Em algum lugar entre África e Europa, entrevista com Ângela Ferreira

Nascida em Maputo e tendo vivido entre Portugal e África do Sul, Ângela Ferreira é um grande nome da arte contemporânea portuguesa. Nesta entrevista, ela fala de seu trabalho e do seu percurso.

Casa Maputo encarna muito bem seu processo de produção e de exposição. A instalação comporta dois écrans, sobre os quais são projectadas imagens da casa onde você viveu em sua infância, em Moçambique. Um desses écrans é côncavo e o outro apresenta um ângulo recto. Uma curiosidade formal: como foram feitos?

Essa é uma pergunta que é crucial no pensamento do Casa Maputo. Como tu poderás saber ou não, esses écrans de projecção são baseados em projecções que são feitas pelos cartógrafos. Os cartógrafos, quando desenham mapas, têm um problema horrível para resolver, que é o fato de que a terra é redonda e o mapa não é. Têm de representar qualquer coisa de tridimensional no plano. Ou seja, estão sempre a mentir de alguma maneira, porque é muito difícil representar o tridimensional no plano. E como é bastante importante tentar não mentir sobre o formato dos continentes, eles inventaram uma série de projecções para tentar corrigir os defeitos de interpretação das três dimensões para as duas dimensões. Há sete ou oito mais conhecidas projecções, são técnicas geométricas de representação. São como gráficos, por isso que vês as linhas horizontais e verticais. Algumas são dimensionadas para corrigir mais os defeitos nos cantinhos das imagens, outras são mais direccionadas para corrigir os defeitos no centro da imagem. Na verdade nenhuma delas é perfeita, mas claro que há algumas que são mais aproximadas à realidade do que outras. O que advém disso tudo é um bocadinho aquela ideia de que não há nenhum mapa que nos dê o formato dos continentes verdadeiro. Porque esses, só representado num globo como o que os miúdos têm nas secretárias e nas escolas para aprender. Então muito do trabalho sobre o Casa Maputo era em torno de como é que esta casa está aqui localizada neste sítio tão remoto, tão estranho do planeta, e tão pouco modernista, de certa maneira. Originalmente trabalhei com quatro projecções, optei por quatro modos de representar cartografias. Mas no fim o projecto terminou tendo só suas por razões estéticas e formais. Então uma é a Robinson, projecção Robinson, e a outra é a gnomic, é o nome que elas têm, que são dados por cartógrafos, não fui eu que inventei esses nomes. Escolho as duas projecções que são consideradas as formas de representar o mundo mais aproximadas da realidade, sendo que nenhuma delas é a realidade. Por isso é que aquilo é literalmente como os cartógrafos trabalham, eles tentam achatar as três dimensões, porque partem de projecções de gráficos que têm aquele formato. O que acontece é que quando tu projectas um vídeo sobre uma superfície que não é plana, acabas por ter uma deformação do vídeo, acontece o contrário. Os cartógrafos estão a trabalhar para corrigirem o achatar da terra que é tridimensional, e nós quando projectamos sobre uma superfície que não é plana uma imagem que é feita ser projectada numa superfície plana, deformamos a forma. O vídeo que nós estamos a ver é sempre uma deformação da casa, não é? Ela fica parece grávida. Assim mais alongada, não é?

Casa MaputoCasa Maputo 

Em Casa Maputo dois momentos históricos bem distantes estão postos lado a lado, como se a obra procurasse estabelecer uma ponte entre eles. 

Eu tinha dois registros da casa que para mim eram muito significativos; um era um registro da casa quando a casa era nova em folha, tirada a partir de uma fotografia preto e branco que meu pai tinha feito, que era uma fotografia muito, muito sui generis, no sentido que era difícil perceber os detalhes geográficos, olhava para o retrato da casa sem conseguir perceber onde é que a casa estava localizada. A última fotografia que tirei da casa antes de terminar a obra já é a cores, e é muito interessante porque a vegetação africana já dominou a casa, há muitas marcas da contemporaneidade, com antenas parabólicas, as grades nas janelas para proteger dos ladrões… As duas fotografias para mim eram muito simbólicas dos cinquenta anos praticamente que tinham passado entre a construção da casa e o seu sonho utópico de casa modernista neutra.

A sua obra faz frequentemente referências às vanguardas russas e ao modernismo. Talvez haja uma certa ambiguidade: ao mesmo tempo uma posição de admiração/filiação, e uma leitura crítica, que aponta falhas.

É isso mesmo, o meu trabalho joga muito com essas dualidades. Por um lado, há uma espécie de uma vontade, uma curiosidade de entender o projecto das utopias, em que as pessoas acreditavam que era possível construir uma sociedade nova e melhor. Porque a utopia não é só construir o novo, a utopia era construir algo muito melhor. Isso tanto existe no modernismo de Prouvé como existe no construtivismo russo. Por um lado há uma vontade de voltar a olhar para isso, mas há uma vontade de olhar para isso porque há uma espécie de uma desilusão com a presente proposta. A presente proposta não é muito forte… O mundo em que nós vivemos agora é um mundo em que nós aceitamos o fracasso da utopia. O meu projecto passa por dizer um bocado, ‘bem vamos lá olhar outra vez para este momento em que se acreditou’, vamos lá ver em que que se acreditou, no sentido de melhor entender por que é que falhou, porque como é que nós conseguimos inventar, como é que conseguimos para nós construir uma nova utopia sem entendermos o que é que falhou e porque é que falhou. É claro que, de certa maneira o meu projecto é muito crítico mas também é um projecto cheio de esperança. Quase como encontrar um novo entusiasmo por algo novo, algo, futuro, que possa ser construído.

Aborda o fracasso da utopia e lança bases para a construção de novas utopias…

Sim, absolutamente. Porque hoje em dia há uma espécie de um ponto de vista quase niilista, de que não vale a pena, só vale a pena nós resolvermos os nossos problemas para nós, para andarmos para frente. Não acredito nisso, e nesse sentido sou muito antiquada. Acredito ainda num mundo em que vale a pena lutar, juntos, num mundo melhor, mas também sei que não vale a pena lutar como o Bob Dylan lutou, nem como o Samora Machel lutou. Há um mundo a construir que é diferente da utopia anterior. Por outro lado, não vale a pena dizer que essa gente que acreditava nas utopias eram uns tontos, eram uns lunáticos, que aquilo era uma utopia impossível. É verdade que era uma utopia impossível, mas interessa-me voltar a olhar para ela para entender a partir dela, para construir um futuro, porque ainda acredito em construir. É nesse sentido que o modernismo e o construtivismo russo são para mim momentos cruciais, porque as pessoas acreditavam mesmo. O Prouvé quando fez um projecto para construir 10 mil casas (risos) em África, ele era louco, do nosso ponto de vista aquele era um projecto absolutamente obsceno e louco. Mas eu acredito que ele acreditava. E uma das curiosidades da Maison Tropicale era tentar perceber como era possível acreditar naquilo e onde é que eles queriam chegar com aquilo, quando era para nós tão evidente ofensivo, e tonto, e caro, e não era prático, mas eles acreditavam, acreditavam que o modernismo era uma forma melhor de viver, que as pessoas iam viver em casas que eram mais democráticas, que ia ser mais fácil viver, que iam poupar mais dinheiro, que iam ter vidas mais saudáveis, mais limpas, mas isso não é necessariamente verdade. O que as pessoas ganharam com o modernismo foi algo um bocadinho diferente. 

Como é a questão da nacionalidade para você? Parece-me que seu percurso conta mais para você do que a ideia de nacionalidade…

O conceito de nacionalidade para mim não é tão importante. Eu me relaciono muito fortemente com territórios, isso sim. E tenho uma forte relação entre a África, particularmente a zona sul da África, incluo aí onde eu nasci, Moçambique, e a África do Sul, e este canto da Europa mais ibérico. Se eu tiver de me definir culturalmente em termos de identidade, é algures entre essas duas zonas do mundo que encontra as referências da minha pessoa.

O que você pensa do termo pós-colonialismo?

Para mim o termo é muito complexo, porque eu não sou teórica. Não escrevo sobre arte. No entanto, é óbvio que a questão do pós-colonialismo é pertinente a todos nós que trabalhamos nestas áreas e principalmente aqueles que viajam entre um continente e outro. A ideia de pós-colonialismo por um lado é um fato. Se pensarmos politicamente falando, o colonialismo terminou, ou seja, os países são independentes. Isso é por um lado a expressão, e em português às vezes é assim utilizado. Por outro lado, o termo pós-colonialismo teoricamente falando não é precisamente a isso que se refere no meu entender. É mais uma nova abordagem da representação da África e do africano e do papel que ele tem precisamente na relação com o centro, com a Europa e os Estados Unidos principalmente. Quanto o termo foi começado a ser circulado, quando eu dei por nota que o termo existia, que de fato estava no ar, entre 70s, 80s, eu estava a viver na África do Sul. Na verdade é uma terminologia que se refere a uma nova forma integracionista de tentar incluir outros discursos que não o discurso mainstream modernista, é um termo que vem muito em conjunto com a ideia de pós-modernismo, em que se diversificam os olhares, se olha para o outro de uma maneira diferente, se registram os olhares como sendo parte de um discurso importante. Mas na verdade essa terminologia é inventada na Europa, e talvez com alguma participação de Austrália, América, Estados Unidos. Não é uma terminologia que fazia muito sentido para um artista ou uma artista neste caso que estava ali em Cape Town a trabalhar, e a acabar de estudar. Não era uma terminologia nossa, por assim dizer. E claro que de certa maneira o meu trabalho é mais ou menos integrado dentro da onda do novo reconhecimento de outros registros artísticos que vem com a ideia do discurso pós-colonial, não é, de como quebrar essa ideia de supremacia de Europa e dos Estados Unidos com relação à África e a outros países não-europeus, incluindo a América Latina provavelmente e outros ainda, não é? De certa maneira, em relação a isso, em relação a essa luta de tentar tornar o mundo da arte mais inclusivo, mais tolerante, mais democrático, há muito terreno que foi ganho. E nesse sentido eu acho que a ideia de pós-colonialismo é um projeto que era válido, e que do meu ponto de vista ainda é válido, sendo que também não sinto que essa luta está terminada, que esse discurso, que essa energia que é preciso para igualizar as coisas… A bienal de Dakar ainda não tem o mesmo valor que a Bienal de Veneza… E portanto eu também acho precoce e estranho pensar no fim do pós-colonialismo, porque parece que ainda não se resolveu nada.

Parece que há permanências do colonialismo e do pós-colonialismo ainda… Quando a gente separa, cria-se uma falsa impressão de que cada etapa está terminada… 

Exactamente. Sim, que está tudo resolvido, e não é verdade. A própria atitude colonial existe abundantemente, quer dizer, eu fiz um projeto sobre a Maison Tropicale em que em 2002 europeus vão à África e ostensivamente roubam duas casas para vender na Europa, quer dizer, se isso não é neo-colonialismo então o que é neo-colonialismo? Não saberia definir isso de outra maneira. Aliás, durante muito tempo, durante o meu projeto, quando eu estava a fazer a Maison Tropicale, houve muita imprensa antes da Bienal de Veneza, e as pessoas muitas vezes diziam, “ah, porque o teu projeto insere-se num discurso pós-colonial”. E eu sempre disse: “bem, calma aí. Eu não sei se ele insere-se num discurso pós-colonial. A minha razão de fazer isso pode ser inserida dentro de um discurso pós-colonial. O ato de roubarem as casas é neo-colonial. É roubo.” Se as casas fossem encontradas em França nunca teriam sido tiradas do sítio em que estavam, nunca! Era impensável, fariam logo um museuzinho em não-sei-que-sur-mer, a mesma coisa se aplica a Portugal. 

 

Qual é sua relação com o cinema? Ele aparece vez por outra aparece, numa citação a Wim Wenders, a Jean Rouch… É uma arte pela qual você se interessa?

Minha relação com o cinema é muito sui generis, porque é um bocado o papel que o cinema tem como agente cultural. O primeiro trabalho que fiz sobre o cinema (ou pelo menos o primeiro de que me lembre), é um trabalho chamado Cape Town Film Festival. Em 2003 estava a ver o jornal e soube que James Polley, que era organizador do festival no tempo em que eu era jovem e estudava, tinha morrido. Comecei a investigar sobre a vida dele e a pensar um bocadinho no festival e cheguei a algumas conclusões. A primeira é a questão do Apartheid. Estudei na África do Sul em pleno Apartheid, e havia um boicote cultural, o resto do mundo não deixava entrar cultura nem sair cultura da África do Sul. Mas claro que o mundo não é completamente estanque não é? Havia filmes, havia televisão, havia revistas, havia jornais, que as pessoas podiam receber. O contacto com o cinema foi feito através de ano após ano de festivais de cinema organizado por esse senhor que se chama James Polley que era uma pessoa política, portanto era alistado no ANC, que ainda era ilegal, e organizava todos os anos um festival de cinema que era um festival underground, funcionava um bocadinho à margem do país. E dessa maneira incrível desse homem que vinha cá à Europa e ao Brasil e aos Estados Unidos todos os anos e literalmente trazia na bagagem dele ilegalmente os filmes de volta para a África do Sul e mostrava os filmes que estavam a dar. Fassbinder, Herzog, todo o espólio alemão, alguns filmes brasileiros… O primeiro filme do Manoel de Oliveira que eu vi foi em Cape Town, num desses festivais de cinema: Amor de Perdição, 4h30 de filme! Quando o James Polley morreu, percebi que muito da minha cultura visual foi ganha através dessa experiência incrível que ele tinha oferecido durante sete ou oito anos a fazer um esforço enorme, com um risco enorme, porque podia ter sido preso, podia ter sido torturado, eventualmente até morto, de nos mostrar todos os anos nos mostrava 40 ou 50 filmes. Então minha relação com o cinema aparece como educação visual e política.

Quando eu estive no Niamey com Manthia Diawara para gravar Maison Tropicale, ele me falou de seu filme Jean Rouch in reverse (1995) e de Jean Rouch. Ele me disse que Rouch tinha uma paixão muito especial pelo Niamey, pelo Niger, onde morreu. Em todo o lado para onde vais no Niger, no Niamey, encontra pessoas que foram actores nos filmes do Rouch. Diawara me contou também do projecto fantástico que Jean Rouch fez em Moçambique. Não podia resistir. Quando fui perceber o momento histórico que o Jean Rouch esteve lá – o pós-independência, da esperança, da utopia – e o filme que fez [Makwayela, 1977], achei absolutamente incrível. É um filme que é feito com gajos que tinham sido trabalhadores nas minas sul-africanas, que é uma condição que eu conheço muito bem, como meia sul-africana que sou. Quando eu estava a começar a fazer perguntas, entrevistar pessoas, sobre o Rouch, as pessoas me disseram, “mas o Godard também lá esteve”, uma coisa veio a reboque da outra, de certa maneira. Mas eu acho que é porque o cinema tem um papel muito importante na cultura visual e política de nosso tempo, não é, e portanto é natural que essas imagens, essa forma de expressão, esses registros se cruzem com os meus interesses.

A presença da arquitectura modernista na África está sempre presente em seu trabalho, sobretudo no paradoxo que reúne utopia futurista e ruína. Será que essa arquitectura já nasceu como ruína?

Maison TropicaleMaison TropicaleNão sei se ela nasce como ruína. Acho que agora, sim. Acho que o que tu dizes sobre a visão da arquitectura modernista na África agora é essas duas coisas ao mesmo tempo, é ainda um vestígio da utopia e uma ruína do passado. Eu não sei se na sua origem já emanava essa imagem de ruína. O que eu acho, o que é mais bizarro para mim, é um assunto que ainda fica por resolver e ainda bem, porque é bom que haja assuntos para resolver, é parte do que eu nunca entendi completamente, e já não tem respostas simples nem singulares, é uma complexidade de respostas, é como é que uma arquitectura que era tão… Um projecto de arquitectura que ostensivamente seria tão democrático, foi tão bem apropriado por um regime que era tão autocrático. Isso sim, porque a arquitectura modernista era um bocado a bandeira dos governos imperiais e coloniais, não é, isso…

 

É como se fosse uma perversão dos objectivos artísticos?

Pergunto-me sempre: será que esses artistas também eram colonialistas? Também eram fascistas? O que se passou na cabeça dessas pessoas? Tens ali uma conjuntura muito estranha: Le Corbusier, que é considerado um grande mestre, ia construir para o governo colonial, e não só, porque depois também constrói para a independência.

 

 

 

por Lúcia Ramos Monteiro
Cara a cara | 4 Agosto 2010 | Ângela Ferreira, arquitectura modernista