João Carlos Silva, o cozinhador

Para João Carlos Silva, o famoso apresentador dos programas de televisão Na Roça com os Tachos e Sal na Língua, a cozinha é uma forma de arte e um pretexto para se falar de história, cultura ou património. Saboreie a sua deliciosa história de vida.


João Carlos Silva define-se a si próprio como um provocador. “Sou um idealista, um irrequieto, um sonhador, um eterno romântico. Vivo atarefado de um lado para o outro, sempre envolvido em inúmeros projectos e desafios. Gosto de fazer coisas novas e de puxar pela auto-estima das pessoas”, diz. A conversa que tivemos com ele, foi ela própria, uma aventura. Interessante, calorosa, intensa, algo caótica, sempre a correr, características que definem igualmente o entrevistado.

A primeira conversa decorreu nas instalações da Cacau - Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias -, um espaço com 2100 metros quadrados, localizado numa das zonas nobres da capital de São Tomé e Princípe, junto ao forte de São Sebastião. “A Cacau comprou este espaço, onde antes funcionavam as Oficinas Gerais de Obras Públicas, através de um empréstimo bancário. Queremos ser uma instituição independente do Estado e da cooperação internacional que dependerá apenas de si para viver provenientes das receitas do aluguer dos espaços e dos visitantes”. João Carlos Silva acrescenta, meio a sério, meio a brincar, que “o primeiro relatório da Cacau só vai ser publicado daqui a 150 anos. Trata-se de uma iniciativa da sociedade servil”, diz o famoso apresentador que adora brincar com as palavras.

Inauguração da Cacau


O espaço ainda está em construção (a inuguração oficial vai decorrer no dia 30 de Dezembro) mas os visitantes podem observar obras de arte de artistas locais e uma exposição de fotografias do século passado, do Instituto Marquês de Valle Flôr, que descreve o funcionamento das roças de exploração do cacau e do café. Dentro de uma ampla sala climatizada, onde decorreu a entrevista, é possível visualizar um filme de 40 minutos, mudo, a preto e branco, datado de 1908, que mostra, entre outros, as etapas do processo do fabrico do cacau na Roça Rio do Ouro (que era a maior do país, hoje designada Agostinho Neto, em homenagem ao primeiro presidente de Angola e onde decorreram as filmagens de Equador, adaptação do romance de Miguel Sousa Tavares).

Durante a entrevista ouvia-se o barulho das obras onde serão edificadas sete lojas - a maioria ligada a produtos típicos de São Tomé -, um banco, uma agência de turismo, um bar e restaurante, “que inclui a oficina de sabores, um espaço gourmet que oferecerá cursos de cozinha. Haverá ainda oficinas de música, dança e teatro”, diz com o orgulho o fundador e mentor da CACAU. A componente social também não foi esquecida. A “casa”, pintada em cores vivas e alegres, terá um espaço reservado para a Associação de Cegos (para promoção e venda de produtos); oficinas de cidadania activa (que inclui o projecto de bibliotecas móveis, cujas caravanas serão aproveitadas para a educação médica, ambiental e patrimonial) e a área da incubação de microempresas e de apoio ao empreendedorismo.

A Bienal e o Roçalíngua

Cacau, René Tavares, Kwame Sousa, JCS e Kátia Aragão, foto MLCacau, René Tavares, Kwame Sousa, JCS e Kátia Aragão, foto MLna Cacau trabalha-se, foto MLna Cacau trabalha-se, foto ML

Kátia Aragão, actual directora da Cacau, esclarece que está “já tudo a postos para a inauguração no dia 30 de Dezembro, que culminará com a festa de passagem do ano. Terá música, dança e a presença das personalidades mais influentes de São Tomé”. A jovem, que dirige a revista STP Magazine e representou São Tomé no Forum dos Jovens Líderes Africanos (uma iniciativa do presidente Barack Obama que decorreu em Washington no passado mês de Agosto) já tem concluído a agenda cultural da CACAU para 2011. Além do Dia de Angola, a celebrar a 11 de Novembro, salientam-se duas grandes iniciativas: a RoçaLíngua (Abril), um encontro de escritores de língua portuguesa cujo comissário é o angolano José Eduardo Agualusa; e a VI Bienal de Arte e Cultura (Junho e Julho) cuja comissária é Adelaide Ginga, coadjuvada pela curadora Marta Mestre e pelo designer Henrique Cayatte (autor da identidade corporativa dos projectos de João Carlos Silva).

A Bienal de Arte e Cultura de São Tomé é uma iniciativa da CIAC – Centro Internacional de Arte e Cultura, também presidido por João Carlos Silva. O dinâmico empreendedor  também fundou o Espaço Teia d’Arte (dedicado às artes plásticas, teatro, dança, debates, oficina de letras, atéliers infantis, cine-clube) em São Tomé. Como artista plástico participou em várias exposições colectivas no pais e no estrangeiro. João Carlos Silva é ainda um dos fundadores da Associação Roça do Mundo, juntamente com um grupo de empresários são-tomenses e holandeses, cuja presidente é a sua esposa Isaura Carvalho. “A associação vai passar brevemente a fundação. O projecto está a ser apoiado pela Fundação Gulbenkian através do seu presidente Rui Vilar. A Associação também está a investir num centro de pesca artesanal e na requalificação da Praça dos Angolares, ambas no sul da ilha”, esclarece.

A roça dos sabores

E foi precisamente na Roça de São João, uma antiga roça colonial transformada em pousada dedicada ao turismo gastronómico, cultural e ambiental, que se realizou a segunda entrevista com João Carlos Silva. A conversa decorreu no alpendre onde se servem as refeições, no qual pontifica o velho fogão a lenha onde os pratos continuam a ser confeccionados à vista dos clientes, com mobílias em madeira que conservam a traça original e, sobretudo, com uma vista deslumbrante sobre o mar e as montanhas. Enquanto nos deliciávamos com o chá de lúcia-lima, acabada de apanhar do jardim,  João Carlos Silva falou sobre as origens da sua faceta mais popular: a de cozinheiro, ou melhor, de “cozinhador”. “Nunca tive qualquer formação técnica. Para mim a cozinha é uma arte, é um esforço de criação, de improviso. É algo que faço com prazer, quando me apetece”. A “arte” foi herdada do seu pai, que tinha um restaurante designado Teia de Aranha, na capital.

Roça S. João, foto ML Roça S. João, foto ML Hoje o seu refúgio é a Roça de São João, localizada no sul de São Tomé, em Angolares – uma terra misteriosa povoada por descendentes de escravos angolanos que, no século XVI, terão naugrafado na região. Os cerca de 200 escravos foram liderados por Amador, que se tornou o rei dos angolares, e cujo busto ainda hoje decora a praça principal da cidade. Além das lições de história, ministradas pela sua esposa, a professora e investigadora Isaura de Carvalho, e dos cursos de cozinha de João Carlos Silva, o visitante pode desfrutar de passeios naturais (existem seis percursos a pé, de bicicleta ou de canoa) para a observação de plantas medicinais. A Roça tem dois pisos, com apenas seis quartos rústicos, uma biblioteca e galeria de arte. No total emprega 70 pessoas. Em frente, no edificio do antigo hospital, funciona o projecto “Agarra a Vida” (dedicado à valorização das jovens mulheres angolares), um centro de exposições, o escritório da Associação RoçaMundo e um espaço do grupo de dança contemporânea de Angolares, designado Mionga, fundado por um jovem local, Baltazar Quaresma. Todos os Sábados há uma demonstração de dança tradicional.

Com tantos atributos não surpreende que a Roça de São João seja visitada regularmente pelos turistas estrangeiros. O local já foi objecto de reportagens por parte dos canais de televisão BBC e Globo e dos jornais britânicos Sunday Times, Financial Times e The Guardian. Foi também na Roça de São João que nasceu a ideia do programa de televisão Na Roça com os Tachos, da RTP África, que tornou João Carlos Silva uma celebridade entre os países onde se fala o português. Uma das características do programa era o facto dos pratos serem confeccionados com base em ingredientes locais.

João Carlos Silva na roça, foto MLJoão Carlos Silva na roça, foto ML

Essa tradição mantém-se. Os produtos locais estão aliás expostos no referido alpendre, ao lado dos livros sobre a história de São Tomé e dos produtos de artesanato, que os visitantes podem observar enquanto esperam pela refeição. Esta é um verdadeiro “desfile” de sabores. No dia em que visitámos a roça (o menu varia diariamente) começámos com lâminas de coco quente com canela. Seguiu-se, como aperitivos, pasta de farinha de mandioca com molho de azeitonas e filetes. Um bolo de arroz (com recheio de corcuma – uma espécie de açafrão – e coentros) e tomate quente (com bacon e queijo fundido). Veio ainda um pedaço de omelete com a deliciosa folha de micócó e uma fatia de maça com canela e chouriço. O prato principal é peixe frito ou frango, com feijão, arroz de corcuma e beringela. A terminar a sobremesa composta por doce de papaia verde com molho de maracujá e uma lâmina de queijo no topo. Um verdadeiro manjar dos deuses.

Calulu santomense, foto MLCalulu santomense, foto MLfoto MLfoto ML

Os projectos futuros

Encontrámos ainda João Carlos Silva, uma terceira vez, já no aeroporto. O nosso anfitrião ia a caminho de Portugal, pais onde viveu durante doze anos, para participar na Feira de Agricultura de Santarém. Aproveitaria a viagem para ultimar os preparativos para a RoçaLíngua e para a Bienal que, a par da inauguração da Cacau, são os projectos mais importantes que tem em curso. O “cozinhador” despediu-se com o envio de “kandandos” para os seus amigos angolanos. Recorde-se que João Carlos viveu sete anos em Angola. Recorda-se de, em Luanda, ter sido colega no liceu Salvador Correia de figuras como Job Graça (que reviu ao folhear a revista Exame) e, no Lubango, de ter convivido com escritores como Pepetela ou o falecido Ruy Duarte de Carvalho (que a leitura da VIDA o fez recordar). Foi também pelo mesmo motivo que se relembrou do seu velho amigo Guilherme Galiano, companheiro de tertúlias. “Um dia gostava de fazer um programa com a TV Zimbo”, disse. Aqui fica o desafio.

A felicidade à roda com os tachos

João Carlos Silva nasceu em Angolares em Junho de 1956. Em Janeiro de 1976, pouco depois da independência, foi viver para Angola onde permaneceu durante sete anos. “Estive em Luanda e depois mudei para o Lubango onde me inscrevi na faculdade de Letras. A minha cozinha é muito influenciada pelos tempos que vivi em Angola. O feijão que servimos aqui, por exemplo, tem mais a ver com o de Angola, com óleo de palma ou de dendem, do que com a tradição de São Tomé”, exemplifica. Seguidamente foi viver para Portugal com o pretexto de acabar a licenciatura em Direito em Coimbra. Desistiu, no entanto, ao fim do terceiro ano: “fui um boémio. Mas foi nessa altura que me comecei a interessar pela arte e a fazer alguns petiscos”, recorda.

De Coimbra foi viver para Lisboa onde frequentou a tertúlia dos artistas que se reuniam, por exemplo, no bar Botequim da falecida poetisa Natália Correia. João Carlos Silva, aliás, é um fervoroso adepto da poesia. “Considero a poetisa Alda Espírito Santo, recentemente falecida, a maior riqueza jamais nascida em São Tomé”, refere. Foi também nesse período que João Carlos Silva trabalhou como jornalista numa pequena publicação chamada Triângulo que versava sobre a cooperação entre África e a União Europeia.

JCS na roça D.Augusta, onde nasceuJCS na roça D.Augusta, onde nasceuDoze anos depois resolveu regressar a casa. Descobriu o seu refugio na Roça de São João, que transformou, juntamente com a sua esposa Isaura Carvalho, em local de culto para o turismo gastronómico, cultural e ecológico. Foi nesta antiga roça colonial que nasceu o programa televisivo na Roça com os Tachos, que o tornou famoso em todos os países de língua portuguesa. O programa nasceu em 2003 com o convite de Ricardo Mota, o responsável na altura pela RTP África. Os pratos eram confeccionados ao ar livre, numa roça de São Tomé pelo apresentador, João Carlos Silva, que, com o seu lenço de pirata, levava “literalmente” os tachos às costas pelas belas paisagens de São Tomé. “Havia muito improviso à mistura. Sou muito distraído. Ando sempre a perder tudo. Às vezes esquecia-me dos ingredientes. A cozinha era só um pretexto para falar de cultura, história, teatro ou literatura”.

Essa intenção foi levada ainda mais longe no programa televisivo Sal na Língua, também da RTP África, gravado em oito países: Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Timor-Leste e Portugal. “Foi muito cansativo, uma verdadeira maratona. Mas foi também uma das experiências mais enriquecedoras da minha vida”, recorda. O programa era baseado em conversas informais com personalidades da artes e da cultura dos vários países de língua portuguesa. Os dois programas de televisão deram origem a livros. O primeiro, Na Roça com os Tachos, baseado nas receitas do programa e o segundo, intitulado “Façam o Favor de Ser Felizes”, a frase com que João Carlos Silva costumava terminar os episódios. O livro contem excelentes imagens de Adriana Freire, da revista Notícias Magazine.

cacau, foto MLcacau, foto ML

publicado originalmente na revista Vida do jornal O País 

 

por Jaime Fidalgo
Cara a cara | 28 Novembro 2010 | bienal de s.tomé, Cacau, João Carlos Silva, Roçalíngua, s.tomé e príncipe