Ruy Guerra
Para um artista, sua obra é em geral mais importante que tudo: esse lugar comum se aplica a Ruy Guerra, figura pública no Brasil desde os anos 1960. A partir da adolescência vive em torno da palavra e da imagem. Declara-se um artista “tipicamente produto do subdesenvolvimento”, levado a exercer várias formas de arte para subsistir. Trabalhou em diversas funções ligadas à tela (assistente de direção, ator, roteirista, montador, diretor, produtor ou professor), em redação de poesias, letras de músicas e crônicas, shows e peças de teatro, que por vezes dirigiu.
Nasceu em 22 de agosto de 1931 em Lourenço Marques, então capital de Moçambique, colônia portuguesa na África, mas tem vivido em vários continentes e países, sendo constantemente apontado como “um cidadão do mundo”. Não se pode separar seu percurso de vida de sua produção artística, pois a busca dessa foi o fio condutor de seus deslocamentos no espaço e da continuidade de suas atividades no tempo. Define-se “meio africano, meio português, meio brasileiro, um tanto latino, meio perdido, 100% o que nesse coquetel de angústias”?
Com colegas de escola, fez da cultura a via da revolta contra o colonialismo e o racismo. Fazer cinema para ele era já uma forma de pensar e apresentar as relações político-sociais. Aos 16 anos, com uma câmara de 8mm emprestada, filmou a vida dos trabalhadores portuários negros, realidade do Cais Gorjão. Desembarcou em Paris para cursar o IDHEC em 1952, em meio à efervescência da discussão sobre a política do cinema de autor e as primeiras marolas da Nouvelle Vague. Para Ruy, entre outros, essa última “sempre teve uma marcada posição direitista e eu (…) tinha uma posição nitidamente de esquerda (…) condenava aos intelectuais franceses justamente um apolitismo extremamente político, nunca falavam da guerra da Argélia, dos imigrantes”.
Em 9 de julho de 1958, veio para o Rio de Janeiro, seu porto seguro – embora intermitente – até hoje. Afirma brincando que nasceu com o Cinema Novo mas não nele, em meio àqueles jovens cineastas entre os quais, apesar das inevitáveis rivalidades e choques, havia, em função dos filmes que faziam, uma estreita colaboração. Para ele, era um cinema de busca de identidade: “Estávamos interessados em produzir filmes que retratassem a realidade do povo, os conflitos políticos e sociais, que fugissem às regras de produção e aos dogmatismos da estética do cinema industrial”.
Foi assim parte de uma geração que, nos anos 60, queria mudar o mundo, por sua ideologia mas também – alguns deles e Ruy entre esses – por sua prática de vida. Para ele a estética é sempre política, pois traz necessariamente embutida uma visão de mundo, ancorando-se em valores que apresenta, defende ou condena. Se apresentado como cineasta político, orgulha-se de ser esta sua marca maior. Nunca foi ligado a partido, mas acredita que ser político é estar envolvido com as problemáticas de sua época: “Tenho um olhar político sobre a realidade, de um ponto de vista cultural”.
Nos anos 60 e 70 trabalhou diversas vezes na França. Em 1965, a revista Cahiers resume os temas de seus filmes: a crueldade, a violência, o racismo, o tempo que não acaba… Para Ruy “quem analisa meus filmes já disse que há uma espécie de obsessão pelas áreas de poder e os mecanismos repressivos, seja no ambiente familiar, nas estruturas sociais ou no governo”.
Colaborou com o governo vitorioso da revolução moçambicana de 1975, deslocando-se para lá durante quase uma década, filmando e formando quadros para o novel cinema. Viveu e trabalhou também em Cuba por alguns períodos. Os cineastas latino-americanos em geral têm que enfrentar pesadas dificuldades (econômicas, com a censura…). Apesar disso, Ruy lista em seu currículo vários longas, médias e curtas-metragens, exibidos e premiados mundo afora. Afirma muitas vezes: “Não fiz todos os filmes que queria, mas queria fazer todos os filmes que fiz”.
A linguagem cinematográfica é sua preocupação maior. Vê como imprescindível a busca de uma linguagem renovadora: “Algo fundamental para mim é encontrar estruturas que rompam com os conceitos padrões, basicamente da estrutura hegemônica norte-americana, que acredito serem redutores da realidade e não servirem para a nossa cultura”. Não nega as dificuldades de seu cinema: “É um cinema de investigação, que busca alternativas de linguagem e de estrutura.”
Ensina o cinema em que acredita: “Digo na primeira aula: se você vem aqui para fazer filme norte-americano é fácil. Vamos para o bar e em uma hora eu falo tudo que você precisa saber (…). Agora, se o cara quer fazer filme brasileiro, ele vai passar dois anos remando na faculdade e vai continuar remando, não sairá da faculdade sabendo não. É outra coisa: é busca, é se vincular à realidade, é saber quem você é”. Toma posição clara: “As equações da sociedade estão todas mal feitas e você vive com essas equações equivocadas. Um filme não tem que dar 10 milhões de espectadores. Um filme tem que ser visto por X pessoas que podem tirar desse filme alguma coisa importante para a vida delas. É diferente. Porque desses milhões de espectadores geralmente não tem dez que tirem do filme alguma coisa importante para a vida deles. Eles consumem aquele filme como um produto, como um fast food (…). É importante dizer que ver esses filmes norte-americanos é a mesma coisa que freqüentar o Macdonald’s. Não tem diferença nenhuma”.
FILMOGRAFIA:
Os Cafajestes, 1962, Brasil
Os Fuzis, 1964, Brasil
Sweet Hunters, 1969, França-Brasil-Panamá
Os Deuses e os Mortos, 1970, Brasil
A Queda, 1977, Brasil
Mueda, Memória, Massacre, 1979/80, Moçambique
Erendira, 1982, Brasil-México-França-Alemanha
Ópera do Malandro, 1985, Brasil-França
A Fábula da Bela Palomera, 1987, Brasil-Espanha
Kuarup, 1989, Brasil
Me Alquilo para Soñar, 1991/92 (série para TV espanhola)
Estorvo, 2000, Brasil
Monsanto, 1999, 2000, Portugal
Portugal S/A, 2003, Portugal
O Veneno da Madrugada,2004/2005, Brasil- Argentina-Portugal