Em São Tomé e Príncipe há um grave défice de liderança
A jornalista e poeta são-tomense Conceição Lima esteve 15 anos a viver em Londres. Ali se licenciou em Estudos Afro-Portugueses e Brasileiros pelo King”s College e obteve o grau de mestre em Ciências Políticas e Estudos Africanos pela School of Oriental and African Studies. Ali foi jornalista e produtora dos serviços em Língua Portuguesa da BBC. Regressou a São Tomé e Príncipe há um ano e, em pouco tempo, o programa de entrevistas que conduzia na televisão estatal são-tomense, TVS, passou a liderar as audiências - até Dezembro passado. Quando quis entrevistar o antigo primeiro-ministro de Cabo Verde, Carlos Veiga, o Governo de Patrice Trovoada mandou suspender o Em Directo.
Há um abaixo-assinado de apoio a Conceição Lima a circular por vários países, incluindo Portugal, e mais de 86 por cento dos participantes de um inquérito realizado pelo jornal online Tela Non consideraram que o procedimento do Governo são-tomense não foi democrático. O caso, porém, está longe de ser virgem. José Bouças tinha também sido afastado da TVS e algo semelhante acontecera há alguns meses com outro jornalista, Óscar Medeiros, ao qual, ironicamente, coube agora, enquanto director da TVS, despedir Conceição Lima.
Para além de jornalista (foi, entre outras coisas, correspondente do PÚBLICO, da Anop, da Rádio France International, da Voz da América e da BBC, tendo fundado e dirigido, na década de 1990, o semanário independente são-tomense O País Hoje), Conceição Lima é também considerada a mais importante poeta viva de São Tomé. A sua produção poética remonta aos primeiros anos da independência são-tomense, mas tem apenas dois livros publicados, O Útero da Casa (2004) e A Dolorosa Raiz do Micondó (2006), ambos na Editorial Caminho, traduzidos também na Alemanha. Este mês sai o terceiro, O País de Akendenguê. Deu esta entrevista à Pública por email.
São Tomé e Príncipe vai ter este ano eleições presidenciais. Casos como o da suspensão do seu programa indicam, de alguma forma, que o jogo pode estar a ser viciado à partida?
É difícil, para um observador atento, não inscrever esta preocupação nas suas reflexões, à luz não só da suspensão do programa Em Directo, mas de outros sinais indiciadores de uma apetência hegemónica do Governo do doutor Patrice Trovoada em relação à imprensa. Esses sinais são claramente visíveis na imprensa estatal, mas estendem-se também a uma certa imprensa privada. Assiste-se a um controlo muito mais apertado dos conteúdos, à drástica limitação do acesso dos jornalistas às fontes oficiais. É muito difícil conseguir-se, por exemplo, entrevistar um ministro. Diria que a agenda deste Governo parece não incluir a aceitação, e muito menos o encorajamento, de espaços de debate, de confronto de ideias, de exercício do contraditório, de acareação de perspectivas sobre as grandes áreas da cidadania, de interpelação, sobretudo dos governantes, sobre as suas opções e decisões.
Isso é tão mais notório e preocupante, quando se sabe que a última campanha eleitoral em São Tomé e Príncipe revelou uma muito significativa descompressão da comunicação social. Todos os intervenientes, partidos com e sem assento parlamentar, tiveram direito à palavra, a apresentar as suas propostas, os seus programas, a formular as suas críticas. Organizaram-se debates, entrevistas, vários frente-a-frente, e os órgãos estatais, nomeadamente, deram mostras de um grande esforço de isenção e pluralismo. Basta dizer que o panfleto anónimo, ingrediente crucial de campanhas anteriores, esteve ausente das últimas eleições autárquicas, regionais e legislativas. As forças concorrentes veicularam as suas propostas através de canais instituídos. Para responder à sua pergunta, sim, se esta tendência hegemónica e autoritária não for revertida, o processo das presidenciais poderá, à partida, estar viciado.
Até que ponto a suspensão do Em Directo pode ser visto como um sinal de algum retrocesso no processo democrático do país?
Na medida em que elimina, cerceia ou tenciona domesticar um espaço de liberdade de opinião, de debate e de confronto de ideias e de perspectivas, num país onde, pelo menos até agora, não existe outro espaço com tais características na imprensa, é um claro sinal de recuo. E é um acto que eu não gostaria de circunscrever à minha pessoa, de forma alguma, porque se atinge a jornalista na sua liberdade e função de informar, atinge o grande público na sua liberdade e direito de ser informado.
Há um verso seu que diz “hostil o silêncio agarra-se ao teu corpo”. Pode ser uma metáfora adequada para aquilo que está a sentir na sequência da suspensão do programa?
Há um silêncio algo doloroso, sim - o silêncio daqueles que, na oposição, eram os mais ferrenhos defensores do programa e do seu espírito e que hoje, se não aplaudiram o que aconteceu, ficaram sintomaticamente calados. Não falo já dos que ontem se assumiam como livres-pensadores e inflamados arautos da liberdade de imprensa e hoje se revelam adeptos de teses de contornos perigosamente fascizantes, segundo as quais basta uma liderança forte e determinada para que todos “entrem na linha”. A esses respondo que a mais clarividente liderança não é infalível e que a lenta e sinuosa construção democrática em São Tomé e Príncipe passa pelo forjar de uma opinião pública esclarecida e interveniente, o que reclama o fortalecimento e não a domesticação da imprensa e a infantilização dos jornalistas. É preciso dizer, porém, que, no país e não só, o sentimento dominante é de rejeição da decisão do Governo. As manifestações de solidariedade cá são menos expansivas do que no exterior, mas são claras e chegam de todos os segmentos da população.
O abaixo-assinado que foi posto a correr na sequência deste episódio já tinha reunido, no final de Dezembro, mais de 400 assinaturas. Como vê esta manifestação de apoio?
Comove-me profundamente essa onda de solidariedade que me tem chegado de jornalistas, escritores, cidadãos de várias partes do mundo. Cá em São Tomé, houve uma unânime reprovação [por parte] da imprensa privada, já que a pública não abriu a boca. E o Sindicato de Jornalistas solidarizou-se comigo.
Como é que uma jornalista com a experiência da BBC enfrenta um processo como aquele que resultou na suspensão do programa Em Directo?
Com perplexidade e a consciência reforçada de que temos em São Tomé e Príncipe uma moldura democrática, é certo, mas um quadro, ou melhor, uma cultura democrática muito frágil, sujeita a travagens e recuos bruscos, determinados, por vezes, até por estados de humor e por interesses que nada têm a ver com os dos cidadãos e nem sequer com os do Estado e da sua imagem. Perplexidade pelo modo como tudo começou, com um acto de censura do Governo a uma entrevista. Tratou-se de um acto de extrema desconsideração para com o doutor Carlos Veiga, de completa e cabal desautorização do director da TVS, que dera pleno aval à entrevista, e de desrespeito para comigo, que fiz o convite em nome da TVS. Há regras, há uma equipa do programa, há editores, há um director. Tendo este avalizado a entrevista, o veto do Governo, e o modo como se deu, foi um acto de espantosa e grosseira interferência.
O que é que aconteceu exactamente?
São Tomé e Príncipe, com 20 a 25 por cento da população de origem cabo-verdiana, é regularmente palco das campanhas eleitorais de Cabo Verde, sendo um dos espaços mais disputados do círculo de África. Carlos Veiga, ex-primeiro-ministro cabo-verdiano, líder da oposição e candidato ao cargo nas eleições de 6 de Fevereiro, chegou a São Tomé no dia 30 de Novembro e fez saber que gostaria de responder a afirmações feitas anteriormente em entrevista à TVS pelo doutor José Maria Neves, na dupla qualidade de primeiro-ministro de Cabo Verde e líder do PAICV, o partido no poder. Do ponto de vista da equipa realizadora e da direcção, havia outros motivos que justificavam a entrevista, nomeadamente a agenda são-tomense de Carlos Veiga, caso venha a vencer as eleições, dada a existência de uma série de acordos entre os dois países. Com o aval do director da TVS, a entrevista foi marcada no próprio dia da chegada de Veiga para o dia seguinte, às 10 horas. No dia da entrevista, cerca das 8h40, a entrevista foi reconfirmada. Às 9h20, telefonou-me o director da TVS a dizer que, por “ordens superiores”, a entrevista não iria ter lugar. Obviamente, comuniquei ao director que não me sentia confortável para justificar um cancelamento de última hora, cujas razões desconhecia. Coube-lhe, pois, explicar a Carlos Veiga as instruções que recebera do Governo, num encontro em que estive presente do princípio ao fim. Julgo ter sido o momento mais embaraçoso de toda a minha carreira. Um momento de grande embaraço e de indisfarçável vergonha.
No dia seguinte, escrevi um artigo no diário digital Tela Non, intitulado “A Entrevista que Carlos Veiga não Deu”, no qual denunciei o que se tinha passado. Na manhã seguinte, o director da TVS, que é também o correspondente da RTP África, chamou-me ao seu gabinete para me informar de que o Governo o instruíra a comunicar-me que, quando o meu contrato terminasse, a 31 de Dezembro, os vínculos com a TVS não seriam reatados. Perguntei-lhe se conhecia as razões e disse-me que não. Perguntei-lhe se, como director da TVS e meu superior hierárquico, não lhe interessara conhecer as razões. Respondeu-me que não, que se limitava a transmitir-me uma ordem do Governo. Uma honra bizarra, sem precedentes na era multipartidária: um quadro de uma direcção ser despedido pelo Governo da República. Logo depois, o programa Em Directo foi suspenso, a pretexto de uma grelha especial para a quadra festiva.
Já tinha tido algum problema anterior com o Governo?
Logo que o novo Governo tomou posse, fui convidada pelo primeiro-ministro, Patrice Trovoada, a criar e liderar um Gabinete de Comunicação e Imagem. Declinei o convite, por razões óbvias. Não quero, contudo, acreditar que esse factor tenha determinado a ordem política para o que considero ter sido o meu saneamento da TVS. Pode-se entender que um governo jovem revele uma certa crispação, mas o Executivo do doutor Patrice Trovoada parece ter um sério problema com o contraditório e, com as presidenciais à vista, receio que essa crispação e esses tiques autoritários tendam a aumentar. Não deixa de ser irónico que a primeira e única grande entrevista de Patrice Trovoada ao público são-tomense, em 18 meses como líder da oposição, tenha sido ao programa Em Directo. Antes, tudo o que fizera fora prestar curtas declarações à imprensa nacional e estrangeira.
Vê também alguma ironia no facto de ter sido “saneada”, para usar a expressão que utilizou, por um jornalista que tinha, ele próprio, sido afastado da TVS pelo anterior governo?
Mais do que irónico, acho lastimável.
Um jornalista africano considerou que o caso do seu programa deve ser visto à luz das particularidades são-tomenses e que a ingerência do Governo nos órgãos de comunicação é considerada, aí, uma coisa normal. É assim?
Em São Tomé e Príncipe, as relações entre os governos e a imprensa, mormente os órgãos estatais e seus jornalistas, mas não só, têm sido, ao longo dos tempos, ora mais, ora menos difíceis, mas nunca pacíficas. Deve-se contudo dizer, em abono da verdade, que nos últimos tempos a situação vinha registando, como disse, alguma melhoria. Não foram melhorias estruturais, é certo, mas acho que não podem ser desvalorizadas, foram importantes, devem ser preservadas e fortalecidas. O que se passa é que estão ameaçadas e não apenas pela atitude quase marcial do Governo neste caso. Ora, isto deve suscitar ilações e levar os são-tomenses a reflectir. Os meios materiais e tecnológicos são importantes, as viaturas são importantes, as viagens são importantes, mas uma lógica que desencoraje, hostilize e exclua reflexões e debates sobre as grandes esferas da cidadania, sobre os rumos que o país vai seguindo em cada etapa, é castradora e é perigosa.
Com que constrangimentos se debate o exercício do jornalismo?
Há toda uma série de constrangimentos. Começando no regime jurídico dos órgãos estatais e passando pela duvidosa viabilidade da imprensa privada actualmente, pela ausência de uma séria concorrência aos órgãos estatais. Por exemplo, existe apenas uma estação televisiva em São Tomé e Príncipe e, no panorama radiofónico, a Rádio Nacional continua a ter um quase monopólio informativo. Há outros factores fortemente limitativos, como o nível de formação dos jornalistas, a vulnerabilidade resultante de salários simbólicos, a pouca eficácia das instâncias de fiscalização das normas éticas e deontológicas, a própria exiguidade territorial num Estado tentacular com forte poder de retaliação, o facto de os potenciais porta-vozes da opinião pública serem, na sua maioria, clientes desse Estado. Tudo isso condiciona negativamente o quadro. Uma mudança substancial e de fundo vai levar tempo, não tenho dúvidas. E aos poderes convém este estado de coisas. Estou convencida de que o ritmo dessa construção, mais ou menos lenta, vai depender, por um lado, de opções individuais para as quais temos de estar preparados, pelas quais se paga um preço, e, por outro lado, da superação dessa tentação para a amálgama governo-partido-Estado.
A suspensão do programa aconteceu numa altura em que o mundo discutia a divulgação de documentos secretos pelo Wikileaks. Parecem discussões de planetas diferentes, mas, se calhar, estamos a falar de coisas parecidas…
Embora os estados se arroguem o direito de classificar a informação, determinando e seleccionando o que deve ou não ser do conhecimento do grande público, considero que este tem o direito de ser informado sobre muitas das questões reveladas pelo Wikileaks. Paga-se um alto preço por posições como esta, mas as reacções e manifestações de solidariedade do grande público são bem ilustrativas de que os critérios do Estado não coincidem bastas vezes com os critérios do público sobre o que deve ou não ser divulgado.
O jornal O País Hoje, que fundou, também acabou por fechar há alguns anos. Encontrou algum paralelismo entre este processo e o do programa na televisão?
Não. O jornal O País Hoje terminou por falta de recursos financeiros e também materiais. Era um período de grande escassez, ora não havia papel no mercado, ora a Empresa de Artes Gráficas tinha máquinas avariadas… Julgo que foi uma experiência interessante e que contribuiu para fazer opinião, naquela altura.
São Tomé e Príncipe fez, até certo ponto, um percurso parecido com o de Cabo Verde, que entretanto se transformou num case study, pelos bons indicadores de desenvolvimento humano que apresenta. O que é que aconteceu entretanto a S. Tomé? Foi a descoberta do petróleo?
Julgo que a trajectória de Cabo Verde, os chamados anos da grande fome, a hemorragia dos cabo-verdianos para o estrangeiro, a inclemência da natureza, tudo isso terá contribuído para uma aguda consciência de que era preciso maximizar os frutos da independência, as ajudas externas, as remessas dos emigrantes, acima de tudo, o contributo dos próprios cidadãos cabo-verdianos no país e na diáspora. Julgo que enraizou nos responsáveis, e não só, um sentido de que eram donos do seu destino, que o passado trágico não deveria ser reeditado. Num país onde houve um tempo em que “as cabras tinham aprendido a comer pedras para não perecer”, estou convencida de que o grande segredo foi e tem sido a aposta nas mulheres e nos homens.
E há o factor estabilidade. Em 35 anos de independência, Cabo Verde teve três primeiros-ministros. Só na segunda república, em cerca de 20 anos, São Tomé e Príncipe teve 14 primeiros-ministros e nunca nenhum chegou a cumprir a legislatura. Num país de pouco mais de 160 mil habitantes, tem havido um permanente recomeçar por parte do Estado.
O fenómeno transversal da corrupção é sobretudo usado como arma de arremesso de umas forças políticas contra as outras. A forte personalização do quadro político gera fenómenos de perversa lealdade que pouco têm a ver com as populações, com o país e com o Estado. Fala-se na necessidade de mudança, mas reciclam-se métodos típicos do modelo partido-Estado, métodos que, não raras vezes, excluem aqueles que não prestam vassalagem aos líderes e aos partidos. Queixam-se de falta de quadros qualificados neste e naquele sector, mas elegem-se como critérios de selecção a subserviência ao líder e aos partidos. Fala-se na necessidade de se apostar fortemente na agricultura, nos recursos marinhos, no turismo, mas o petróleo, que ainda não chegou e não se sabe exactamente quando irá chegar - e que, se chegar, será esgotável -, provoca já em certos dirigentes um estado de frenesim e de desvario que nada auguram de bom. São Tomé e Príncipe tem um grave défice de liderança, relacionável com a própria mentalidade do são-tomense.
São Tomé está a ficar parecido com o país insular dos ex-presidentes Cacau e Café, do romance Lenin Oil de Pedro Rosa Mendes?
São Tomé e Príncipe é um micro-Estado insular privilegiado pela natureza, à espera do milagre da perfuração dos poços, à espera fundamentalmente de que os são-tomenses decidam o que fazer do seu presente e do seu futuro. A mentalidade de assistidos, desenvolvida ao longo de 35 anos, é uma armadilha.
Parafraseando outro verso seu, as nuvens estão densas em S. Tomé?
Parafraseando um poeta africano, afirmo a minha esperança de que a ninguém, a nenhum autoproclamado profeta, venha a ser conferido o poder de impedir a chuva ou de privatizar o nascer e o pôr do Sol.
Estava a morar em Londres há 15 anos. Por que regressou?
Foram muitos anos, uma experiência extremamente gratificante, mas nunca me senti exactamente emigrante. Em grande medida, senti-me como que vivendo uma espécie de exílio auto-imposto. Não queria regressar um dia ao meu país e não reconhecê-lo. Acreditava e acredito que tenho algo a oferecer a São Tomé, como jornalista e como escritora, e decidi que muito do que queria fazer reclamava o meu regresso a casa, que não se pode permitir que seja transformada num lugar de exílio.
Numa escola da Póvoa de Varzim, há alguns anos, explicou aos alunos que aprendeu com o seu pai o poder das palavras, o modo como as palavras podiam trazer a paz. Ainda acredita nisso?
Acredito na força apaziguadora das palavras, na capacidade das palavras para suscitar concórdia e funcionar como um remo. Conheço também o seu poder embriagador e inflamatório, a força sedutora da palavra demagógica, proferida não para revelar ou encorajar o desbravamento de um caminho, de caminhos, mas sim para mascarar e anestesiar os espíritos. Ou até para os amedrontar.
E a poesia? Há espaço para a poesia num quotidiano marcado pelo silenciamento?
Acredito que, mesmo no mais ermo e inóspito dos lugares, haverá sempre lugar para a poesia. Há lugar para a poesia em São Tomé e Príncipe, ainda que o hábito de leitura seja algo incipiente. Criam-se espaços para ler e discutir, espaços com os jovens sobretudo. Os que lêem acarinham os poetas, há um certo grau de reconhecimento público, embora eu, por exemplo, seja mais estudada e divulgada no exterior do que no meu próprio país. Não é, contudo, uma atitude direccionada. O poder em São Tomé e Príncipe nunca rimou com a literatura, com a poesia. Não é uma atitude ostensiva, é sobretudo uma atitude de indiferença. O livro mais celebrado de Alda Espírito Santo, É Nosso o Solo Sagrado da Terra, só foi reeditado 37 anos depois, graças a esforços de um grupo de amigos do qual fiz parte. Infelizmente, ela não viu essa reedição, morreu pouco antes. Os pais fundadores da nossa literatura, Caetano da Costa Alegre, Marcelo da Veiga, Francisco José Tenreiro, Manuela Margarido, nunca foram reeditados em 35 anos de independência e as suas obras estão esgotadas há muito.
Quanto ao silenciamento da poesia, não creio sequer que faça parte da agenda dos arautos do autoritarismo. Para esses, a poesia é uma bizantinice, algo vagamente inútil, vagamente lunar que não mexe com os espíritos nem com o ritmo das coisas. Mas ainda que houvesse um propósito cerceador ou censório, seria inútil. Se outras esferas dependem muitas vezes de instâncias alheias a nós, ninguém pode decretar a extinção ou a abolição do ser poeta e de o afirmar. A esperança é que, com o seu acto solitário, o poeta coloque um pequeno grão no património colectivo, no património humano. E se as suas palavras tocarem um só espírito, elas não terão sido vãs.
Quando haverá um novo livro?
Já este mês, com lançamento previsto para o festival Correntes d”Escritas, na Póvoa de Varzim. Intitula-se O País de Akendenguê e é poesia, com prefácio do professor Helder Macedo. Estou a preparar neste momento um outro livro, reunindo crónicas escritas ao longo de décadas em várias publicações. Espero publicá-lo ainda em 2011, mas ainda não tenho datas.
Não resisto a perguntar que país é este do título do novo livro?
Pierre Akendenguê é um musicólogo, poeta e filósofo gabonês. O livro é sobre as ilhas de África, as Áfricas da minha ilha, outras ilhas e outros continentes na ínsula e crioula África que eu sou, atravessada por tantos rios e tantos mares, gravuras do Oriente, o cheiro da canela e do alecrim, tantos, tantos lugares e tantas vozes. Pierre Akendenguê é a grande referência que dá o título ao livro, mas a epígrafe do primeiro capítulo, por exemplo, é da poeta que mais admiro e que mais me marcou, Sophia de Mello Breyner, uma poeta que amava as ilhas e com quem percorri a minha ilha. O Zeferino Coelho [editor da Caminho], e não só, acha que há uma forte influência da sua poesia na minha.
É normalmente considerada a maior poeta viva do seu país. Isso é um peso?
É sobretudo uma responsabilidade, a qual me encoraja mais e mais a continuar a escrever.
Já decidiu o que vai fazer a seguir a toda esta confusão com o programa Em Directo?
Logo se verá. O que lhe posso assegurar é que vou continuar a ser jornalista, como sempre fui. E poeta, claro.
Publicado originalmente no jornal Público