Raoul Peck: “Não quero provocar só por provocar. Quero revelar”
Raoul Peck, o realizador de Eu Não Sou o Teu Negro, diz-nos que com Exterminate All the Brutes, documentário sobre o racismo e colonialism espectador para uma viagem que o afecte, que o surpreenda, que o engrandeça.
Por Zoom da sua varanda, ao abrigo do sol, bem-disposto, conversador, atento, Raoul Peck entusiasma-se a falar de Exterminate All the Brutes. Explica que o filme em quatro partes (ao qual não quer chamar série) que agora surge nasceu das suas viagens a apresentar Eu não Sou o Teu Negro. E que não quer provocar só por provocar: quer, antes, convidar o espectador para uma viagem que o afecte, que o surpreenda, que o engrandeça.
Trabalhou durante dez anos em Eu não Sou o Teu Negro, que acabou por se estrear no momento em que James Baldwin era redescoberto. Agora, Exterminate All the Brutes surge num momento em que as reparações às populações negras ou indígenas estão em alta. É como se tivesse um sexto sentido…
(Risos) É verdade, mas não é algo que eu domine… Acontece com todos os meus filmes, porque para me investir num projecto preciso de ter a sensação de que o meu trabalho vai ficar, qualquer que seja o tema. Vou dar-lhe um exemplo: Barack Obama foi eleito Presidente quando a montagem de Eu não Sou o Teu Negro estava feita a três quartos. Durante uma semana tive de fazer uma pausa, porque o que se tinha passado implicava reflectir sobre o impacto que ia ter no meu filme. Fui reler Baldwin e encontrei uma citação em que ele dizia que o problema da América não era quem seria o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos, mas de que país seria ele Presidente… E é sempre esse o ângulo sob o qual quero pegar nas coisas. As mentalidades evoluíram? Os cidadãos evoluíram? A nação evoluiu? Enquanto for essa a base de trabalho, estaremos sempre no momento certo, porque as discussões ditas “do momento” muitas vezes são superficiais.
O seu filme propõe uma releitura — não só da história dos EUA mas mesmo do mundo…
Sem dúvida. Era preciso desconstruir tudo: a história, os instrumentos da história, a linguagem dessa história. E mesmo a forma e a estética, para não cometer os mesmos erros de sempre.
Como é que chegou então a esta mistura de formas — documentário, ficção, ensaio?
É algo que desenvolvi ao longo dos anos. Cada filme constrói-se sobre o ou os anteriores. Exterminate All the Brutes vem na linhagem de Lumumba, Mort d’Un Prophète, de 1991, mas nasce directamente, a todos os níveis, de Eu não Sou o Teu Negro, porque senti muito o impacto desse filme ao apresentá-lo não apenas na América mas na Europa, na América Latina, na Austrália… Em alguns países, continuava a dizer-se “Está a ver como na América são maus? Está a ver o que eles fazem aos negros?”, como se esses países não tivessem eles próprios populações desfavorecidas… Havia ainda demasiadas vozes negativas, e achei que era preciso ir mais longe, à origem, à raiz desta ideologia. De onde vem o racismo? Como foi criado, onde começou, como se desenvolveu e se tornou global? O filme é o resultado da viagem que fiz.
Apoia-se na obra de Sven Lindqvist, sueco, Michel-Rolph Trouillot, haitiano, e Roxanne Dunbar-Ortiz, americana de ascendência nativa. E cita Joseph Conrad, que era polaco naturalizado inglês. Mais global é impossível…
Sim! E repare também que cada um deles saiu do universo onde nasceu, Conrad incluído. São pessoas que tiveram sempre uma visão maior, global, do ser humano, que nunca ficaram fechados na sua aldeiazinha.
Como se só os outsiders pudessem ver as coisas como elas são?
Não diria que são só os outsiders, mas estar de fora ajuda à compreensão de algumas coisas. Aliás, veja o caso de Baldwin: ele viveu fora da América. É preciso algum recuo, e isso é um luxo que aqueles que estão sob o jugo de outrem não têm, porque é difícil reflectir com uma bota na nossa cabeça. O distanciamento ajuda.
Seria muito fácil cair no cinismo ou no idealismo com este tema. Como é que se evita isso?
É difícil de dizer. O meu único critério é não mentir a mim próprio, estar por inteiro no filme, incluindo as minhas dúvidas. Quando me baseio nestes três livros, apoio-me em pessoas cujo trabalho foi andar a escarafunchar na história. E a partir daí sinto- me totalmente livre, solidamente ancorado nos factos. Se compreendo, com a minha idade, que a história que me foi contada, com a qual me educaram, está falseada ou incompleta ou é preconceituosa, então ganho o direito de a fazer ir pelos ares. Mentiram-me, e por isso tenho o direito de pegar nas coisas e de assumir a minha subjectividade. Mas não quero ser provocador só para provocar, quero revelar. Baldwin sempre o soube fazer: dizer com um sorriso uma coisa que nos parte o coração, ao mesmo tempo que nos dá uma palmadinha nas costas. “És um ser humano, mas podias fazer o favor de parar de me esfaquear?” Não podemos viver no ódio.
É também por isso que diz, a certa altura do filme, que não se quer queixar, apenas compreender?
Claro! Já ultrapassámos a questão das queixas. Ao fim de centenas de anos de queixas que nunca foram ouvidas, a queixa não resulta! Além do mais, se eu me queixar, vão-me reduzir mais uma vez ao estado de vítima. E, lamento, mas não sou uma vítima. É também uma maneira educada de me dirigir ao outro, de lhe dizer: “Quero só conversar consigo, não esteja tão na retranca.” Quero manter o espectador numa situação permanente de expectativa, sem saber o que virá no plano seguinte, para o manter desperto, atento. Quero bombardear o espectador com coisas fortes, belas, tristes, chocantes, mas verdadeiras. E quero convidá-lo a viajar comigo, não para o magoar, mas para que juntos nos tornemos melhores.
Artigo originalmente publicado por Público a 8/04/2021