José Saramago, o visionário da tangibilidade
A morte só existe se há ausência. Para uns, como Saramago, não haverá nunca ausência. O escritor semeou-se tanto e por tantos outros que ele apenas mudou de presença. Não falo da escrita. Mas dos momentos em que ele se distribuiu, pessoa entre pessoas. Em mim, essa permanência faz-se de indeléveis momentos. Relembro aqui alguns desses episódios:
Primeiro episódio
Maputo, finais de Novembro de 2000
José Saramago vem a Maputo lançar A Caverna. Uma semana antes da sua chegada, o jornalista Carlos Cardoso tinha sido assassinado. Para Saramago, a razão da sua viagem a Maputo já não é ele ou a sua obra. Horas depois de ter aterrado, a sua agenda é totalmente alterada. Sentado na varanda do seu hotel, José dá instruções sobre o que pretende. Horas depois visita a redacção do Metical, o jornal de que era director Carlos Cardoso. “Acima de tudo não podemos deixar que nos convençam que isto que aconteceu é episódico e acidental, como se houvesse um grupo descontrolado que, por uma qualquer razão, resolvesse cometer um crime”, disse Saramago na ocasião.
Depois, segue com um batalhão de jornalistas para o local onde Cardoso tinha sido abatido a tiro. Ali mesmo fala para a imprensa, exalta a coragem e a lucidez como armas para preservarmos a humanidade. Visita a viúva de Cardoso, dá entrevistas, fala com escritores e artistas.
No dia seguinte, pede-me a mim para organizar encontros com membros do governo. Quer pressionar as autoridades para que encontrem os autores materiais e morais de ambos os crimes. Organizo um encontro com o primeiro-ministro de quem eu era amigo. Confesso-lhe os meus receios. O discurso de um estrangeiro, com exigências sobre a celeridade da justiça, não agradaria a dirigentes orgulhosos na recente conquista da Independência.
Confirmando os meus receios, na audiência, José Saramago não usa de panos quentes. As suas palavras são ásperas, certeiras, sem diplomacia. Pascoal Mocumbi, o primeiro-ministro, é um homem alto, tão alto como Saramago. Enfrenta-o, olhos nos olhos. Após um momento de silêncio, Mocumbi confessa: “Eu já o conhecia, já gostava de si. Agora gosto mais ainda.” Começa então uma conversa franca que dissolve distâncias. Saramago e Mocumbi trocam confidências, como velhos amigos. No final, está acertado um outro momento para continuarem a amena cavaqueira: em Lanzarote, em casa de José e Pilar.
Segundo episódio
Cheias em Moçambique, 2000
As inundações de 2000 foram as piores nos últimos cem anos. Impotente, perante o drama que vivíamos, redigi um apelo para que as vítimas das cheias recebessem apoio internacional. Saramago respondeu-me no mesmo dia perguntando ao telefone, no seu habitual tom seco:
- Diz-me apenas o que tenho que fazer.
No instante seguinte, tinha transferido 25 mil dólares para uma conta que passaria a ser auditada por uma agência financeira internacional. Outros escritores lhe seguiram o exemplo. No final, havia dinheiro para erguer um centro de saúde em Chivonguene, nas margens do rio Limpopo.
Já em Maputo, meses depois, Saramago foi recebido por Helder Muteia, o então ministro da Agricultura. O governante pretendia expressar a Saramago a gratidão dos moçambicanos. Muteia é poeta. Organizou o encontro com um carinho que superava as obrigações protocolares. Escapou-lhe, por isso, a secura do escritor português durante todo o encontro. Ao lado de Saramago eu adivinhei-lhe a pressa: queria fugir aos agradecimentos. Para ele havia um dever de solidariedade que se explicaria melhor junto dos camponeses que beneficiaram do seu apoio. Já no final, em plenas despedidas, Saramago perguntou: “E que nome deram ao centro de saúde?” Imitando o tom seco do visitante, o ministro respondeu, quase displicente: “Chama-se Levantado do Chão.” Saramago parou, fulminado pela emoção. Gaguejou, baralhando letras e palavras. Por fim, confessa, em suspiro: “Caramba, homem, você comoveu-me!”
Terceiro episódio
Universidade de Évora, 1999
O abraço estava mal distribuído. Ele abraçou-me. Eu fui abraçado. A razão dessa troca desigual não era apenas de ordem física. Eu estava preso pela timidez, vivendo um momento inusual, num território estranho. A pergunta de Zeferino Coelho, no dia anterior, ainda ecoava confusamente dentro de mim:
- Você importa-se que José Saramago, depois da entrega do seu prémio, faça um debate público consigo?
O editor da Caminho conhecia antecipadamente a minha resposta: ter Saramago na cerimónia de entrega de um prémio era a impossível cereja por cima de um improvável bolo. Embalsamado num fato escuro, fui subindo a escadaria do edifício da universidade. E lá estava ele, no último degrau, com seu porte nobre, abraçando-me logo à chegada como se fosse ele o patrono do prémio. Para mim, aquele abraço era uma recompensa maior.
O programa era breve e, num instante, se iniciou a anunciada conversa entre mim e ele. O anfiteatro estava cheio, no pódio estava o Presidente da República de Portugal. A um certo momento, em tom paternal mas ríspido, Saramago admoestou-me: eu que deixasse essa “coisa” da biologia e me dedicasse apenas à escrita. Lembro-me do seu tom, peremptório: “Já te disse, a escrita pede tudo, não aceita partilhas.”
Mas eu sabia que, também para ele, essa entrega à literatura não o ocupava com exclusividade. Saramago foi um cidadão do mundo, entregue a causas e debates, desdobrando-se em viagens e semeando presenças. Recordo ver uma fotografia sua, já doente e antevendo o fim, acarinhando Aminatou Haidar, activista pela independência do Sara Ocidental. Em greve de fome, Aminatou está frágil, quase desfalecida. Não menos frágil está José Saramago. Mas as mãos de José e de Aminatou amparando-se mutuamente geram a força de um infinito abraço.