“Interessa-me colocar questões sobre a sociedade angolana”, entrevista a António Tomás
No seu mais recente livro, António Tomás reflecte sobre o que o rodeia. E nessa reflexão constata que em Luanda escasseiam espaços que cumpram uma função social, como as barbearias. Quem vive no musseque está, nesse aspecto, mais bem servido de lugares para o comentário social, afirma o antropólogo numa entrevista por e-mail.
Estamos perante «Poligrafias das páginas de jornais Angolanos» ou «Poligrafias de António Tomás»?
O título do livro é Poligrafia, como eu explico na pequena introdução que abre os textos. Das páginas dos jornais angolanos é subtítulo. Foi, portanto, a minha editora, a Casa das Letras que juntou título e subtítulo, o que deu este Poligrafia das páginas de jornais angolanos. O Jornal de Angola foi ainda mais longe ao dizer que eu tinha escrito um livro sobre os jornais angolanos. Não me dei ao trabalho de corrigir, porque acho que os leitores é que fazem os livros, porque são eles que os interpretam. Por isso, nunca me opus a que o meu livro fosse chamado assim.
Este livro é, segundo o autor, um “romance de ideias”. Podemos situar as ideias no plano do romance sem drama, ou trama, se preferir?
O Romance tem trama, se entender trama como intriga, ou ideia de princípio, meio e fim. É um “romance de ideias” porque eu senti o impulso de escrever sobre mim, mas não queria fazer isso em forma de autobiografia, um género que eu acho sempre um pouco pretensioso. No entanto, quis partilhar com algumas pessoas não as minhas ideias, mas algo mais profundo, ou seja, como é que tinha chegado a elas. Por isso, escrevo sobre Luanda, sobre os tempos do partido único, escrevo sobre algumas questões que me interessam profissionalmente, como antropólogo, como a questão do poder, especialmente o poder tradicional.
Este livro deu-lhe a oportunidade de revisitar os seus escritos e nessa revisitação confrontar-se com a mudança na sua forma de pensar, dando indicações ao leitor com notas como “António Tomás desautoriza António Tomás”. Essa confrontação trouxe “angústias” por perceber que estava errado ou, pelo contrário, constatou evolução no seu pensamento?
Eu leio muito. Eu leio para escrever a minha tese, leio para preparar as minhas aulas, leio para escrever as minhas crónicas para o Novo Jornal. Eu trabalho para um dos mais exigentes departamentos de antropologia do mundo, da Columbia University, e isso obriga-me a estar constantemente a rever as minhas ideias. Por outro lado, eu mais facilmente escrevo sobre as minhas angústias, do que sobre as minhas certezas. E tudo o que escrevo tem sempre um valor aproximativo. Porque conforme vou lendo, discutindo as minhas ideias, vou também superando muitas delas. Acho que este exercício faz parte do processo normal de maturação intelectual.
Nas suas crónicas, pensa a sociedade angolana. Consegue defini-la ou, apesar de escrever e pensar sobre ela, ainda não conseguiu uma definição?
Eu nasci e cresci em Luanda, e sempre fui fascinado, menos pela sociedade angolana, em geral, que conheço mal, e mais pela sociedade urbana de Luanda. A mim interessa-me não tanto definir a sociedade luandense, mas colocar boas questões sobre elas. A minha impressão é que realidades como a sociedade luandense não se definem, nem se podem definir. Porque sempre que nos parece que a compreendemos, e podemos defini-la, é como se o objecto nos escapasse das mãos.
Neste livro não há temas tabu, como a própria editora (Casa das Ideias) sublinha na nota de lançamento da obra. E na sociedade angolana?
Eu tenho consciência de que é muito difícil falar de certas coisas em Luanda. Vivemos numa sociedade que é muito conservadora, e vivemos num país, onde o poder político se imiscui de uma forma por vezes escandalosa na vida privada dos cidadãos. Eu tive sorte de, desde muito novo, ter aprendido o valor da independência, de pensar pela minha própria cabeça, e de nunca deixar que fizessem isso por mim. Tenho horror a corporações, como partidos, embora faça partes de várias associações profissionais. Sou transparente, quem me conhece sabe como penso, e sabe no que acredito.
Onde é que António Tomás se situa na sociedade angolana? O ensaísta Eduardo Lourenço diz que lhe faz bem estar longe, em França, para poder olhar e melhor reflectir sobre Portugal. O António Tomás também está longe, primeiro em Portugal e actualmente nos EUA. Essa distância permite-lhe focar melhor Angola?
Eu concordo com o Eduardo Lourenço. Estudei os livros do Eduardo Lourenço em várias cadeiras na Universidade Católica Portuguesa, e sempre achei muito interessante a sua reflexão sobre Portugal. Porém, embora eu tenha uma formação humanística, o meu trabalho e a minha reflexão têm evoluído mais para questões sociais. Eu estou menos interessado em escrever sobre a psique do angolano, ou luandense, e estou muito mais interessado em colocar questões sobre o político, o económico e o social angolanos. A vantagem que tenho por escrever dos Estados Unidos, sobretudo por escrever da Columbia University, é estar enquadrado no debate sobre o presente africano. E acho importante escrever sobre Angola numa perspectiva afrocêntrica.
Neste livro, reflecte Angola e o mundo, mas reflecte também sobre o seu percurso, desde a sua infância e o momento em que decide deixar o país. Surpreendeu-se com a reflexão que fez de si próprio? Em que medida?
Este livro, se formos ver bem, foi escrito ao longo de quatro anos. Porque foram crónicas que eu escrevi para jornais angolanos. Portanto, o gesto de escrever não foi intencional. O que foi intencional foi o gesto de reunir as crónicas e dar-lhes uma ordem de modo a poderem ser lidas como se fosse um romance. O que me surpreendeu, se posso chamar a isso surpresa, é a minha incapacidade para fazer as duas coisas. Primeiro, para escrever mais num registo pessoal, ou mais autobiográfico, se quiser. Segundo, para escrever textos com um aspecto mais narrativo. Tem sido mais fácil para mim escrever pequenos ensaios, do que escrever crónica, no sentido jornalístico do termo.
A escrita de crónicas implica, por vezes, uma auto-contenção quando se publicam em jornais com um perfil conservador e conotado. O lançamento deste livro deu-lhe maior liberdade e a oportunidade de dizer algo que ficou por dizer na primeira publicação?
Nós ainda temos alguns problemas no que toca à liberdade de expressão. E para muitas pessoas nem sempre é fácil escrever sobre aquilo que se pensa e acredita. Por isso, uma das coisas que mais me intriga é que nunca tive qualquer entrave em dar a minha opinião. Nunca fui censurado, nunca fui pressionado de maneira nenhuma, e já escrevi coisas que nem sempre são muito simpáticas para as pessoas que governam este país. Algumas pessoas que me lêem acham que isso tem que ver com o meu estilo moderado, cuidadoso, e com o facto de eu reforçar o que digo com muitos exemplos, etc. Mas ainda assim, acho que eu, no Novo Jornal, tenho luz verde para escrever coisas que muitas pessoas não têm em muitas outras publicações. Se isso é verdade, ou porque é que isso acontece, não sei.
A editora do livro sintetiza o seu estilo como “inquisitivo, comparativo, lúcido”. Inquirir e comparar conduz à lucidez, ou ela existe sem os exercícios anteriores?
O texto que a Casa das Ideias escreveu sobre o meu texto é muito interessante. Foi-me enviado para eu aprovar e não mudei uma única vírgula. Achei interessante um press release ir mais além, no sentido de constituir o primeiro exercício de interpretação e crítica. Em relação à sua pergunta acho que é mais o contrário: sem lucidez não existe a possibilidade para a inquirição e a comparação, que são elementos importantes no processo inquisitivo.
O livro arranca com um texto, onde assume que tem saudades das barbearias da sua infância, pela função social que desempenhavam. Onde é que essa função social na actual Angola se cumpre?
Esta é uma das minhas muitas contradições. Eu nunca gostei de cortar o cabelo, mas sempre gostei muito de visitar barbearias. E Luanda nunca teve muitos espaços públicos. Quase não existem jardins, e existem poucas bibliotecas. Portanto, as barbearias e outros sítios afins acabam por ser locais privilegiados para se medir o pulso da cidade. Outro sítio importante é o mercado. Eu frequentei muito o Roque Santeiro e uma das coisas que ali me fascinou é o modo como as notícias circulam e são comentadas pelas pessoas. Eu trabalhei no Roque Santeiro, na pesquisa para o meu doutoramento, em 2008, numa altura de grande violência, por parte de grupos marginais, ou mesmo por parte da polícia nacional, e as pessoas comentavam estas coisas, ensaiam formas de se proteger, etc. Portanto, em termos de espaços para o comentário social, as populações dos musseques parecem estar mais bem servidas do que nós, os do asfalto.
“O pensamento não é conclusivo”
Escreve na introdução e cito: “No seu todo, estes textos devem ser lidos como pedaços de pensamento, fragmentos, partes de coisas. Alguns complementam-se, encontram continuação noutros textos, outros nem por isso. Alguns são fios soltos cuja conclusão dos textos em que se inserem não os resolve completamente. (…) Há linhas de força que os perpassam. Mas há também linhas de fuga que não levam a nada de conclusivo, verdadeiros becos sem saída da especulação”. Foram temas ou circunstâncias que o deixaram sem conclusão e remate?
Temas, sobretudo. Há muita coisa sobre as quais sabemos muito pouco ainda. Eu tenho por exemplo uma crónica sobre as autoridades tradicionais, que é um assunto que me fascina muito, e sobre o qual tem havido muita investigação noutras partes de África, menos em Angola. Não me parece que a minha crónica vá avançar muito o nosso entendimento sobre esta questão. Embora eu coloque algumas questões que podem nortear as linhas de força de uma pesquisa sobre este assunto. A ideia em escrever estas linhas que citou é dizer precisamente isso: que o pensamento não é conclusivo.
Escreve que as novas tecnologias mudaram até a forma de fazer política. De que maneira se reflecte a mudança na forma de saber, pensar e reflectir?
Hoje, o acesso que temos é maior. Com algum conhecimento, alguma habilidade para se manejar um computador, com acesso à internet que, para minha surpresa, é cada vez mais rápido em Luanda, tem-se acesso à informação. Há cada vez mais bibliotecas online de acesso livre, e há também o projecto da Google em digitalizar milhões de livros e colocá-los na “rede”. Portanto, todas estas facilidades vieram dar às pessoas curiosas acesso a informação que de outra forma seria muito mais difícil e moroso obter. E isso, claro, expandiu as nossas oportunidades para pensar e reflectir sobre as coisas.
António Tomás diz-se um homem mais interessado no cinema enquanto modo de fazer do que na literatura. Isso é o indício de que o autor poderá ainda entrar nesse domínio, da escrita ou produção cinematográficas?
Eu chamo a este livro “romance de ideias”, porque sempre tive inveja dos romancistas. Eu sempre tive inveja dos contadores de histórias. Pensei em escrever romances até aos meus 20 e poucos anos, mas depois de algumas tentativas desisti. Mas sempre me interessei muito pela técnica, ou arquitectura das coisas. Gosto de técnica, gosto da montagem no cinema, gosto da carpintaria das coisas. E sempre me esforcei por trazer para o ensaio este modo de fazer, romances por exemplo, que nos obriga a lê-lo do princípio ao fim. Escrevi a biografia do nacionalista africano Amílcar Cabral a ler e a pensar na estrutura dos romances, a pensar em escrever de uma forma, que agarrasse o leitor pelos colarinhos logo na primeira página e não mais o largasse até à última página. No Cabral, pelo que ouvi das pessoas que o leram, parece que fui bem sucedido. Em “Poligrafia”, tentei fazer o mesmo, escrever como um romance, arrumar as ideias como a trama de um romance, mas ainda é cedo para ver se consegui.
O que se segue a «Poligrafia das páginas de jornais angolanos»?
Eu tenho a minha tese de doutoramento para acabar, o que deve acontecer nos primeiros meses de 2011. E depois vou trabalhar na publicação da tese, isso em inglês, que é a minha língua académica e de pesquisa. Mas tenho outros projectos, os quais não sei em que língua escrevo. Por um lado, sei que e audiência anglo-saxónica é muito maior que a lusófona, mas, por outro, não quero perder o diálogo com os angolanos, muitos dos quais não dominam o inglês. Gostaria, por exemplo, de começar a trabalhar numa grande biografia de uma figura angolana. Mas gostaria também de usar o material que tenho publicado no Novo Jornal para um livro de ensaios. Desta vez já não seriam ensaios curtos, mas longos ensaios, baseados em questões que tenho aflorado nas minhas crónicas, como, primeiro, aspectos sobre o colonialismo, a descolonização, e a história destes processos, segundo, a estrutura do poder político, ou a Constituição, numa perspectiva antropológica, e também alguns aspectos da cultura angolana, como a música e a literatura.
publicado originalmente no Mutamba, Novo Jornal 7/1/2011