Para lá dos seus passos, entrevista com Kamy Lara
“Para lá dos meus passos” é o primeiro documentário da realizadora angolana Kamy Lara. A obra, semeada de muitos momentos poéticos, acompanha o processo de montagem do espectáculo (Des)Construção, da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, fundada há 28 anos em Luanda. A produção e a co-realização do documentário são da autoria da Paula Agostinho e a edição da realizadora cubana Gretel Marín. Falámos com Kamy Lara, em outubro de 2019, na sede da Associação Tchiweka de Documentação em Luanda. A conversa alongou-se para outros trabalhos da realizadora, sendo um dos enfoques as mulheres (trabalhar com elas e sobre elas).
Como surge a ideia do filme “Para lá dos meus passos”?
Partiu de uma admiração muito grande que tenho pelo trabalho da Companhia de Dança Contemporânea de Angola (doravante CDC Angola). Já tinha trabalhado com eles em alguns espetáculos anteriores desde pequenos vídeos para serem usados durante espetáculos como spots promocionais ou cobertura dos próprios espetáculos. Então, já havia uma relação entre nós, principalmente com Ana Clara Guerra Marques [bailarina e coreógrafa angolana]. Depois, houve um espectáculo específico, “Ceci n’est pás une porte”, em que os bailarinos dançavam confinados a pequenas caixas fracamente iluminadas, lutando para se expressar dentro de um espaço apertado e sufocante. Aquele espetáculo tocou-me muito por um lado porque vivíamos em Angola um momento tenso em que activistas tinham sido presos e condenados e o espetáculo remeteu-me muito a essa reflexão sobre a falta de liberdade e de como por mais apertado seja o espaço que nos sobra, arranjaremos sempre forma de nos expressar. Nesse dia fiquei com muita curiosidade de saber qual era o processo pelo qual a Companhia passava para construir um espetáculo. Como seria a transformação de um tema ou de uma ideia em movimentos de dança concretos principalmente da perspectiva dos bailarinos. O clique surgiu aí. E, logo nessa altura, fui falar com a Paula Agostinho, que trabalhava comigo na Geração 80, uma pessoa muito ligada às artes, com apurada sensibilidade e, juntas, decidimos construir esse projecto.
No início, decidimos propor à CDC acompanhar a produção do próximo espectáculo deles. A Ana Clara foi muito receptiva e começámos logo a entrar em contacto. Assim que eles começaram a ensaiar o novo espectáculo ela avisou-nos e nós começámos a filmar mesmo antes de sabermos sobre o que seria o espetáculo. Sabíamos que queríamos que o filme acompanhasse a construção do espetáculo e que qualquer que fosse o tema do espetáculo isso iria influenciar o nosso filme. Foi muito complicado no início porque nós íamos filmando os ensaios sem realmente saber sobre o que era a peça e tanto a Ana como o Nuno deixaram que fossemos nós, através da observação, a tirar as nossas próprias conclusões sem nos dizerem concretamente o que estavam a pensar.
Quando começámos a editar um dos maiores desafios foi exatamente definir o tema do filme inspiradas nas ideias do espetáculo. Sabíamos que não queríamos fazer um filme em formato making off do espetáculo. Tínhamos que acrescentar uma ideia, dar a nossa opinião sobre o trabalho deles e acrescentar uma camada cinematográfica a todo esse trabalho que é a dança profissional.
Como se dá este encontro com os outros artistas? As várias vozes de bailarinos, a produção em torno do espectáculo e outros artistas que vocês “convidam” para o filme, através da música e da poesia, por exemplo.
Nós tínhamos uma ideia um pouco romanceada do que seria a construção do espectáculo. Idealizamos um monte de coisas desde as viagens dos bailarinos a outras províncias para trabalho em laboratório (com dançarinos tradicionais, por exemplo), ou as colaborações com diferentes artistas quer para construção da cenografia ou para banda sonora, etc. E é verdade que em outros espetáculos a CDC teve pré-produções bastante ricas com várias colaborações mas neste espetáculo em particular conseguimos perceber as reais dificuldade da CDC. Uma das coisas que me marcou muito foi ver quantas ideias a Mónica Anapaz tinha para o espetáculo - desde guarda-roupa, iluminação, ideias para o cenário de palco - que não puderam ser concretizadas por falta de meios, seja meios financeiros ou mesmo de técnicos profissionais capazes de concretizar. E é muito engraçado porque o cinema que nós fazemos na Geração 80 é muito parecido, isto é, temos que adaptar as nossas ideias à realidade que temos e não deixar que isso nos impeça de criar da mesma forma como a CDC, que se apresenta anualmente com um espetáculo novo.
Há sempre uma colaboração entre os bailarinos e a equipa técnica?
Sim. Durante as primeiras entrevistas que fizemos para conhecer melhor cada pessoa, uma coisa comum em todos os discursos (seja dos bailarinos como das pessoas da direcção) é a necessidade de os bailarinos se entregarem um pouco de si a cada espetáculo. Cada um tem um movimento específico, um modo de mexer o corpo específico e a coreógrafa aproveita isso para implementar no espetáculo. Em determinadas peças usam mesmo experiências pessoais para enriquecer o trabalho. Isso sempre sem perder a ideia de quem está a criar a peça, porque, no fundo, os coreógrafos são os criadores, mais ou menos como os realizadores (faço muito esse paralelismo), e há sempre ideias que não se adequam com a ideia da coreógrafa. Há sempre essa ginástica, o jogo de deixar entrar algumas coisas e afastar outras que não interessam. E nesse espectáculo senti também essa abertura para que eles trouxessem um bocado das suas memórias, das suas reflexões para o próprio espectáculo e para a coreografia final.
O filme é também um ensaio visual de Luanda e das suas contradições que transparecem através das vidas e inquietações das próprias pessoas envolvidas nesse processo de criação. Por isso, pergunto de quem são estes “meus” passos?
Prefiro não filosofar muito sobre o título e deixar que as pessoas façam as suas interpretações mas sem dúvida que com esse título quisemos também juntar a nossa voz à dos bailarinos e caminhar juntos para além dos passos que todos juntos, enquanto artistas, conseguirmos dar.
E sem dúvida que Luanda tem um papel central no filme, não só pela influência que a vida em Luanda tem nos bailarinos enquanto artistas, como por todos os obstáculos que Luanda vai impondo às criações artísticas no geral. No entanto, há uma resistência e uma resiliência para se continuar a produzir utilizando até, muitas vezes, todos esse caos como fonte de inspiração.
Em particular, sou muito luandense. Cresci e me formei enquanto pessoa na cidade e tive pouco contacto com um estilo de vida mais rural ou de cidades mais pequenas. Quando decidi, com o filme, fazer um paralelismo entre a transformação tanto da dança tradicional em dança contemporânea como da vida de alguns bailarinos de um estilo de vida rural para a vivência mais caótica em Luanda, percebi como desconhecia a importância dessa experiência na vida das pessoas e na sua identidade. Enfrentar esse desconhecimento e reflectir sobre isso foi um dos exercícios mais difíceis que atravessei com o filme.
Esta diversidade de Angola que no espectáculo e no filme é apresentada através das danças de algumas províncias, o que acontece com ela quando as pessoas chegam à Luanda? Esta é uma das perguntas que o filme levanta.
Eu acho que não só por causa de todo o processo da guerra mas, também ainda hoje, a busca por melhores condições financeiras trouxe e continua a trazer muitas pessoas para Luanda. Luanda é um mosaico de pessoal de muitos sítios diferentes e acabam por criar uma nova identidade.
Há uma entrevista ao Zuni que me marcou muito. Nessa entrevista falávamos em particular do que significou para ele essa mudança na vida dele de Cabinda para Luanda e eu senti que na verdade era a primeira vez que ele estava realmente a exteriorizar esses pensamentos e sentimentos. Ele falava sobre as coisas que ele teve que deixar para trás e como foi dura a adaptação a Luanda principalmente porque em Cabinda ele e os irmãos (também bailarinos da CDC) tinham uma vida familiar muito presente e fiquei com a impressão, e aqui posso estar errada, que em Cabinda a vivência familiar e tradicional é muito mais presente e muito mais importante que aqui em Luanda. O Zuni é o bailarino que fala sobre essa transformação de um ponto de vista mais depressivo, mais pesado.
Isso fez-me reflectir nos amigos que tenho e que não são de Luanda - que vieram estudar ou trabalhar, por exemplo - e que raramente partilham essa experiência.
Um dos bailarinos fala sobre a importância da tradição em Cabinda. Qual é o lugar da tradição em Luanda?
Boa pergunta. Acho que ainda ocupa um lugar importante. Uma das coisas que eu pensei com esse filme foi sobre a (des)valorização que nós fazemos dessa tradição. Ainda não cheguei a uma conclusão.
O que tenho pensado é em como todo o processo de colonização levou a que muitos de nós, angolanos, deixássemos de valorizar as nossas tradições. Durante a colonização foi-se enraizando uma ideia de que quanto mais longe os angolanos estivessem das suas “tradições” mais evoluídos estariam - desde achar-se atrasado por falar as línguas tradicionais, ao haver uma discriminação pelos cabelos crespos e por aí fora. Tudo isto está ainda muito presente nas vivências e nas memórias. E apesar de achar que ainda não é muito expressivo a nível nacional, existe um movimento preocupado com essas questões, preocupado em “resgatar” as tradições, mas parece-me haver ainda um vazio de informação e conhecimento deixando espaço para muitas invenções e exageros e muitas dúvidas.
Afinal a tradição é fluida…
Exactamente. E acho que se vão construindo novas tradições nos sítios onde estamos, com as pessoas que vão entrando na nossa vida. São tradições que se vão criando.
Como escolheram as cinco províncias representadas através de danças tradicionais — Cabinda, Zaire, Huíla, Lunda e Luanda — no espectáculo e no filme?
É uma escolha da direcção artística. Pelo que entendi, a Ana Clara quis fazer uma representação mais abrangente do país. A Ana tem um trabalho imenso ligado às Lundas, mas neste projecto ela traz danças do norte, do sul, do centro e do litoral como o Carnaval de Luanda, que para mim foi uma escolha curiosa porque não é necessariamente uma dança que eu consideraria tradicional nesse sentido ancestral. Além disso é possível que estivessem também limitados aos arquivos a que tinham acesso. Como disse antes, eu tinha essa ideia romântica de que os bailarinos iriam viajar e ver as danças nos seus lugares de origem mas a realidade é bem mais crua e na verdade eles aprenderam a maior parte das danças recorrendo a imagens de arquivo da TPA. No início, na fase de laboratório, eles tinham o objectivo de aprender o mais perto da realidade essas danças e a Ana Clara foi bastante rigorosa com essa fase. Ela queria que eles soubessem as danças na perfeição, para depois estarem preparados para desconstruir. Nesses arquivos havia, para além da dança em si, pequenos documentários sobre os rituais associados às danças que nós tivemos a oportunidade de ver também e perceber que as danças patrimoniais têm regras, significados, e são difíceis de padronizar, isto é, umas recebem o nome da cerimónia em que são dançadas, outras recebem o nome do cinto que se usa para dançar e por aí fora. Por isso, no filme nós decidimos não colocar o nome da dança porque não é assim tão fácil de definir, optamos por colocar a província em que foram feitas as filmagens porque assim damos a informação da diversidade geográfica representada.
Luanda é uma cidade que pulsa, mas no documentário há partes filmadas em slow motion, mesmo sendo uma imagem da rua, das pessoas, ou um panorama aéreo. Esta é uma maneira de apaziguar a cidade, a “aprender a ter tempo para o outro”, como diz um dos bailarinos?
Isto foi para dar a oportunidade de observar, porque é exactamente o que diz um dos bailarinos “há pouco tempo para olhar para o outro e ver o outro”. E eu sinto isso a andar em Luanda. Está todo mundo com pressa. E poder mostrar estas imagens, especialmente nos sítios que são mais cheios, com muita gente a fazer coisas muito diferentes e são muitos rostos, muitas actividades; poder dar tempo para observar isso com calma, contemplar.
Como é a sua Luanda? É a da contemplação ou também tem aspectos de tradição?
A minha Luanda é mais essa da contemplação. Tenho o privilégio de circular bastante por causa da minha profissão mas é uma circulação de contemplação e observação mais do que vivência. Sendo honesta, eu vivo e vivencio uma Luanda bastante pequena e concentrada no centro.
Há um plano que se repete, ciclicamente, dum bailarino que dança em vários pontos da cidade: num campo de basquetebol, na praia, depois num espaço fechado, para voltar de novo ao campo de basquetebol. Será a dança, enquanto metáfora, espaço de criatividade livre, um modo de desconstruir e reapropriar a própria cidade?
Esse momento do Zuni a dançar em vários palcos faz parte daquilo a que nós chamamos “Momentos Poéticos”. Mesmo antes de começarmos a filmar tínhamos a ideia de pegar em alguns momentos da coreografia e tirá-los do palco convencional e levá-los a outros palcos onde a técnica cinematográfica pudesse fazer uma interpretação da dança. Foi um exercício muito interessante e para o fazer tive que estudar e entender as coreografias para depois decidir como e onde filma-las.
O momento poético do Zuni a dançar em diferentes cenários é um dos meus preferidos. Por um lado, pela técnica utilizada, porque tivemos que acertar a coreografia e o plano em quatro sítios diferentes e foi mais desafiante do que eu esperava, felizmente tínhamos connosco o Sérgio Afonso, que foi o director de fotografia de todos os momentos poéticos, que garantiu que as imagens batessem certo. Por outro lado, pelo momento em que entra no filme seguido de uma fala em que o Zuni diz que não se sente livre em Luanda porque a sua dança não é valorizada; e a imensidão e o vazio à volta dele enquanto dança contrasta tanto com o que ele diz que faz, com que o momento tem um peso maior do que aquele que eu esperava quando filmámos.
Quais são os outros momentos poéticos do filme? Penso por exemplo na poesia da Iyeoka…
A poesia da Iyeoka acabou por ganhar uma importância maior no filme de tal forma que acabamos por decidir fechar o filme com as falas dela. A verdade é que ficamos a conhecer esse poema pela escolha da Banda Sonora do espetáculo feita pela Mónica. Ela termina o espetáculo com uma dança que remete aos Bakama de Cabinda e com este poema. Nós quisemos em alguns momentos manter algumas das ideias que a Mónica tinha para o espetáculo no filme mas nem sempre o filme segue a mesma linha que o espetáculo; em alguns momentos até têm direcções bem opostas, mas felizmente tivemos essa liberdade para fazermos a nossa interpretação do espetáculo através do filme. Uma das coisas mais contrastantes entre os dois, e que ainda nos levou vários debates, é a ideia geral do filme, porque o espetáculo é muito mais para o futuro, enquanto que o filme é mais para o passado. O filme termina dizendo “que é preciso não esquecermos de onde viemos” enquanto que a ideia do espetáculo é muito mais para a frente: precisamos de nos renovar e reconstruir.
Pela vida dos bailarinos, pelas suas falas, faz-se uma espécie de genealogia da história de Angola, mas sem falar sobre as guerras. Foi uma opção, não falar sobre a história recente de Angola?
Não diria uma opção mas nunca nos passou pela cabeça fazê-lo. Há um bailarino, o Tony, que conta que saiu do Zaire para Luanda por causa da guerra e essa experiência representa a de muitas pessoas. Mas nunca nos passou pela cabeça pegar nisso especificamente. Passar por aí claro, numa história em que se reflete sobre o passado e o presente é impossível não estar subentendida uma guerra que acontece no meio. Não foi uma opção não falar sobre isso. Simplesmente não apareceu como uma opção.
Tendo em conta que os seus trabalhos anteriores com a Geração 80 foram muito ligados ao projecto “Independência”… este um ponto de mudança na sua carreira como realizadora?
Na verdade comecei a trabalhar com cinema em Angola com o projecto Angola - Nos Trilhos da Independência e mais especificamente com o documentário Independência que surgiu desse projecto da Associação Tchiweka de Documentação em que a Geração entra como produtora audiovisual.
Foi um processo de 6 anos que representou uma viragem na minha vida, um momento de passagem. Hoje consigo perceber que existe uma Kamy antes e depois desse projecto não só pela experiência de estar 6 anos a ouvir cerca de 700 pessoas a falar sobre as suas experiência durante a luta pela independência, mas também pelo conhecimento actual do país a que tivemos acesso durante as várias viagens que fizemos pelo interior do país.
Quando terminou, senti que precisava de uma pausa relativamente a esse assunto. Meses depois do lançamento do documentário comecei a trabalhar com a Tchiloia Lara e o Sérgio Afonso no documentário “Do Outro Lado do Mundo”, um filme sobre as relações Angola - China, mas numa perspectiva mais pessoal, a da consequência da economia na vida real das pessoas.
“Para lá dos meus passos” é o primeiro filme que realizo. Foi um grande desafio, mesmo tendo em conta a minha personalidade. Sou por natureza uma pessoa que evita conflitos, que gosta de estar na minha zona de conforto e dar pequenos passos dentro dos meus limites. Realizar um documentário é o oposto disso, liderar uma equipa e lidar com todo o stress foi um desafio que coloquei a mim mesma e que posso dizer que felizmente sobrevivi.
Quanto tempo levou a filmagem e todo o processo de criação com a equipa?
Nós começamos a filmar em Fevereiro de 2017 e o espetáculo foi estreado em Junho do mesmo ano. Eu considero essa a primeira fase de filmagem em que nós éramos simples observadoras dos ensaios, enquanto tentávamos também perceber o que seria o filme. Eu filmei a maior parte dessa fase. Depois da estreia começámos uma outra fase de filmagem, mais focada nos bailarinos e nas suas vidas pessoais para além da profissional, em que o director de fotografia foi o Ery Claver. E, por último, fizemos os momentos poéticos com o Sérgio Afonso. Estas duas últimas fases foram já durante a edição do filme. No total levamos 2 anos a terminar o filme mas poderíamos ter terminado mais cedo se pudéssemos estar dedicadas apenas ao filme. Infelizmente, essa não é a nossa realidade porque foi muito difícil encontrar apoio financeiro para o filme, tendo sido a Geração 80 a financiar a maior parte do filme, cerca de 70%. Tivemos alguns patrocinadores anónimos e contámos também com o patrocínio do Banco Económico que usamos para pagar a Banda Sonora, além de nos terem oferecido a antestreia do documentário.
Para além do “Independência”, tem uma curta na qual foca em algumas entrevistas feitas com as mulheres. Qual a importância desta escolha, enquanto mulher e jovem que nasce numa família muito ligada à história do país?
Essa curta foi feita no 3º ano do Projecto Trilhos por ocasião do dia da mulher. É uma complicação de algumas entrevistas a mulheres que participaram na luta de libertação de Angola. Infelizmente foi muito no início do projecto e fizemos depois muitas entrevistas que seria de muito interesse incluir nesse mini documentário. Sempre que passamos esse vídeo penso em reeditá-lo, mas, por falta de tempo, isso acaba por nunca acontecer. Além das muitas mulheres que ficaram de fora desse vídeo, eu própria hoje estaria em melhor condições de reflectir sobre a participação da mulher na luta.
Quando começou o projecto eu tinha uma ideia da participação da mulher na luta muito ligada à imagem da mulher guerrilheira de arma na mão e filho nas costas ou então das mulheres intelectuais que participaram com os seus discursos e reflexões. Hoje percebo e valorizo muito mais o papel de cuidado que as mulheres tiveram durante a luta. Essa ideia de valorização da mulher quando ela se iguala a um homem estava muito implantada na minha cabeça e na verdade reflecte muito a forma como a nossa sociedade está organizada; existe uma corrente forte que defende o empoderamento da mulher, mas que só a valoriza quando ela conquista os lugares que antes eram ocupados apenas por homens. Eu acredito que esse lugar de cuidado deve ser igualmente valorizado. Por isso, sei que se um dia voltar a pegar nesse vídeo, farei de forma diferente.
Quais são os outros projectos de futuro? Este seria um deles? E, dentro disto, qual é a importância de trabalhar com e sobre mulheres?
Foi uma decisão consciente trabalhar principalmente com mulheres neste documentário.
O início do projecto foi construído pela Paula Agostinho e por mim e, depois, a Gretel Marin, uma realizadora cubana, que trabalhou alguns anos connosco na Geração 80, juntou-se à equipa como editora.
A Gretel teve um papel muito importante na construção do filme. Este documentário ganhou realmente forma durante a edição. Por isso, nós costumamos dizer que o guião foi escrito pelas três. Depois, para a banda sonora, para mim também era importante que fosse uma mulher. Tinha a preferência que fosse angolana mas, infelizmente, não foi possível. Apesar disso, encontrámos uma cantautora venezuelana a viver em Berlim, que encaixou perfeitamente no projecto, e fiquei muito satisfeita com o trabalho dela.
Para mim era importante trabalhar só com mulheres, porque em Angola existem poucas mulheres a trabalhar em cinema, porque é difícil no geral, como em qualquer outra área, invadir esse espaço tão masculino.
Além disso, para enfrentar um desafio tão grande para mim como realizar um primeiro filme, era importante criar um ambiente seguro e sem dúvida que me sinto mais segura entre mulheres. Os homens (generalizando) ocupam muito espaço, falam muito alto e é difícil ter uma conversa equilibrada em que todos se ouvem. Entre mulheres senti muito mais facilidade na resolução de conflitos, na aceitação de que existem ideias diferentes e que não precisamos de estar sempre de acordo e convencer a outra que a nossa ideia é melhor. É verdade que tudo isso podem ser características das mulheres envolvidas, mas acredito realmente que na verdade são características mais femininas.
Portanto sim, rodear-me de mulheres neste filme foi uma decisão consciente. Acho que é importante. Os nossos filmes não precisam ser os melhores filmes feitos com os melhores profissionais, é preciso que sejam feitos em conjunto. E quando digo isso não é só em relação às mulheres, falo também na escolha de termos uma equipa angolana. É importante crescermos todos juntos, para chegarmos todos juntos mais longe. Infelizmente, ainda não estamos nesse patamar, mas ter essa utopia nos permite caminhar para lá.
Qual foi a recepção à estreia do filme em Angola?
Temos tido muito boa recepção. Temos um plano de distribuição um pouco exigente, mas consideramos importante entregarmos a mesma energia nesta fase de distribuição que entregamos para fazer o filme.
Temos feito exibições do filme em vários espaços tentando fugir do centro asfaltado de Luanda, onde nos movemos com mais facilidade, e entrado em contacto com outros sítios que já estão a fazer coisas mas às quais, se calhar, não estamos tão ligados. A primeira exibição foi em Cacuaco, num espaço oferecido pelo Sami, um dos bailarinos. E foi muito fixe poder ver o filme com outras pessoas que conhecem os bailarinos, comentam coisas da vida deles, etc.
A estreia nacional foi num antigo cinema ao ar livre no bairro da Coreia onde não passavam filmes há vários anos. Foi emocionante ver o nosso filme reflectido num ecrã enorme e com um público tão variado. Foi muito simbólico.