"E manda ainda o Senhor Deus pretos a este mundo"
“Tratados como animais bravios”, agrilhoados, chicoteados, espancados, “arrebanhados no mato”, com alta taxa de morte no transporte, mantidos décadas longe da família, à qual eram por vezes devolvidos em “estado de morto de pé”, “grávidas e mulheres com filhos monstruosamente espancadas por abandonarem o trabalho”: as descrições e observações encontradas nos relatórios da administração colonial portuguesa chocam pela crueza e naturalização daquilo a que um inspetor chama, em 1949, “o cheiro a bafio da escravatura”.
Apesar de os castigos físicos serem proibidos por lei e de o próprio trabalho forçado ter sido, a partir da publicação do Código de Trabalho Indígena, de 1928, interditado exceto “para fins públicos” - e mesmo assim apenas quando estivesse em causa o interesse das populações que eram para ele mobilizadas -, as autoridades coloniais continuaram, pelo menos até aos anos 1960 (o Código de Trabalho Indígena só é revogado em 1962, sendo substituído pelo Código de Trabalho Rural, que deixa de ter referência racial e proíbe todas as formas de trabalho forçado, incluindo para fins públicos), a servir de recrutadoras compulsivas para privados - tratava-se, na linguagem de então, de “contratos com facilidades” — e a aceitar as punições corporais com naturalidade, como vários relatórios reconhecem.A candura destes relatórios e a forma como alguns inspetores ou outros membros da administração colonial exprimem a sua discordância e até revolta face à situação - um deles chega a escrever, referindo, em 1949 em S. Tomé, a existência de “grilhetas superiores a dois metros” e o facto e de o governador certificar que “só ele podia ordenar punições”: “E manda ainda o Senhor Deus pretos a este mundo!” - é, para o leitor não especialista, uma das grandes surpresas que resulta da leitura de Portugal e a Questão do Trabalho Forçado/Um império sob escrutínio (1944-1962), do historiador José Pedro Monteiro, publicado este mês, e que, nas palavras do próprio, “mobilizando fontes inéditas, ilustra, pela voz de administradores imperiais e locais e de testemunhas autóctones, algumas realidades laborais e sociais vigentes nas colónias, permitindo, deste modo, cotejá-las tanto com as denúncias que se produziram internacionalmente como com os esforços de refutação oficial, frequentemente de natureza propagandística.”
“É impressionante, no mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos por ofensas corporais” ”, escrevia, por exemplo, em 1944, o inspetor Nunes de Oliveira; noutro relatório, referente a São Tomé e Príncipe, em 1947, lia-se: “Os serviçais vivem e trabalham contrafeitos, a tal ponto que já tem havido casos de suicídio entre eles, por essa razão; eles constituem uma considerável multidão, de algumas dezenas de milhar, dispersos pela densa floresta, e os agentes dos patrões que têm de os conduzir, só tal conseguem impondo-lhes uma disciplina severa, disciplina que só se consegue por meio de sanções expeditas e bem sentidas.”
É, recorda José Pedro Monteiro, o mesmo ano do célebre relatório choque que o inspetor-geral da Administração Colonial Henrique Galvão apresenta à Comissão das Colónias da Assembleia Nacional (o nome então dado ao parlamento), no qual informa que “o trabalho forçado ou “contratado” era a norma, as condições de vida miseráveis, a corrupção entre as autoridades generalizada”, chegando mesmo a dizer que os escravos eram melhor tratados que os trabalhadores forçados, já que aos primeiros, sendo sua propriedade, o dono se esforçava por manter vivos e com saúde, enquanto que os segundos, se morriam de fome ou exaustão, eram substituídos por mais trabalhadores “recrutados” pelo Estado. Um excerto do relatório de Galvão: “A mortalidade infantil atingia a percentagem de 60%. O índice de mortalidade era de 40%, mesmo entre os trabalhadores na plenitude da vida. As figuras era mudas, estáticas. Não gritavam, não falavam de dor. Era preciso ver com os próprios olhos, era preciso encorajar até aqueles que queriam ver”.
Nada que devesse surpreender quem vinha lendo os documentos das inspeções “normais”. Seis anos antes, diz José Pedro Monteiro, “um relatório do Curador Geral dos Indígenas de Angola relatava que os “indígenas” sentiam tal “horror” pelo contrato que, no Lobito, se tinha dado um episódio em que uns quantos se tinham lançado ao mar para lhe escapar. (…) O mesmo curador relembrava uma nota confidencial, relativa à intendência do Moxico, em que se informava que não havia capacidade para recrutar trabalhadores para a Companhia de Diamantes de Angola porque todos os “indígenas” que podiam ser recrutados tinham desaparecido. “A excepcional mortalidade entre os indígenas em serviço naquela companhia e o “Estado de Morto em pé” com que todos têm sido repatriados, alguns indígenas que morrem pouco depois [de aqui] chegar, e, ainda, os que com o corpo mutilado conservam a vida e vivem actualmente pedindo esmola, sem receber qualquer indemnização da Companhia, constituem, como todos nós sabemos, a razão da relutância que os indígenas mostram por aquele serviço”“.
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Continuar a ler a entrevista de Fernanda Câncio ao historiador José Pedro Monteiro, sobre o livro Portugal e a Questão do Trabalho Forçado/Um império sob escrutínio (1944-1962) no Diário de Notícias (29/12/2018).