De açaí a punk rock. A arte como prática de aquilombamento, conversa com Marcos Lamoreux.

Marcos Lamoreux é cria da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Apaixonado pela Baixada, encontramos nas suas produções o seu amor pela baixada e tudo relacionado a ela. E não é pouca coisa. Essa amplitude de saberes oriunda da Baixada - espaço/tempo de encontro de diversas experiências de vida - se reflete também nas habilidades de Marcos que é um artista polivalente, se dedicando cinema ficção e documentário, fotografia, artes visuais, escrita, educação, viagens dentre outros. A versatilidade de Marcos é uma de suas grandes características, mostrando que nas artes em geral, tudo está conectado em sintonia, caso contrário não teria sentido. 

Uma conversa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com Marco Aurélio - pedagogo e pesquisador sobre cinema e relações étnico raciais - sobre a sua trajetória artística, suas conquistas e planos futuros. Passando por assuntos como produção audiovisual, arte, estética e política, mas também falando sobre o companheirismo do fazer cinema no aquilombamento, açaí e viagens. 

MA - Você tem um contato bem grande com as artes, o que é arte pra você?

ML - A arte é subjetiva mas tem que te tocar de alguma forma.

E quando te toca provoca algum tipo de mudança, você nunca é o mesmo depois de ver um filme, uma foto, escuta uma música, depois de dançar. Então a arte tem um cunho, um caráter político também?

Impossível a arte e a cultura estar desvinculada da política, é impossível qualquer coisa que a gente faça estar desvinculada da política.

Política é uma coisa do nosso cotidiano também, é como a gente age com as coisas, a maneira que a gente se posiciona já é política.

Isso entra naquele debate da performance, da performance social, não o jeito como a gente lida, mas encara certas coisas. Lidar e encarar, de certa forma, são a mesma coisa. Quando a gente toma um baque, a gente sabe, toma conhecimento de alguma coisa, a maneira como a gente lida com essa coisa depois, essa coisa, essa pessoa…

Isso tudo é uma performance também mesmo se você não ter pensado em fazer a performance artisticamente falando, mas o corpo no mundo já é uma performance, o jeito que a gente se vez, reage, mesmo sem querer a gente ta performando. A gente ta performando aqui agora.

Exatamente, estamos performando uma entrevista, uma conversa entre dois intelectuais.

Quase um intelectual orgânico. Quanto à sua produção de arte, a questão da performance e a sua relação com o audiovisual, como você percebe essa relação entre arte, performance, política e o seu trabalho com audiovisual?

Acho que demorei um tempo para me enxergar como cineasta. Com essa mentalidade de agora, não de ontem, não de semana passada, ou de um ano atrás, depois de todos os processos que eu estou passando, me enxergado agora como um cineasta ativista, muito mais político, muito mais engajado em diversas coisas do que antes. Então acho que é assim que me enxergo e é assim que entendo minha ligação com o audiovisual sempre militante, ativista, em várias causas.

É o que você tenta fazer nos seus filmes. Passar, através de uma estética e subjetividade essas questões políticas que acabam atravessando-os. Eu vejo recentemente um crescimento de pessoas parecidas com a gente, com você que também estão nesse movimento de criar arte de forma independente, na correria.

Sim, pessoas hipertalentosas e muito mais talentosas do que eu, que conseguem ter umas sacadas de pequenas questões, ou de pequenas sacadas desenvolver outras questões que fazem todo o sentido, toda a diferença que são incríveis, que vão provocar um pensamento, vão provocar um debate, uma discussão muito enriquecedoras de verdade.

E para elas encarar esse rótulo, essa persona de um artista, um cineasta é uma coisa que sempre foi negada. Para as pessoas que vêm da periferia trabalhar com isso nunca foi uma possibilidade, eu acho que quando a gente toma esse ponto de se auto intitular, cineasta, um artista, performer ou o que seja, a gente está subvertendo esse termo elitizado de cineasta branco lá no topo, ou o artista branco na galeria. É uma forma de trazer esse tipo de cultura pra outros patamares.

Gosto de trabalhar nas oficinas e nas aulas que eu dou também de já incentivar os alunos que estão estudando que já tem um filme, que já fazem alguma coisa de pegar esse título mesmo “eu sou cineasta” eu sou produtor, eu sou filmaker, eu sou videomaker, ou o que eles quiserem ser e assim que eles já tenham uma mínima experiência disso, se for uma coisa que eles querem fazer eles são. E incentivar realmente o uso desses termos pra dar sequência a esse movimento.

Nesses movimentos todos, as pessoas sempre pensam num coletivo, acho que é importante a gente salientar a invididualidade mas também lembrar que nesses movimentos ninguém está sozinho, todo o mundo se ajuda. Como vê essa relação do individual e do coletivo dentro dessa perspectiva de produção de cultura e arte? Ninguém faz nada sozinho, sempre estamos fazendo as coisas juntas. Se você formula uma pergunta você está pensando nisso por alguma coisa que te atravessou  antes.

O cinema é altamente colaborativo, é impossível fazer cinema sozinho, por mais que você faça todos os processos sozinhos, você depende de algum objeto mesmo que não seja um objeto animado, mesmo que não seja uma forma orgânica, uma pessoa, sabe um animal, você ta dependendo de uma coisa, você não está sozinho nessa. Você fez um filme sobre algo, sobre alguém, com alguém, e por ai vai. Altamente colaborativo e você ta fazendo filme para as outras pessoas verem também. É a opinião do público que conta pra alguma coisa, não que você vá alterar o filme, mas é o debate, você propôs um debate com determinado filme, que o público, a audiência, a pessoa que está vendo o filme vai responder e reagir de uma determinada forma. Acho que precisamos estar atentos no que essa galera pensa ou passou a pensar depois que assistiu o filme pra dar continuidade ao debate. 

É importante esse caráter reflexivo, ainda mais pensando em narrativas que contemplem pessoas negras, pessoal da periferia, pessoas que são subjugadas pelas opressões diárias que vivemos, por isso é importante pensar nesse caráter reflexivo. Dentro dessa perspectiva podemos pensar no cinema como um artefato de educação, não num caráter extremamente didático, pedagogizante ou de transmissão de conhecimento mas como numa forma de pensar questões pertinentes pra educação, qual seria a articulação entre cinema e educação?

Tem tudo a ver, sempre converso sobre o didatismo acessível, principalmente nos desenhos, sabemos que mesmo sem querer eles são didáticos, até de forma negativa de reproduzir um imaginário que forma uns robozinhos. Temos que instigar as pessoas a pensar por conta própria, dela ter opinião sobre determinadas coisas, o cinema é basicamente isso. Não é que esteja ensinando, mas incentivando a pessoa a ter um pensamento crítico a partir de determinado ponto de vista.

E que ideias tenta provocar através da sua arte?

É bem variado, indo de açaí a punk rock. Eu tenho a sensação na minha cabeça que certas coisas podem fazer mais sentido do que para outras pessoas, a obra final, por exemplo, no Tecnoísmo. Vejo muito a questão da religiosidade, da anarquia, a distopia pós apocalíptica. A gente já vive uma distopia, comparado há dez anos atrás o que o brasileiro está sofrendo politicamente, como as redes sociais, é muito diferente do que a gente imaginava há 15, 20 anos atrás. Mas eu penso em determinadas coisas e o resultado final na visão das pessoas pode ser bem diferente daquilo que eu imaginei. Conteúdo que eu produzo vai realmente desde açaí, grafite, anarquia, política em geral, religião.

Isso não quer dizer que precisamos sempre produzir conteúdos que sejam fechados, tipo enlatados, é bom os filmes terem esse caráter de liberdade de pensamento, de interpretação, para que os espectadores consigam criar em cima de alguma coisa, mas não dar já um produto fechado só para consumo, meio que blockbuster.

É aquilo que falamos sobre o que a pessoa entende da sua obra e o que você realmente quer dizer, a opinião da pessoa que assistiu sobre aquela obra. Eu não faço só ficção,  faço documentários que tecnicamente é uma coisa já fechada mas que as pessoas interpretam de outras maneiras, algumas maneiras até que inimagináveis. Eu fiz um documentário sobre uma mulher negra de uma periferia de São Paulo foi um filme que foi outra coisa, a experiência de fazer o filme também é muito interessante e gratificante na maioria das vezes, como por exemplo, esse documentário, é uma entrevista, é uma fala de uma pessoa solo, não tem nada além da pessoa falando, essa mulher, mas pra poder chegar lá e captar ela falando eu fui pra São Paulo de carona, com dois reais no bolso, tive que vender fanzine num show no domingo para poder ter dinheiro pra voltar pra casa, pra poder pegar o metrô pra poder ir até ela, pegar câmera emprestada pra poder filmá-la e por ai vai. A amizade que desencadeou a partir desse momento foi uma coisa única, além da impressão que as pessoas tiveram sobre o filme. Uma coisa pessoal. É isso, o cinema estimula quem ta fazendo e quem ta vendo.

Todo mundo acaba sendo tocado, aprendendo, quem ta produzindo e quem ta assistindo.

Exatamente, alguns projetos rolam de forma colaborativa, desde a ideia inicial até a ideia final, colaborativo de todo processo estar sendo influenciado por quem está sendo filmado e de quem ta filmando. Aquilombamento, todas as ideias importam, nos juntamos pra contar nossas próprias histórias. É mais complicado, mas eu acho que é mais ético, mas sincero.

E como tem sido essa experiência de fazer uma tour pela Europa?

Eu tive uma agenda bem extensa de atividades, desde palestras, aulas, oficinas, exibição de filmes, festivais e etc. Em diversos países, falando pra pessoas das mais variadas origens e opiniões e foi maravilhoso. Conheci brasileiros em todas as partes sempre dispostos a ajudar e a discutir temas como racismo, xenofobia, desigualdade, etc.

Já que você falou de seus projetos atuais eu queria saber quais são os projetos futuros que você tem em mente.

Olha, no futuro eu espero dar mais aulas e fazer mais filmes, planejar eu tenho muita coisa que planejada mas que infelizmente acho que não sai do papel.

Se você tivesse um milhão de reais, pra executar essas ideias o que você filmaria?

Se eu tivesse um milhão de reais eu investiria na minha ONG e viajaria e faria um filme com a minha viagem.

por Marco Aurélio Correa
Cara a cara | 31 Janeiro 2020 | arte, ativismo, Marcos Lamoreux, Rio de Janeiro