense de Marechera, durante a qual prepararam uma edição alemã de The House of Hunger, foi preenchida por numerosas aparições e contactos com os media. A rádio Deutsche Welle opinou: “Talvez nenhum escritor africano tenha descrito a perseguição permanente, o processo de brutalização e a dominação de outros seres sobre as mais secretas células da personalidade de uma pessoa de modo tão poderoso, tão intenso e tão realista como Dambudzo Marechera.”
De regressoa Londres, submeteu à Heinemann o manuscrito de Black Sunlight, um “romance experimental” cuja acção aparentemente decorre na Europa. Os editores acolheram a obra sem grande entusiasmo, considerando-a inacabada, mas vieram a publicá-la em finais de 1980, na esperança de assim encorajarem o autor a escrever “um romance melhor, sobre o Zimbabué”.
Enquanto, em Inglaterra, Marechera lutava por sobreviver como escritor, na Rodésia a guerrilha nacionalista intensificava os combates, fortemente apoiada pelo recém-independente Moçambique. Isolado no plano diplomático, o regime de minoria branca de Ian Smith entrou em colapso e, em 1980, o território alcançou a independência. A Rodésia morreu! Viva o Zimbabué!
Dambudzo Marechera regressou à Pátria libertada a 9 de Fevereiro de 1982, após cinco anos de exílio. Beijou o solo ao descer do avião, mas no carro, entre o aeroporto e a cidade, já se sentia deslocado. “Não posso cá ficar”, dizia ele. “Não pertenço a isto.”
Desembarcou em grande estilo, acompanhado passo a passo por uma equipa de cinema que rodava um filme sobre The House of Hunger e o seu autor, mas logo se incompatibilizou com o realizador e bateu com a porta a meio das filmagens.
A sua chegada a Harare coincidiu com o surgimento de rumores, depressa confirmados, de que a Comissão de Censura decidira proibir a circulação de Black Sunlight, por considerar a obra ofensiva, “especialmente para os cristãos”, usando “a linguagem mais suja” e aludindo a actos como sodomia, felação e incesto. Era a primeira vez desde a Independência que a Comissão de Censura herdada do regime colonial proibia uma obra de um autor africano. A medida suscitou uma vaga de indignação entre os intelectuais zimbabueanos e, perante o movimento que se criou, a Censura foi obrigada a recuar e levantou o banimento.
A fama de escritor premiado em Inglaterra e a prática inconformista e boémia tornaram-no de imediato uma figura muito popular entre a juventude. Contudo, muitos zimbabueanos reagiram mal ao cinismo político de Marechera e à sua crítica contundente do governo do presidente Mugabe. “Quando Smith nos governava, tínhamos constantemente de o confrontar como escritores, e ainda mais devíamos fazê-lo agora que temos um governo de maioria”, argumentou. O certo é que os novos governantes, muitos dos quais tinham sido seus condiscípulos, o olharam desde logo com uma desconfiança semelhante à das autoridades coloniais.
Por outro lado, o relacionamento com a família foi desastroso. Quando a irmã Tsitsi lhe foi dar as boas-vindas a Harare, Dambudzo suspeitou a família de tentar extorquir-lhe dinheiro e cortou relações. A mãe viajou para a capital à sua procura, mas ele escondeu-se e só tornaram a ver-se cinco anos depois, pela última vez, quando a velha Masvotwa o visitou no hospital, perto do fim. “Já não canto rosas/ Vagueio por harareanos labirintos.”
“Palestra de despedida”
Isolado da família e marginalizado no seu país, Marechera optou pela diáspora. No dia da partida para Londres, pronunciou, a convite da Faculdade de Artes, uma “palestra de despedida”, durante a qual verbalizou as suas críticas à subalternização da literatura aos novos valores estéticos e sociopolíticos impostos pelos novos governantes. Apareceu vestindo um fato austero e uma gravata com um logótipo comercial, calçando galochas e carregando uma caixa de cartão desconjuntada e uma máquina de escrever portátil. Atacou tudo e todos, desde as tradições africanas aos novos governantes marxistas, passando pelos “académicos burgueses mais as suas piscinas”.
“Se quiserem escrever um tratado político, escrevam um tratado político, mas depois não tentem fingir que é um poema”, disse. “Se quiserem gritar, gritem, mas não ponham o grito no papel a fingir que é um poema.”
Por fim pôs-se a palmilhar o estrado, às voltas, murmurando: “Foda-se! É impossível trabalhar aqui.” Quando um estudante lhe gritou: “Então porque não te vais embora?”, respondeu: “Vou-me embora esta noite. Já!” Perguntou pelos honorários da palestra, agarrou na máquina e na caixa, e meteu-se num táxi colectivo a caminho do aeroporto. No entanto, não conseguiu deixar o Zimbabué. Não sendo portador de qualquer documento de viagem válido, as autoridades da Migração impediram-no de embarcar. “Sou a bagagem que ninguém reclama:/ O cagalhão fora de sítio que ninguém assume.” (Identify the Identity Parade)
Apesar de renovadas tentativas de regressar a Londres acabou por permanecer até à morte em Harare, onde a visão familiar do escritor vagabundo que dorme ao relento e escreve poemas nos bancos de jardim “assumiu proporções míticas”.
“Distinguido além-mar pela sua escrita, o seu domicílio no Zimbabué são bancos em parques mal cuidados, portais onde os guardas-nocturnos o conhecem e salas de espera de esquadras”, assim o descreveu a revista sul-africana Drum. “O seu nome é Dambudzo Marechera, provavelmente o maior escritor do país.”
Apesar das imensas adversidades continuou a escrever, atravessando um período de “luta física e psíquica que foi rico em criatividade”, conforme recorda Flora Veit-Wild, sua amiga e autora do mais importante estudo sobre a sua obra. “Marechera era estimulado pelo desencanto”, diz ela. “A sua escrita ia buscar energia à crítica contundente da sociedade pós-Independência e ao ressentimento por ser marginalizado”.
Em 1984, a College Press, de Harare, lançou no mercado Mindblast, o terceiro e último livro que Marechera publicou em vida. Integrando teatro, prosa, poesia e um “diário de banco de jardim”, a obre foi recebida com entusiasmo pela juventude intelectual, apesar da crítica oficial deplorar a sua “perspectiva egocêntrica”.
Uma terrível beleza
Aos trinta e dois anos, Dambudzo Marechera era um homem solitário, ostracizado pelas autoridades e incapaz de manter relações afectivas duradouras. “Quando os lençóis por fim silenciarem/ não perguntes: Em que estás a pensar?” (There’s a Dissident in the Election Soup!)
Flora Veit-Wild considera que, embora reforçasse a sua imagem boémia, “o mito da voracidade sexual” de Marechera era “enganador”: “Fosse o que fosse que as mulheres procuravam nele, para Marechera elas significavam contacto humano, conforto e abrigo na vasta solidão da sua vida.”
Débil de nascença, o seu estado de saúde agravou-se e alguns amigos cotizaram-se para lhe pagar a renda de um pequeno apartamento no centro de Harare, perto dos bares que frequentava: “Volto as páginas todas aos meus dias/ Acho-as quebradiças, amareladas, negras/ E onde a paixão escreveu apaixonadamente/ Nada! Só um corpo esmagado de barata.” (The Chair is Grief)
Pouco tempo depois adoeceu gravemente com pneumonia, foi hospitalizado e os médicos diagnosticaram-lhe Sida. Morreu à uma hora da madrugada de 18 de Agosto de 1987. Tinha trinta e cinco anos, e deixava três livros publicados e imensos manuscritos.
O funeral foi acompanhado por centenas de pessoas. Uma vez morto, Marechera inspirou um autêntico culto juvenil no seu país: os seus poemas foram imitados, a sua vida narrada em canções e o seu rosto estampado em t-shirts. Desencantados pela Independência, os fãs de Marechera identificavam-se com o seu estilo directo e inconformista e com o seu inflexível desprezo pela nova classe governante, que usava o discurso socialista para enriquecer.
Decorridas duas décadas sobre a sua morte, Dambudzo Marechera permanece um exemplo de independência intelectual raríssimo nos jovens países africanos, onde as elites geralmente se acolhem ao abrigo dos governos. “Mesmo abordando um tema público, escolhi sempre a voz privada, simplesmente a minha visão idiossincrática, talvez irrelevante ou anarquista”, explicou ele numa entrevista.
Ao morrer, tinha publicado três livros, nenhum dos quais traduzido em português: The House of Hunger (1978) e Black Sunlight (1980), publicados na African Writers’ Series da Heinemann, e Mindblast, editado pela College Press, de Harare. Por divulgar ficavam ainda numerosos trabalhos em prosa e teatro, além de cento e trinta poemas. Exceptuando alguns poemas incluídos em Mindblast ou publicados em revistas ou antologias, toda a sua poesia permanecia inédita, constituindo uma vertente da sua obra geralmente ignorada por leitores e críticos. Fortemente influenciados por T.S. Eliot, os versos concentram o extraordinário poder criativo da escrita de Marechera, levando a crítica inglesa Angela Carter a comentar que “uma terrível beleza nasce da urgência da sua visão”.
Embora o contributo de Marechera à abordagem da problemática rodesiana seja geralmente reconhecido, a sua produção literária ainda hoje divide a crítica africana. Assim, enquanto alguns consideram a sua obra decadente e alienada dos valores tradicionais africanos, outros, avaliando-a à luz da desencantada realidade pós-colonial, reconhecem a importante função de um escritor como Dambudzo Marechera, que nada toma por adquirido e que considera tarefa sua “perturbar, rasgar e destruir”.
fotografias de Harare (2009) de Gonçalo Antunes
Texto originalmente publicado na revista Ler (nº47 - Outono 1999)