Kabasele, percurso e história de vida
Percurso e história de vida
O IN- Mouraria acolhe centenas de pessoas com percursos de vida muitas vezes complexos. Muitos vêm de longe, de África, da Ásia, ou do outro extremo da Europa. Alguns estão apenas de passagem pelo nosso centro e outros fazem uma pausa um pouco mais prolongada. A cada encontro, tentamos estar atentos às particularidades e às histórias de cada um(a). Neste texto debruçamo-nos sobre a história do Kabasele. Vem da República Democrática do Congo e conta-nos o seu percurso e o que o trouxe ao IN-Mouraria.
Kabasele nas ruas da Mouraria, foto de Clara Abdullah.No inverno de 1991, Kabasele chega a Lisboa. À saída do aeroporto, é surpreendido pela chuva e pelo vento. Não tem casaco nem guarda-chuva. A chegada é de certa forma brutal. No caminho encontra uma pessoa do seu país que propõe recebê-lo em sua casa. Porém, não o leva para o seu apartamento, mas sim para outro onde não há água quente e no qual já vivem 80 pessoas. Kabasele tinha-se cruzado com um marchand de sommeil1.
Rapidamente, começa a trabalhar como operário na construção civil. Nessa altura faltava mão-de-obra em Portugal, pois muitos portugueses deixaram o país para trabalhar na construção civil na Suíça, França ou Espanha. Portugal recorre a população imigrante para realizar grandes obras, tais como a extensão do metropolitano de Lisboa, a construção da nova ponte sobre o Tejo ou de grandes centros comerciais. Assim, Kabasele encontra facilmente trabalho, mas as condições são difíceis. Chega a trabalhar12 horas por dia, muitas vezes sem contrato, como muitas outras pessoas em situação irregular.
Sob pressão da Comunidade Europeia, em 1993 e 1996, Portugal implementa campanhas de regularização extraordinária destes trabalhadores imigrantes. Kabasele beneficia desta medida e obtém a autorização de residência em 1996.
Para Kabasele segue-se um período de descanso, de alívio. Pode finalmente visitar o seu irmão e a sua irmã em França. Pode por fim agir dentro da legalidade. No entanto, continua a ser alvo de discriminação. É mal pago, não lhe são reconhecidas as suas qualificações e quando tenta trazer a sua esposa, que ficara no Congo, o seu pedido é negado em três ocasiões. Não podendo esperar mais, o casal divorcia-se. Kabasele prossegue o seu caminho. Viaja entre Portugal e França em busca de melhores condições de vida. Mas as coisas complicam-se uma vez mais em 2008. De facto, Kabasele perde a autorização de residência porque não consegue apresentar um contrato por mais de 6 meses. Torna-se novamente um cidadão «indocumentado». Começa a dormir na rua e a beber álcool todos os dias, especialmente whisky e vinho. A sua saúde deteriora-se, e não recebe os cuidados de saúde necessários por estar em situação irregular no país, apesar de ter número de utente e descontos na segurança social.Os seus compatriotas dão-lhe uma mão. Pode alimentar-se no restaurante de um amigo e ganha alguns trocos, ajudando no ferro-velho da Mouraria. Kabasele percorre a cidade, à procura de sucata para vender e de lugares para dormir.
Em 2012, um centro de redução de danos abre as suas portas mesmo à frente do ferro-velho. Edna, uma mediadora do projeto, atravessa a rua para conversar com Kabasele. Mas ele está cansado e desanimado. Vai ainda levar algum tempo e perseverança para que chegue a cruzar a nossa porta.
Kabasele decide encontrar-se com a Assistente Social, a Dra Marta, como ele lhe chama. Ela tenta resolver os seus problemas administrativos e restaurar os seus direitos, com o apoio de toda a equipa. Mas a situação do Kabasele é extremamente complexa… Apesar dos mais de 15 anos de presença no território, as autoridades afirmam incessantemente que ele não tem o direito de estar onde está. É ameaçado de expulsão. Kabasele aprende a esperar…
Durante este tempo de espera e de incerteza, habitua-se a vir diariamente ao IN-Mouraria. Todos os fins de tarde vem para descansar um momento, conversar um pouco e comer qualquer coisa. Ao longo do tempo, uma relação de confiança constrói-se com a equipa do centro.
Kabasele relembra aquela tarde chuvosa, em que teve de ir com a Assistente Social ao Hospital. Chovia torrencialmente. E 20 anos depois, Kabasele continua sem ter guarda-chuva… Marta dá-lhe o seu, ela vai-se molhar, mas não importa. Este gesto simples serviu para Kabasele perceber que no IN- Mouraria tinha encontrado não só assistência, apoio, mas acima de tudo um lugar de humanidade e proteção, onde é finalmente reconhecido como uma pessoa completa, apesar do seu estatuto de estrangeiro. Para Kabasele, o IN- Mouraria é um verdadeiro lugar de acolhimento e refúgio. Aqui sente-se protegido do racismo da cidade e tem a sensação de ser parte de um grupo, de uma comunidade de pessoas. Assim, o IN- Mouraria oferece um sentimento de pertença, um vínculo especialmente importante quando se está longe de casa.
Recentemente, após anos de tentativas, atendimentos, requerimentos e queixa na Procuradoria Geral da República, Kabasele obtém finalmente uma autorização de residência anual por razões humanitárias, tendo em conta a situação política e social no Congo. Assim, acompanhar é não só ir ao encontro do outro e demonstrar capacidade de acolhimento, mas também lidar em conjunto com o teste do tempo e resistir ao lado dos que as políticas tentam rejeitar.
Kabasele pode então continuar o seu caminho, e talvez mudar para outro lugar.
Publicado originalmente no GAT Portugal.
- 1. Marchand de sommeil, é uma expressão idiomática para designar um proprietário que arrenda habitações insalubres a pessoas em dificuldade social a fim de ganhar o mais dinheiro possível.
