“O samba sempre arruma alguma brecha de contestação”
Entre clássicos mais e menos conhecidos, Luca Argel rendilhou o guião de Samba de Guerrilha, o seu quarto álbum que chega agora ao digital e em formato físico num jornal ilustrado.
Nelson Rodrigues costumava dizer que o primeiro clássico Fla-Flu começou quarenta minutos antes de Nada, em um tempo imemorial, não acessível ao comum dos mortais. Luca Argel, partindo da fala do cronista, acredita que o samba, qual “divindade”, apareceu também muito antes do primeiro sambista tomar a palavra.
Foi a navegar pela história centenária deste género de origens “populares, pobres e negras” que o músico brasileiro, residente há quase dez anos em Portugal, desaguou em Samba de Guerrilha, um projeto que mistura versões contemporâneas de temas clássicos, intercaladas por narrações da escritora e música Telma Tvon, sempre amparadas por uma sonoplastia que nos situa nos lugares e tempos descritos.
É este conjunto de faixas – ditas e cantadas – que nos guia na travessia de 42 minutos do álbum, que começa com um quase desconhecido Alfredo Português, o sambista de Alfama que viajou para o Rio de Janeiro no início do século XX, e que termina em Uma História Diferente, de Paulinho da Viola.
Pelo meio, há uma profunda reflexão sobre esse imenso Brasil africano e a forma como a escravatura continua a ser “uma questão mal resolvida”, nota Luca Argel no seu apartamento do Porto.
O Samba de Guerrilha é um projeto no qual já vem trabalhando desde 2016. Como é que este percurso, nas suas várias manifestações, desaguou num álbum?
Em 2016 havia uma associação no Porto, que era o Contrabando, que fez uma semana dedicada ao Brasil, porque naquele momento estava a acontecer o processo de Impeachment da Dilma. Eles organizaram uma semana de denúncias da situação: tinham debates, exposições, filmes, documentários, concertos com vários artistas brasileiros residentes aqui no Porto e chamaram-me para ir fazer alguma coisa lá. O primeiro Samba de Guerrilha que aconteceu foi nesse evento: montei um concerto falado e cantado em que separei algumas histórias sobre o samba, de um ponto de vista político. Foi assim que nasceu o projeto. Achei que o formato funcionou bem e então comecei a fazê-lo em várias outras ocasiões. Cheguei a apresentá-lo no Porto umas duas ou três vezes. Tornou-se também num seminário que eu apresentei na Universidade do Porto, num texto escrito que foi publicado numa revista e foi nessa revista que apareceram as primeiras ilustrações do José Feitor que estão agora no jornal. Mas ao princípio eu não tinha vontade de gravar um álbum. Achava que era uma coisa que funcionava melhor ao vivo, porque me dava a possibilidade de interagir com as pessoas. Mas em 2019 fui desafiado por um amigo para fazer um álbum. Não seria igual ao concerto, não tinha como ser, mas poderia ser interessante também. E aí, já com um projeto mais maduro na minha cabeça, comecei a montar o guião do álbum.
Os textos que escreveu e que a Telma Tvon lê já tinham sido usados nos concertos?
Não. Foram propositadamente escritos para o álbum. Durante os concertos eu não tinha textos preparados. Só tinha uma lista de tópicos para improvisar na hora. Isso é outra coisa que não dá para fazer no álbum, porque é preciso controlar bem o tempo. Não posso falar tempo demais. No concerto também não é bom falar tempo demais, porque as pessoas cansam-se [risos].
Porquê a opção pelo formato físico em jornal, num registo muito pouco comum para um disco?
Várias coisas concorreram para que eu optasse por esse formato. A primeira é que eu não tinha como fazer uma edição física do disco em CD ou vinil por causa de questões de direitos de autor. As autorizações que eu consegui foram só para a versão digital. Esse problema, na verdade, já não é um problema tão grande, porque hoje em dia a maioria das pessoas ouve música nas plataformas digitais. Acho que a vontade de comprar um álbum vem muito mais da vontade de ter um objeto, de ter alguma coisa que se possa pegar. Isso continua a funcionar, mesmo se esse objeto não for um disco: pode ser um jornal, um postal, uma caixa. A criatividade é o limite. Acabou por surgir a ideia do jornal em parceria com o Rui Silva, que é um designer aqui do Porto que edita uma série de zines que se chamam Gabinete Paratextual. Ele já é meu amigo há muito tempo e foi uma das pessoas que assistiu à apresentação do Samba de Guerrilha no Contrabando. Já nessa noite ele achou que a apresentação poderia virar um zine. Quando eu decidi que ia fazer o álbum, lembrei-me logo de chamar o Rui para a edição física. Finalmente íamos realizar o zine! No final, tudo acabou por se ligar.
O álbum está dividido em três atos, num formato de samba opera (conceito emprestado da rock opera popularizado por Pete Townshend, dos The Who). O que o levou a escolher esta estética?
Foi a forma mais simples que encontrei para tentar explicar às pessoas o quanto este álbum é diferente de um formato de álbum de canções normal. Existe uma narrativa, uma história da qual as músicas fazem parte, mas não se resume só às músicas. Acho que este conceito de rock/opera, em música, é o mais próximo que uma banda e um artista conseguiu chegar deste formato que eu tinha na minha cabeça. Então apropriei-me disso, só que não é rock, é samba.
Curioso perceber que é no álbum em que mergulha mais a fudo nas raízes do samba que o Luca também dissolve por completo as fronteiras musicais do samba…
É mesmo essa a ideia. O álbum é um ciclo: começa só com precursão corporal e uma guitarra de fundo e depois viaja por uma variedade muito grande de instrumentos. No final retorna para a percussão básica, que não tem de ser necessariamente com instrumentos tradicionais de percussão. Pode ser tocar no próprio corpo, numa mesa, numa cadeira, em panelas, frigideiras, caixas de fósforos, em qualquer coisa. São esses os sons que estão na primeira e última faixa. Pelo meio vale tudo! [risos]
Foi complicado para si sair das linhas tradicionais do samba?
Foi difícil, mas foi sempre um desejo muito grande que eu tive, o de tentar misturar referências. Achei que este álbum era o espaço perfeito para fazer essas experiências, de gravar sambas que já existem, mas oferecendo outro ponto de vista do que se pode fazer a partir do samba. Tentei ser bastante pouco convencional.
No documentário AmarElo, o Emicida fala de um conceito de neo-samba que, de alguma forma, se relaciona com aquilo que o Luca fez neste Samba de Guerrilha, que é abrir o samba a novos géneros musicais.
O AmarElo e incrível! Foi uma sincronia muito grande o documentário do Emicida ter saído por esta altura, porque foi exatamente a altura em que eu terminei o meu trabalho e acho que as propostas estão muito próximas. Revejo-me muito nas reflexões que ele faz.
Tal como o Emicida, o Luca faz uma viagem pela História negra do Brasil, pelos tempos do colonialismo e da escravatura…
É curioso, porque quando comecei a assistir ao documentário e percebi que era isso que ele ia fazer, senti até um medo de que ele fosse falar exatamente das mesmas coisas que eu falo no meu álbum. Mas não, ele conta histórias que eu próprio nem conhecia. A partir da mesma motivação, ele chega a uns sítios e eu chego a outros. Isso é incrível! Outra pessoa que se propuser a fazer a mesma coisa provavelmente chegará a outros sítios. A história continua a ser muito rica.
Qual a importância de resgatar essa história para a atualidade?
Infelizmente continuam a ser temas atuais. Principalmente a questão do racismo e os reflexos do regime de escravidão que existiu no Brasil durante séculos e como isso é uma questão mal resolvida. Isso é a raiz dos problemas mais graves que temos no presente. Temos a tendência de achar que a escravidão foi abolida no século XIX, que os problemas hoje são outros, mas não são. São os mesmos problemas que tentámos empurrar com a barriga até hoje e por causa disso não se resolveram. Nunca foram encarados de frente. E o samba – não só o samba, o rap também faz isso – é um género que tenta abrir os olhos das pessoas para esses problemas recorrentes da sociedade. Nos últimos cinco anos tem acontecido no Brasil um retrocesso civilizacional muito grande. Nunca foi tão necessário voltar a essas reflexões e tentar consciencializar as pessoas de que essas histórias aconteceram, de que esses problemas têm uma razão de ser, mas que são resolvíveis. Não são dados imodificáveis da natureza, podem ser resolvidos com boa vontade.
O facto de o Luca Argel estar no Porto há quase dez anos deu-lhe um novo olhar sobre estes eventos históricos que relata no disco?
De certa forma sim. Não é que eu não estivesse consciente desses problemas antes. O que mudou foi a compreensão de outros pontos de vista que eu não tinha ideia quando estava no Brasil, que é o ponto de vista de como a história é contada em Portugal pelo país colonizador. Isso adiciona outra camada de entendimento para problemas estruturais que o Brasil tem. Há alguns comportamentos que temos no Brasil – aquilo a que nós chamamos de “síndrome de vira lata” - de pensar que o Brasil é sempre o pior lugar do mundo, mais desorganizado, mais burocrático, mais incompetente e que tudo o que vem de fora é muito melhor do que se faz lá dentro e que Portugal também tem em relação ao norte da Europa ou aos Estados Unidos.
Então foi importante para si perceber esse elo histórico?
Completamente! Estar em Portugal fez-me perceber a relação que o País tem com a própria história e essa problemática de criar um passado glorioso que tenta jogar para debaixo do tapete as violências todas, as questões de desigualdade e de injustiça que existiram. O Brasil fez a mesma coisa, mas acho que ainda tem um bocadinho mais de autocrítica. Talvez por estar na posição de colonizado conseguiu terceirizar um pouco mais a culpa: “Ah, isso foi porque fomos colonizados por Portugal. Se tivéssemos sido colonizados pela Inglaterra, aí teria sido diferente”. Lá está, é a velha síndrome do vira lata. Estar aqui em Portugal ampliou um pouco o meu horizonte de entendimento da história, mas não modificou esse entendimento nos seus fundamentos.
Contudo, foi no Porto que redescobriu o samba, cidade onde o Luca iniciou o projeto Samba Sem Fronteiras e colaborou com os Bamba Social. Como é que aconteceu essa redescoberta e porquê aqui?
Aí sim, estar fora do Brasil fez muita diferença, porque se a parte da história eu já conhecia antes, o olhar sobre a cultura brasileira e o samba foi muito enriquecido. Comecei a dar-me conta que muitos traços e manifestações culturais do Brasil são únicas, não têm correspondente fora do país. Como cresci no Rio de Janeiro, numa cidade que tem muito presente a cultura do samba, eu dava de barato essas coisas. Aqui eu comecei a valorizar muito mais e a identificar o que de tão especial existe nessa parte da cultura brasileira. Ter um grupo de samba no Brasil seria apenas mais um grupo, mas aqui em Portugal já torna a coisa muito mais única, porque não há tantos assim. Torna-se num trabalho de apresentação de uma coisa nova, diferente para as pessoas. Isso sempre me estimulou muito. Foi tudo isso que me fez mergulhar mais na história e no repertório do samba, porque, de certa forma, eu sentia que aqui em Portugal estava a fazer a diferença, a mostrar coisas novas para as pessoas e a enriquecer-me a mim mesmo, descobrindo coisas que eu próprio não conhecia.
O Samba Sem Fronteira e a Orquestra Bamba Social apareceram ambos em 2012. Sentiu que estes dois grupos foram marcantes para a aproximação dos portugueses – em especial dos portuenses – ao samba e à cultura brasileira?
Eu cheguei ao Porto em 2012 e assim que eu cheguei começou o Samba Sem Fronteiras. Não conhecia a cidade antes disso, mas muitas pessoas dizem-me que antes não havia nada de parecido. Eu sei que havia grupos de samba a atuar muito antes de nós, como os Toque Social, mas a grande diferença é que esses grupos tinham um trabalho mais voltado para um público brasileiro imigrante. Não é que eles tivessem isso consciente, mas é uma coisa que acontece naturalmente, mesmo sem querer. O Samba Sem Fronteiras e os Bamba Social – os Bamba Social até foram o expoente máximo disso, porque são um grupo fundado por portugueses – tinham o desejo de fazer samba para o público português também. No caso destes dois grupos, misturaram-se pessoas de origens muito diferentes, de lugares diferentes do Brasil que estavam em Portugal por motivos diferentes. Alguns já tinham um círculo de amizade com portugueses que frequentavam as rodas de samba, acabaram por chamar outros e a coisa misturou-se um pouco mais ali do que nas experiências de samba anteriores. Eu acho que a explicação é por aí.
Recentemente os Bamba Social lançaram o álbum Samba de Bolso, projeto onde o Luca Argel também entra contando a história do samba, não em jornal, mas em vídeo. Nessa altura já estava a trabahar no Samba de Guerrilha?
O Samba de Guerrilha já estava pronto quando entrei nisso. Mas foi curioso, porque quem me convidou para fazer essas participações no Samba de Bolso foi o Pedro Pinheiro que ainda não conhecia o Samba de Guerrilha quando me chamou. As músicas já estavam gravadas e ele queria que houvesse texto antes de algumas músicas muito específicas. Por isso escrevi os textos para encaixar no que a próxima música ia apresentar. É uma coisa muito mais direcionado.
Nesse projeto refere-se ao samba como um fenómeno que é mais antigo do que a humanidade, mais antigo do que o próprio Big Bang…
Isso é uma paráfrase que eu faço de uma frase do Nelson Rodrigues, que eu acho muito engraçada e que se aplica muito ao samba. Na verdade, ele estava a falar de futebol, sobre o primeiro clássico Fla-Flu que diz ter acontecido cinco minutos antes do nada. Tem certas coisas que ganham uma dimensão tão transcendental na vida das pessoas que parece que sempre existiram. São forças da natureza. E eu acho que isso se aplica perfeitamente ao samba. Quem vive de samba sente que o samba é quase uma divindade, que paira acima do mundo real.
Que papel tem para si o samba na atualidade? Continua a ser de guerrilha?
Continua a ser, mas não só de guerrilha. O samba, apesar de ser uma ferramenta de contestação política muito potente, pode ser muitas outras coisas. A função que o samba cumpre hoje não é muito diferente da que cumpria há um século, que é a de ser um elemento de coesão social, de união de pessoas. Como o samba acontece geralmente em rodas, em festas, num ambiente muito descontraído, existe a tendência para as pessoas acharem que é uma diversão escapista, alienante. Mas isso é um erro, um equívoco, porque foi graças a essa coesão social que se criaram laços afetivos entre as pessoas e entre as pessoas e o seu espaço de convivência. Foram esses laços que lá atrás, quando o samba nasceu, possibilitaram que as pessoas sobrevivessem na prática. Elas vinham de uma experiência de escravidão muito violenta e traumatizante, não tinham qualquer apoio do Estado e precisaram de arranjar formas coletivas de sobreviver no mundo e nas cidades que não teriam conseguido sozinhas. Era fundamental que existisse uma coesão social e o samba foi o espaço onde esses laços foram fortalecidos. E isso é estratégia de sobrevivência.
Acha que no Brasil o poder político ainda tem medo do samba?
Eu acho que qualquer poder autoritário e tirânico tem sempre medo da arte, da informação e do conhecimento. São essas as vozes que vão contestar o poder. O samba especificamente já passou por um processo de domesticação muito intenso. Nós vemos isso por aquilo em que se transformaram as escolas de samba, que eram associações comunitárias e viraram grandes empresas capitalistas que acabaram por entrar na roda do sistema. Porém, é muito curioso ver que mesmo dentro do sistema, o samba ainda consegue disparar algumas farpas, trazendo personagens políticas para dentro dos desfiles, aproveitando a projeção de marketing para fazer crítica social, mesmo já estando institucionalmente dentro do sistema. Nós vimos isso, por exemplo, no desfile da Mangueira, de 2019, ou do Paraíso do Tuiuti, em 2018. O samba sempre arruma alguma brecha de contestação, porque é inevitável: as origens do samba são populares, pobres, negras e suburbanas. É muito difícil apagar completamente esta história.
Artigo originalmente publicado por Sábado a 24.02.2021